A Revolução em película: as disputas e conflitos no interior do processo revolucionário a partir de Terra e Liberdade

AutorRafael Hansen Quinsani
CargoPossui graduação em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Páginas111-147

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Rafael Hansen Quinsani 1

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mundo, logo levou o cinema a lançar suas luzes para o passado, para a história e para o meio social, de forma analítica e interpretativa. Nestes longos anos do curto século XX, diversos pensadores, escritores, curiosos e estudiosos debruçaramse sobre os fotogramas e suas luzes projetadas no meio social. Para os historiadores, a reflexão e a mera incorporação deste novo meio artístico, simplesmente pensado como fonte histórica, teve início na década de 1970. Uma frase provocativa dizia que “os historiadores não costumam aparecer para o casamento, mas sim para o enterro” (POSTMAN, Apud SULZBACH, 1998, p. 206). O receio, ou talvez o puro temor, de incorporar o cinema nos meandros da disciplina histórica foi diminuindo nas últimas décadas, e, hoje, uma vasta produção sobre o cinema pensado como fonte histórica ou como objeto de reflexão para a própria condição histórica encontra respaldo no meio acadêmico. Entretanto, muito ainda há para ser feito, muitos caminhos ainda precisam ser percorridos, muitos desafios ainda precisam ser superados.

Assim, não cabe ao historiador fechar os olhos para o cinema, seus desafios e os diferentes usos e abusos realizados com a história. Renunciar ao debate e à reflexão implica na perda da função social e política que o fazer historiográfico carrega e dele é indissociável. Desse modo, para refletir sobre a relação CinemaHistória nossa análise tomará como eixo um filme que aborda o contexto da Guerra Civil Espanhola. Terra e Liberdade (Ken Loach, 1995), pode ser considerado um filme histórico (NOVA, 1996, p. 217-234) que aborda a participação e o papel das milícias e, principalmente, as divisões políticas que se formaram no interior do campo republicano (ou antifascista) durante a guerra. Sua abordagem se aproxima do epíteto rankeano “o que realmente aconteceu”, devido ao cuidado e detalhamento empregados na recriação do contexto retratado. Entretanto, o filme se afasta da visão simplista, propagada pela visão republicana ou comunista predominante durante muitos anos na esquerda européia, do embate entre democracia versus fascismo, mostrando o processo revolucionário no interior do movimento, desvelando as contradições ideológicas entre o Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM), os anarquistas e os comunistas. Assim, o filme permite uma discussão sobre o debate político no interior da esquerda e o contexto no qual é retratado.

O cenário da Guerra Civil Espanhola representado no filme estudado permite destacar amplas variáveis de análise referentes à representação histórica pensada a

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partir da ótica do cinema. À grande produção bibliográfica acrescentase uma considerável filmografia do contexto, produzida dentro e fora da Espanha, sendo ainda recorrente nos dias atuais. Assim, a justificativa para a escolha da temática da Guerra Civil Espanhola se dá pela pluralidade de perspectivas e projetos que podem ser visualizados neste contexto (MALEFAKIS, 1996, p. 23). A Guerra Civil não foi uma simples resposta de um grupo aglutinado pelo exército frente a um projeto insurrecional e revolucionário de alguns setores de esquerda. Sua configuração histórica apresentaa como um conflito local, na medida em que, por meios militares tentouse resolver as questões sociais candentes; e como conflito internacional, representando um microcosmo que reproduzia a polarização de uma era. O prolongamento do conflito, seus traumas e a instalação de uma longa ditadura, encravaram no cerne da formação das gerações subseqüentes à Guerra Civil, a Revolução, seus protagonistas e a incapacidade de ignorar o passado em si, sua importância para o presente e a constituição do futuro (ARÓSTEGUI, 1986, p.47). A vitalidade da temática é proporcionada pela complexidade e desdobramentos gerados pelo conflito, bem como pelo peso da tragédia e o fim das utopias amparadas nos seus ideais. Mais ainda: ela expressa a real possibilidade de colocar projetos de mudanças radicais em prática, a materialização de um sonho e de um novo futuro. Para refletir e compreender a Guerra Civil Espanhola, os elementos vinculados à revolução social não podem ser esquecidos.

Sendo o cinema um dos melhores propagadores de modos de vida, por ser um meio que permite a socialização de sonhos, de necessidades e de utopias (e que, portanto, tem a possibilidade de intervir na história), um importante questionamento deve ser respondido pelo historiador: como ocorre a interação da obra com a sociedade e, por conseguinte, como a obra reconstrói a história nas suas narrativas. Dentro da análise do historiador, o filme pode ser encarado como documento primário, quando analisamos a época em que foi produzido, e como documento secundário, quando enfocamos sua representação do passado. Esta caracterização segue o modelo de classificação da documentação escrita da historiografia tradicional (NOVA, 1996, p. 217-34). Podemos ainda centrar a análise realizando uma descrição orgânica que enfoca os objetos e o meio independentemente do enquadramento realizado pela câmera, e uma descrição cristalina que visa mostrar o que não está sendo exposto. Podemos, portanto, pensar uma classificação entre cinema e história em três eixos: o “cinema na

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história” e seus reflexos e influências; a “história no cinema” e a “história cinema”.

