Os Direitos Sociais e as Atribuições do Estado Social na Atualidade

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas225-236

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1. introdução

Sobretudo após a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, em razão das atrocidades ocorridas e da efervescência de discussões em torno da efetivação dos direitos humanos, novas demandas surgiram, de modo que se tornou imperiosa a necessidade de intervenção estatal em prol das necessidades reais dos cidadãos, ainda que prevalecessem, no âmbito econômico, os ideais capitalistas. Fala-se, assim, no surgimento do chamado Estado Social, consolidado na segunda metade do século xx.

Embora seja possível verificar certas imprecisões quanto à adoção do termo, no contexto adotado no presente trabalho, o Estado Social pode ser entendido como Estado intervencionista1. Isso porque há dois conceitos principais: o primeiro, em sentido estrito, sinônimo do Estado de Bem-Estar (Welfare State), vinculado ao sistema de assistência e seguridade social. O segundo, em sentido amplo, seria sinônimo de Estado intervencionista, não restrito, assim, somente às esferas da assistência e da seguridade social.

O Estado Social é resultado das mudanças estruturais pelas quais o antigo Estado Liberal passou e encontra-se no meio termo entre este e o Estado Socialista: conservando a adesão à ordem capitalista, preocupa-se, também, em realizar a justiça social, buscando a superação da dicotomia entre igualdade política e desigualdade social, e garantindo os direitos básicos da classe trabalhadora2.

Importa mencionar que o Estado Social pressupõe a ação em esferas que antes pertenciam ao campo da autonomia privada, em razão da pressão da sociedade e da necessidade de intervenção estatal, com o fito de extinguir ou, pelo menos, amenizar, os efeitos negativos do capitalismo. Tais ações podem ser verificadas nas mais diversas normas criadas para garantir os direitos dos trabalhadores, no âmbito da previdência, da assistência social, da educação, da saúde, da habitação, do controle das atividades econômicas e bancárias, bem como na criação e execução de políticas públicas, para tornar reais os direitos previstos no ordenamento jurídico.

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O presente artigo visa à análise do contexto em que os direitos sociais surgiram e à releitura crítica do conceito de direitos sociais tradicionalmente adotado pela doutrina, que traça a diferença entre direitos de liberdade e direitos sociais com base na posição negativa ou positiva do Estado. Faz-se, em seguida, crítica à teoria da geração dos direitos fundamentais, proposta por Karel Vasak no final da década de 1970. Por fim, realizou-se estudos sobre as atribuições do Estado Social e sobre a solidariedade como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.

2. os direitos sociais

Antes da análise dos fatos históricos referentes ao surgimento dos direitos sociais, cumpre discutir os aspectos relacionados à sua conceituação. Afinal, o que são estes direitos? Há diferenças entre os direitos de liberdade e os direitos sociais tradicionalmente apontadas pela doutrina, porém o principal ponto que os autores parecem destacar como distinção entre os dois institutos é alvo de críticas consistentes na atualidade, como se verá a seguir.

2.1. Conceito

Desde o seu surgimento, os direitos sociais foram definidos como direitos prestacionais ou direitos que demandam ações positivas por parte do Estado, enquanto os direitos de liberdade são direitos negativos ou, em outras palavras, direitos oponíveis em face do Estado. No caso dos direitos sociais, o Estado deve agir positivamente, mediante produção de políticas públicas concretas. Já em relação aos direitos de liberdade, deve abster-se. Os direitos sociais traduzem, assim, para a doutrina tradicional, a noção de "pretensão, cuidado e proteção", com atividade estatal intensa para garantir os interesses da sociedade3. A ação do Estado, em relação a estes, é "fazer". Em relação aos direitos de liberdade, é "abster-se".

Karel Vasak, estudioso tcheco, associou o lema da Revolução Francesa aos direitos fundamentais em 1979. Trata-se da teoria das gerações dos direitos fundamentais. De acordo com essa teoria, a partir do surgimento do Estado Liberal, originaram-se os chamados direitos fundamentais de primeira geração. São os direitos civis e políticos. São direitos com status negativo, posto que existem para limitar a atuação do Estado, baseados na não intervenção. Constituem garantias para os indivíduos em face da atuação do Poder Público. A liberdade, então, é o principal elemento dos direitos fundamentais de primeira geração.4

Os direitos de segunda geração, por sua vez, baseiam-se na igualdade. Surgiram a partir do advento do Estado Social, no século xx, e englobam os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos. Possuem status positivo, tendo em vista que são direitos que demandam ações do Estado. Há, ainda, a terceira geração de direitos, proposta por Karel Vasak, que associa à fraternidade os direitos ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e outras gerações (ou dimensões) propostas por outros juristas, como Paulo Bonavides, mas que não serão objeto de estudo em razão da ausência de pertinência com a temática central deste artigo5.

