Distribuição do ônus probatório

AutorFernando Maciel
Ocupação do AutorProcurador Federal em Brasília/DF. Mestre em Prevenção e Proteção de Riscos Laborais pela Universidade de Alcalá (Espanha)
Páginas183-194

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O mérito probatório de uma ARA é representado pelos pressupostos fáticos dessa relação processual (já analisados no tópico atinente aos aspectos materiais), cuja coexistência deve ser comprovada a fim de viabilizar o juízo de procedência da pretensão ressarcitória.

No que se refere à ocorrência do acidente do trabalho sofrido por um segurado do INSS e o implemento de alguma prestação social acidentária, tais questões não demandam maiores problemas, pois são facilmente comprovadas a partir de informações que a própria autarquia demandante possui em seus registros.

Todavia, o mesmo não se repete com relação à culpa do empregador pelo acidente do trabalho, sendo esse pressuposto fático objeto de intensa discussão no curso das lides regressivas acidentárias.

No que se refere ao ônus probatório acerca da culpa do empregador, Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari260 lecionam que seria "incumbência do INSS demonstrar a existência da responsabilidade subjetiva do empregador, (...) Só assim poderá transferir o encargo das prestações pagas às vítimas e seus beneficiários".

Ousamos divergir desse entendimento, pois, em que pese o art. 333, I, do CPC/73261 atribua ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito, em matéria de ARAs, essa tradicional regra de distribuição do encargo probatório merece ser flexibilizada, porquanto peculiaridades fático-jurídicas fundamentam a inversão do ônus da prova, conforme se passará a analisar de forma mais detida.

5.1. Inversão do ônus da prova em face da presunção relativa de culpa do empregador

A pretensão ressarcitória veiculada na ARA tem fundamento na responsabili-dade subjetiva da empresa-ré, porquanto a procedência dos pedidos pressupõe o

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elemento culpa, representada pelo descumprimento e/ou pela ausência de fiscalização das normas protetivas da saúde e segurança dos trabalhadores.

Ocorre que a observância desses preceitos normativos não representa apenas uma obrigação de natureza legal prevista no art. 157 da CLT262, mas também um dever contratual implícito que deve ser observado pelos empregadores, no sentido de adotar as medidas necessárias à preservação da incolumidade física e psicológica do empregado no seu ambiente de trabalho.

Acerca dessa peculiaridade, Ana Paola Santos Machado Diniz263 leciona que:

No contrato de trabalho, por exemplo, a par das obrigações principais, como pagar o salário ajustado e fornecer trabalho, o empregador está adstrito ao dever de segurança, garantia de que o trabalho executado pelo empregado não irá comprometer sua integridade física ou psíquica.

A jurisprudência do STJ também compartilha desse entendimento ao preconizar que, "no campo da segurança do trabalho, por força da sistemática do Estado Social, ao empregador impõe-se a obrigação primária de zelar, de forma ativa e insistente, pela saúde e segurança do trabalhador".

Registra-se que a referida obrigação primária apresenta estrutura complexa, pois "seria composta de um conjunto de cinco obrigações secundárias ou derivadas, organizadas em modelo pentagonal, dotadas de conexidade recíproca e qualificadas como de ordem pública e interesse social264".

Essas cinco espécies de deveres contratuais anexos estão consubstanciadas nas seguintes condutas: a) dar; b) orientar; c) fiscalizar; d) punir; e e) comunicar, conforme se pode extrair da seguinte ementa:

ADMINISTRATIVO. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. (...) EQUIPAMENTO DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL - EPI. FORNECIMENTO E USO OBRIGATÓRIOS. CONTROLE DO USO. RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR. ART. 19, § 1º, DA LEI N. 8.213/91. ARTS. 157, 158, 200 E 632, TODOS DA CLT. (...) CULPA IN VIGILANDO COMPROVADA. (...).

(...) 3. No campo da segurança do trabalho, por força da sistemática do Estado Social, ao empregador impõe-se a obrigação primária de zelar, de forma ativa e insistente, pela saúde e segurança do trabalhador.

  1. A obrigação primária de zelo pela saúde e segurança do trabalhador compõe-se de um conjunto de obrigações secundárias ou derivadas, organizadas em modelo pentagonal, dotadas de conexidade recíproca e qualificadas como de ordem pública e interesse social: obrigação de dar (= fornecimento do EPI, troca incontinenti na hipótese de avaria, e manutenção

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    periódica), obrigação de orientar (= dever de educar, treinar e editar as necessárias normas internas, bem como de alertar sobre as consequências sancionatórias da omissão de uso), obrigação de fiscalizar (= dever de verificar, sistemática e permanentemente, o uso correto do equipamento), obrigação de punir (= dever de impor sanção apropriada ao empregado que se recuse a usar ou use inadequadamente o EPI), e obrigação de comunicar (= dever de levar ao conhecimento dos órgãos competentes irregularidades no próprio EPI e no seu uso). (...) (STJ, RESP 171.927, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, DJ de 19.12.07)

    Com efeito, em caso de descumprimento dessa obrigação de natureza híbrida (legal + contratual), cabe aos empregadores o ônus de provar que observaram o dever de preservar a integridade física de seus empregados, respeitando as normas de saúde e segurança do trabalho.