Contudo, devemos levar em conta que no registro do real ou dos sonhos operado pelo cinema não há uma separação na forma como se executa esse registro. O cinema não se constitui fechado em si mesmo; ele permite o acesso a mundos diferentes, ao visível e ao não visível, aos silêncios da história que também são história (FERRO, 1989, p. 2). A análise de uma reflexão teórica sobre a relação CinemaHistória e suas conseqüências e questionamentos para o historiador e seu fazer historiográfico serão analisados a partir deste filme que retrata o contexto da Guerra Civil Espanhola.

O filme abordado neste artigo será enquadrado na classificação elaborada por Marc Ferro sobre os princípios de constituição de uma obra histórica e as formas de análise e seus centros produtores. Em suas obras, Marc Ferro aponta a resistência de diversos historiadores com relação ao uso do cinema como fonte histórica. Nesse sentido, lembra que Fernand Braudel alertouo para que não utilizasse o cinema: “interessante, mas é melhor que não o comente muito” (FERRO, 1995, p. 15). Fosse pela recusa em trabalhar com imagens, fosse pelo caráter nãoartístico e intelectual atribuído ao cinema, os estudos encontravamse num estágio incipiente e com muito terreno por galgar no espaço historiográfico. Ao elaborar a contraanálise, Ferro salienta que, além de tornarse um agente, o cinema também motiva a tomada de consciência histórica, criando uma memória fílmica. Tendo em vista todos estes fatores, inserese uma questão: em que aspectos o documento filmado supera o escrito no campo tradicional da investigação histórica? (FERRO, 1995, p. 57) A resposta a esta pergunta conectase a outra: a ficção pode servir como técnica científica de investigação histórica? (FERRO, 1995, p. 185) Ao pensar as soluções a estas questões devemos ter em conta a relação que o historiador apresenta com as fontes, os fundamentos concernentes à análise histórica e o discurso elaborado para evocar o passado, vinculálo ao presente e tornálo verossímil. O desenvolvimento da História em diversas formas de expressão e abordagem, além da realizada no ambiente acadêmico, ganhou fôlego considerável no século XX.

No âmbito da Históriamemória prevalece a acumulação como forma de selecionar a informação a ser pesquisada. Qualquer descoberta constituise em valiosa contribuição à reconstituição e reprodução. A história acadêmica, ao contrário, tem na hierarquia das fontes e na sua quantidade e possibilidade de cruzamentos sua chave de seleção. Na história experimental, a seleção das

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informações ocorre conforme a necessidade, e a ausência de instituições acadêmicas na base da pesquisa transformam o poder intelectual num dos objetivos latentes e nãolatentes dos autores. A produção cinematográfica encontrase na classificação denominada Históriaficção. Diferentemente de uma obra acadêmica, o princípio organizativo ocorre através dos elementos estéticodramáticos, mesmo que numa fase de elaboração do roteiro e da pesquisa estes estejam presentes em menor grau. Isto não impede, contudo, que elementos de outros modos de funcionamento estejam presentes no âmbito da Históriaficção. O princípio cronológico serve a muitas obras cinematográficas como fator ordenador da história representada. Muitas vezes o objetivo de uma película constituise na legitimação de uma causa, de uma visão histórica ou de um personagem histórico. Também não podemos negar a busca do poder intelectual por parte de cineastas, seja no seu meio de trabalho ou no meio social em geral.

Dentro da históriaficção, para que um filme possa exercer sua função de análise e de contraanálise de uma sociedade, Ferro aponta dois prérequisitos: que os cineastas tornemse independentes das forças ideológicas e das instituições; que o texto base da obra fílmica seja exclusivo do cinema, que não seja uma adaptação literária, por exemplo. Um cineasta pode fazer uma interpretação global e original da história, articulando uma compreensão do passado relacionado com o presente. A fim de sintetizar os diferentes graus de atuação dos cineastas, Ferro organiza filmes que exemplificam as diferentes formas de análise e o foco dos seus centros de produção, cruzando história e cinema através das diversas perspectivas de análise da sociedade e a forma de abordagem dos problemas sociais e históricos.

Quando um filme é produzido dentro de um âmbito institucional sua perspectiva pode advir e/ou enfocar grandes homens ou as massas. No âmbito contrainstitucional encontramse os filmes produzidos...

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