Não obstante a importância histórica desses estudos e as contribuições destes autores para o Direito Constitucional e para a compreensão dos direitos fundamentais, atualmente, critica-se ideia de que somente os direitos sociais são prestacionais e que demandam ações positivas por parte do Estado. Isso porque hoje se entende que todos os direitos são positivos, uma vez que todos os direitos demandam ações concretas por parte do Estado. Todos os direitos, portanto, têm custos6.

A tradicional visão de que os direitos de liber-dade não requerem ações por parte do Estado está equivocada. A garantia destes direitos também demanda atividade estatal, também demanda custos. Assim, a liberdade individual não é assegurada com a simples não interferência estatal, pois esta também exige certa resposta do Estado, exige a construção de

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um ambiente adequado para que esse direito possa ser exercido em sua plenitude.

Stephen Holmes e Cass Sunstein7 afirmam que até mesmo o direito de não ser torturado pela polícia, nas prisões, exige ações positivas por parte do Estado e, consequentemente, gastos públicos. é que se torna necessário, entre outras ações, fiscalizar os estabelecimentos prisionais e capacitar a polícia.

O direito de liberdade de locomoção, por exemplo, demanda ações para garantir a segurança pública, sistema de transporte público etc. Ademais, os que têm a liberdade violada necessitam de um sistema judiciário viável para exigir as sanções cabíveis ao infrator ou o retorno à situação anterior. Os que violam, além de um sistema judiciário viável para lhes garantir o direito de defesa, necessitam de uma estrutura prisional mínima, se for o caso.

O exercício do direito de propriedade também demanda custos por parte do Estado, mediante políticas de segurança pública, por exemplo, ou de uma estrutura judicial que viabilize a garantia do direito ou a reparação em caso de violação. São, portanto, ações que demandam recursos públicos e são caracterizadas pelo "fazer", assim como também são as ações para promoção de direitos sociais.

José Casalta Nabais8 também corrobora este entendimento, sustentando que "não tem a menor base real a separação tradicional entre, de um lado, os direitos negativos, que seriam alheios a custos comunitários e, de outro lado, os direitos positivos, que desencadeariam, sobretudo, custos comunitários". Talvez a diferença entre os direitos sociais e os de liberdade, nesse sentido, resida no fato de que os direitos sociais demandam "custos financeiros públicos diretos", enquanto os direitos de liberdade demandam "custos financeiros públicos indiretos".

Em relação aos primeiros, são custos que se realizam imediatamente na promoção de políticas. Porém, em relação aos segundos, são despesas materializadas, sobretudo, na proteção de direitos. Mas o fato é que todos os direitos demandam ações, tornando a diferenciação tradicional carente de sentido.

Outra crítica que se faz em relação à teoria das gerações dos direitos fundamentais é que esta pode induzir à redução da normatividade dos direitos de segunda e de terceira geração, como se só fosse possível concretizá-los após a garantia dos direitos de primeira geração. é que a teoria pode ser interpretada da seguinte forma: o reconhecimento dos direitos de uma geração só pode ser realizado uma vez que os direitos da geração anterior sejam concretizados, atribuindo-se aos direitos sociais, por exemplo, uma categoria de direitos sem prioridade9. Entretanto, sabe-se que não há hierarquia entre os direitos fundamentais.

Em razão de tal crítica, adota-se, atualmente, a nomenclatura "dimensões" dos direitos fundamentais, em vez de "gerações", para afastar a ideia de sucessão. Entretanto, a classificação dos direitos em dimensões, apesar de tentar viabilizar uma interpretação mais coerente da teoria, não resolve o cerne da questão: o fato de os não haver hierarquia entre os direitos fundamentais. Dizer que o direito de liberdade pertence à primeira dimensão e o direito à assistência social, por exemplo, pertence à segunda dimensão pode levar o leitor desatento a erro, a partir da interpretação de que o direito de liberdade é hierarquicamente superior ou mais importante que os demais, porque pertence à primeira dimensão.

Portanto, embora se reconheça o valor histórico da teoria e o notório saber jurídico de autores que a sustentam (como Paulo Bonavides, Ingo Sarlet, entre outros), entende-se que a teoria carece de aplicabilidade prática e que mais prejudica que beneficia a compreensão em torno dos...

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