Direitos humanos/tributos municipais

AutorTácio Lacerda Gama
Páginas189-213

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Prof. Tácio Lacerda Gama - Retomando o início dos trabalhos, vou pedir a atenção dos Srs. para iniciarmos a Mesa "Direitos Humanos/Tributos Municipais". Na minha opinião, existiria uma série de outros conceitos que vão bem além dos tributos municipais, mas talvez seja essa a atração da Mesa.

E, para iniciar, sem demorar muito e passar logo ao que interessa: esta Mesa conta com os Profs. Humberto Ávila, José Eduardo Soares de Melo, Susy Gomes Hoffmann e Renato Lopes Becho, todos expoentes muito conhecidos pelos Srs., de certa forma especialistas nesses pequenos subsistemas que acabam virando as espécies tributárias. Passo logo a palavra ao Prof. Humberto Ávila, que é Professor da UFRGS e recentemente obteve, com todo brilho, o título de Livre-Docente pela USP, com árdua experiência na Alemanha, Doutorado lá, livro publicado lá, já produziu alguns dos principais clássicos que nós temos debatido recentemente, como Sistema Constitucional Tributário, Teoria dos Princípios; é também um palestrante de mão cheia, como vocês poderão observar agora. Prof. Humberto Ávila, com a palavra.

Fiscalização e direitos fundamentais do contribuinte

Prof. Humberto Ávila - Bem, inicialmente, eu gostaria de cumprimentar a todos os presentes, especialmente o Presi-dente desta Mesa, e agradecer notadamente o convite que me foi formulado pelo Prof. Paulo Ayres, que é um grande advogado, um grande teórico e, acima de tudo, uma grande pessoa, que muito me honra com seu convite.

Eu pretendo obedecer àquelas características de uma palestra com qualidade, que precisa ser curta e boa, mas se for curta não precisa nem ser boa. A minha palestra vai ser curta.

Essa característica fica ainda mais importante com a afirmação do Prof. Paulo Ayres. Ele disse que, depois da brilhante palestra do Min. Luiz Fux, eu não precisaria falar mais nada. Houve até pessoas que chegaram para assistir à palestra do Ministro, agendada inicialmente para depois do intervalo, e, sem saber que ela já havia sido proferida, me cumprimentaram pela minha brilhante palestra, [risos] que eu ainda nem havia proferido...

De maneira que, enfim, com esta sobrecarga comparativa - na medida em que uma palestra é boa ou ruim dependendo do ponto de vista comparativo adotado -, eu, que tinha a possibilidade de fazer uma boa palestra e agora tenho a certeza de que não farei uma boa palestra, vou falar sobre "Fiscalização e Direitos Fundamentais do Contribuinte".

É um tema importantíssimo, especialmente no Brasil atual, bastando para esse efeito verificar o que os jornais de hoje mesmo publicaram a respeito de fiscalizações feitas pela Polícia Federal, em conjunto com a Receita Federal, em que prati-

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camente todos já estão condenados, apesar de a fiscalização tributária, tecnicamente, não ter sido sequer iniciada.

Mas, em virtude disso, o meu ponto será uma análise dos direitos fundamentais procedimentais, ou, se vocês quiserem, a relação entre os direitos fundamentais e o procedimento ou o processo.

E a primeira questão a ser considerada é a seguinte: há uma imbricação entre direitos fundamentais e procedimento e as instituições organizacionais da Administração Pública. Em primeiro lugar, há direitos fundamentais no procedimento, isto é, direitos fundamentais que só são úteis na medida em que estiverem previstos em algum procedimento, como é o caso do contraditório, da paridade de armas ou do direito à intimação.

Além de existirem direitos fundamentais no procedimento, há direitos fundamentais procedimentais, ou direitos fundamentais de procedimento, como é o caso da universalidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Além disso, há direitos fundamentais com procedimentos específicos. Alguns direitos fundamentais já vêm antecipadamente com a garantia que os torna efeti-vos. É o caso, por exemplo, do direito à informação e do habeas data.

E há, ainda, direitos fundamentais por meio do procedimento, isto é, alguns direitos fundamentais só terminam sendo efetivamente realizados por meio de um procedimento previamente estabelecido que lhes garanta efetividade. Nesse sentido, existe uma relação de imbricação entre, por exemplo, liberdade e propriedade: é o devido processo que vai garantir a instrumentação para a realização dessa liberdade - devido processo, esse, que só se realiza se houver determinadas garantias de imparcialidade, direito à intimação, juiz natural, e assim sucessivamente.

Nesse sentido, pode-se perceber que não se pode falar em "direitos fundamentais sem procedimento", porque existem direitos fundamentais "no" procedimento, "de' procedimento, "com" procedimento e "por meio do" procedimento. Falar de direitos fundamentais, digamos, exaltando sua importância mas sem, ao mesmo tempo, apresentar mecanismos idôneos para sua efetividade é fazer um debate meramente político, eventualmente muito interessante e bastante emocional, mas pouco racional e, certamente, pouco efetivo.