    Segundo Sérgio Cavalieri Filho265, considerando que a culpa do empregador decorre da violação de uma norma legal ("culpa contra a legalidade"), tal circunstância acarretaria uma presunção de culpabilidade do causador do dano, incumbindo a ele o ônus da prova em sentido contrário.

    Corroborando essa tese da inversão do ônus probatório, Ana Paola Santos Machado Diniz266 dispõe que:

    As obrigações acessórias, por serem impostas por lei, não demandam aplicação da regra da responsabilidade delitual, haja vista se incorporarem ao contrato como condição obrigatória. (...)

    Se o legislador, por sua relevância, as quis inseridas no contrato de trabalho, não haveria de admitir que fossem trasladadas para o campo da responsabilidade extracontratual, justamente quando sua violação reivindica atuação mais incisiva dos mecanismos de repressão estatal, facilitadas pela inversão do ônus de prova.

    Discorrendo acerca da "culpa contra a legalidade", Sebastião Geraldo de Oliveira267 apresenta argumentação favorável à inversão do ônus da prova em matéria de ações indenizatórias por acidentes do trabalho, in verbis:

    Na investigação da possível culpa do reclamado, relacionada com o acidente do trabalho ou doença ocupacional, o primeiro passo é verificar se houve descumprimento das normas legais ou regulamentares que estabelecem os deveres do empregador quanto à segurança, higiene e saúde ocupacional. A simples violação de alguma dessas normas, havendo dano e nexo causal, cria a presunção de culpa do empregador pelo acidento do trabalho ocorrido, uma vez que o descumprimento da conduta normativa prescrita já é a confirmação da sua negligência, a ilicitude objetiva ou culpa contra a legalidade.

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    Em outras palavras, ocorrido um acidente de trabalho, fica estabelecida uma presunção relativa de culpa do empregador, entendimento esse que possui amparo no atual posicionamento jurisprudencial adotado pelo STJ acerca da matéria, in verbis:

    DIREITO CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR. NATUREZA. PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE FÍSICA DO EMPREGADO. PRESUNÇÃO RELATIVA DE CULPA DO EMPREGADOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. (...)

    - O contrato de trabalho é bilateral sinalagmático, impondo direitos e deveres recíprocos. Entre as obrigações do empregador está, indubitavelmente, a preservação da incolumidade física e psicológica do empregado no seu ambiente de trabalho.

    - Nos termos do art. 389 do CC/02 (que manteve a essência do art. 1.056 do CC/16), na responsabilidade contratual, para obter reparação por perdas e danos, o contratante não precisa demonstrar a culpa do inadimplente, bastando a prova de descumprimento do contrato. Dessa forma, nos acidentes de trabalho, cabe ao empregador provar que cumpriu seu dever contratual de preservação da integridade física do empregado, respeitando as normas de segurança e medicina do trabalho. Em outras palavras, fica estabelecida a presunção relativa de culpa do empregador.

    Recurso especial provido. (RESP N. 1067.738/ GO, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26.5.09) g.n.

    Em matéria de ARAs do INSS, a jurisprudência dos TRFs vem se posicionando favoravelmente à presunção de culpa das empresas nos casos de acidentes do trabalho, sendo dos empregadores o ônus de provar que agiram com diligência e precaução necessárias a diminuir os riscos de acidentes, conforme pode ser comprovado a partir dos seguintes acórdãos:

    AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ACIDENTE DE TRABALHO. AÇÃO REGRESSIVA PROPOSTA PELO INSS. DENUNCIAÇÃO DA LIDE À EMPRESA TERCEIRIZADA. INEXISTÊNCIA DE OBRIGATORIEDADE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CABIMENTO. PRECEDENTES DO STJ. DECISÃO MANTIDA (...) IV - Melhor sorte não assiste ao Recorrente no tocante à inversão do ônus da prova, tendo em vista que a ação regressiva de origem tem como causa de pedir o acidente de trabalho que vitimou fatalmente o empregado da Agravante, cabendo a ela, portanto, provar que cumpriu seu dever contratual de preservação da integridade física do falecido empregado, respeitando as normas de segurança do trabalho. Isto porque, nos acidentes de trabalho, há presunção relativa de culpa do empregador, conforme entendimento sedimentado na Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (RESP 201100532818, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJE Data: 23.9.2011; AGRESP 200601316180, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJE Data: 26.5.2011; RESP 200801364127, Relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJE Data: 25.6.2009).

    V - A...

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