O essencial é o seguinte: quando nós temos estabelecidos na nossa Constituição direitos fundamentais, e esses direitos fundamentais pressupõem a existência de determinados bens jurídicos sem os quais eles não se revelam como tais, na sua eficácia normativa, esses direitos fundamentais assumem a natureza de "princípios", pois apontam para o estado ideal de coisas, como, por exemplo, liberdade, sem de antemão prever os meios necessários cuja adoção provocará efeitos que levarão a atingir esse estado ideal de coisas. É nesse sentido que nós temos que compreender a maior parte dos direitos fundamentais. E aí nós vamos verificar que nossa Constituição não só estabelece direitos fundamentais, mas institui garantias e, do ponto de vista normativo, estabelece subprincípios e regras que levam à realização desses mesmos princípios.

Então, nós temos, por exemplo, algo que é fundamental no caráter dos princípios, que é sua eficácia interpretativa, isto é, se já existem regras postas pelo legislador infraconstitucional, eu devo ler estas regras já postas de acordo com os princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição. Nós temos, portanto, regras procedimentais já estabelecidas na lei de procedimentos federais, nós temos no Código Tributário e nós temos também em algumas leis federais esparsas. Essas leis que instituem regras devem ser interpretadas conforme os princípios fundamentais na eficácia interpretativa que eles têm.

Em segundo lugar, os princípios fundamentais têm eficácia integrativa. Por vezes o legislador não institui o meio ade-

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quado; ela fornece o fim, mas não o meio. Estabelece o estado ideal de coisas, mas não diz como esse estado será promovido. No procedimento de concretização dos direitos fundamentais devem ser criados os meios adequados pela eficácia integrativa dos princípios.

E, por fim, os princípios têm o que eu chamo de eficácia bloqueadora. Às vezes o legislador estabelece o meio, mas o meio é insuficiente e inadequado para preservar aquele fim que deve ser garantido pela Constituição. Nesse caso, o princípio vai bloquear aquele meio estabelecido e fixar um novo. Por exemplo, se o prazo previsto é exíguo, e não garante a produção de prova necessária para o exercício de ampla defesa, outro prazo deverá ser estabelecido. Outro exemplo: se não há previsão expressa do direito de obter vista dos autos, em virtude de alguma falha procedimental ou em virtude de uma lacuna legal, a eficácia direta do princípio irá criar um mecanismo que não está estabelecido.

Tudo isso para lhes dizer que nós temos uma mútua implicação entre direitos fundamentais e procedimentos e processo. Não se pode pensar um sem o outro, e o outro sem o um. Isso nos leva a algumas conseqüências, sobre as quais eu gostaria de, rapidamente, falar.

Em primeiro lugar, nós temos uma eficácia negativa, que normalmente é a mais conhecida pelos operadores do Direito. Se os direitos fundamentais estão garantidos para o contribuinte, é dever da Administração não adotar meios que possam restringir sua efetividade. Aí nós temos, portanto, uma prescrição negativa. É proibição de restrição, ou proibição de violação. É aí que entra o que os teóricos chamam de "proibição de excesso", isto é, os direitos fundamentais, quando garantem determinados bens jurídicos que devem estar presentes sob pena de o direito fundamental não ser efetivo em medida alguma, trazem implicações com relação à atividade administrativa, que não poderá, no aspecto negativo, portanto, restringir demasiadamente (além da medida) os di-reitos fundamentais do contribuinte. E nós temos, nesse aspecto, uma jurisprudência muito rica do STF no que se refere às chamadas "sanções políticas". A Administração, na atividade procedimental anterior ao processo administrativo, deve garantir determinados meios para a efetividade de direitos fundamentais e, por exemplo, não pode deixar de fornecer talonário fiscal, de permitir abertura de estabelecimento, para que a atividade do contribuinte possa ser exercida.

Nesse sentido, então, os direitos fundamentais vão proibir que a Administração Tributária estabeleça meios que impossibilitem ou que restrinjam excessivamente o exercício de direitos fundamentais.

Esse, todavia, é o aspecto negativo. Nós temos, no entanto, um aspecto positivo dos direitos fundamentais, que é pouco estudado no Brasil, mas bastante estudado na Alemanha, de onde eu tomo de empréstimo algumas reflexões, para que a gente possa fazer algumas ponderações sobre o assunto.

Lá, além de existir a proibição de restrição excessiva, há também o reverso, que é o dever de promoção mínima dos direitos fundamentais. Há, de um lado, o que eles chamam de Úbermafiverbot, isto é, proibição de ir "além da medida", e o que eles denominam de...

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