Direitos Individuais e Direitos Coletivos

AutorArion Sayão Romita
Ocupação do AutorAcademia Nacional do Direito do Trabalho
Páginas191-206

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2.1. Generalidades

Entre os direitos fundamentais, há uns cujo titular é o indivíduo considerado isoladamente; outros, cujo titular é o indivíduo considerado como membro do grupo; finalmente, há ainda alguns direitos cujo titular é o grupo. Daí a classificação dos direitos em individuais e coletivos. Na primeira categoria alinham-se aqueles cujo titular é o indivíduo, considerado em si ou como membro da coletividade. Na outra, situam-se os direitos que assistem à coletividade, com abstração dos indivíduos que a compõem.

Historicamente, o indivíduo surge não como sujeito de direito, mas de obrigações. Na Antiguidade, os códigos morais e a legislação (os Dez Mandamentos, a Lei das Doze Tábuas), longe de conferir direitos aos indivíduos, impunham-lhes deveres e obrigações. Nas monarquias absolutas, os súditos tinham o dever de obedecer às leis e à vontade do rei. Só com as declarações liberais e individualistas do século XVIII (Declaração de Virgínia e Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão) passam os indivíduos a ser titulares de direitos. Nas monarquias constitucionais do século XIX as constituições são outorgadas pelo soberano. Só no regime democrático as decisões políticas passam a ser tomadas pelos indivíduos, na acepção coletiva de povo, do qual emana o poder.

A teoria do contrato social é fortemente "produtora" de deveres. Ao entrarem na sociedade, os homens conservam - é certo - alguns direitos, naturais, como a liberdade individual e o direito de propriedade, mas eles assumem deveres decorrentes da vida em sociedade. O dever de trabalhar assume uma importância considerável: no estado de natureza, o homem faz o que lhe apraz, mas na sociedade o homem paga com o trabalho o preço do seu sustento. A concepção liberal por vezes sofre o assédio de correntes ideológicas que negam a existência de direitos para promover os deveres. Para o providencialismo de Joseph de Maistre e Louis de Bonald, o homem só tem deveres. Esta concepção foi reiterada, com um fundamento completamente diferente, por Augusto Comte, para quem a sociedade prima sobre o indivíduo ("O homem só tem um direito: o de cumprir o seu dever")1.

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Quando o indivíduo assume a titularidade de direitos, inverte-se a situação: as liberdades públicas do indivíduo ganham precedência sobre o poder, não mais absoluto, porém tido por emanação da vontade popular. Esta é a grande conquista da democracia, regime no qual cobram relevo os direitos fundamentais. Duas são as concepções formadas em torno do conceito de sociedade: a orgânica (ou organicista) e a individualista. Segundo a primeira, a sociedade é um organismo no qual se integra o indivíduo; de acordo com a outra, a sociedade é o resultado da soma dos indivíduos que a compõem. A diferença entre as duas concepções é palpável: ambas se encontram em oposição inconciliável.

A concepção orgânica da sociedade conduz ao autoritarismo. A noção anti-individualista é a negação da democracia. O regime democrático vive da participação dos indivíduos na criação da vontade estatal. Pontes de Miranda fala em participação do povo na criação da ordem estatal2, mas a noção de povo se resolve na soma dos indivíduos que o compõem.

Só a concepção individualista da sociedade é compatível com a demo-cracia. Só na democracia se pode pensar em respeito aos direitos fundamentais. Na democracia, os indivíduos são titulares de direitos que só podem ser tidos por invioláveis se o indivíduo for considerado axiologicamente superior à sociedade de que faz parte. Transplantada esta concepção para o plano internacional, o indivíduo passa a ser considerado sujeito de direito inter-nacional (não mais apenas os Estados, de acordo com a noção clássica, tradicional).

No relatório geral apresentado como introdução ao Colóquio internacional sobre "Direitos do homem: direitos individuais ou direitos coletivos", realizado em Estrasburgo em 13 e 14 de março de 19793, Jean Rivero assinala que as expressões direitos individuais e direitos coletivos podem ser entendidas em diferentes sentidos. Para evitar a incerteza a respeito do significado dessas expressões, é de rigor precisar este significado.

2.2. Os três critérios

Três critérios são encontrados em sede doutrinária para explicar a oposição entre direitos individuais e coletivos: 1º - quanto ao modo de seu exercício; 2º - quanto ao sujeito passivo do direito; 3º - quanto ao titular do direito.

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2.2.1. Quanto ao modo do exercício

Quanto ao modo de seu exercício, os direitos individuais são aqueles cujo titular pode exercer pessoalmente como emanação da própria vontade, enquanto os direitos coletivos só podem ser exercidos se diversas pessoas se reunirem para usar em conjunto e no mesmo sentido o direito que assiste cada uma delas. Pertencem ao primeiro grupo a liberdade de pensamento e de opinião, o direito de ir e vir, o direito do homem ao seu próprio corpo. Os exemplos clássicos dos direitos do segundo grupo são os direitos sindicais. O direito sindical, em certo sentido, é um direito individual, porém a ação sindical não existe como fato de um só indivíduo: o sindicato só surge quando certo número de pessoas unidas pelo mesmo interesse profissional se põe de acordo para criá-lo. Da mesma forma, o direito de greve: não há greve individual. A greve é um fato coletivo: um trabalhador isolado não faz greve, falta ao trabalho. Mas a greve é um direito reconhecido ao indivíduo. Na verdade, é um direito individual de exercício coletivo. Da mesma natureza, é o direito de reunião, de associação, de culto.

2.2.2. Quanto ao sujeito passivo do direito

Individuais, neste sentido, são os direitos que o respectivo titular pode opor a todos os outros indivíduos, os quais são obrigados a respeitá-los. São as grandes liberdades clássicas, às quais a Declaração de 1789 não fixava outros limites além daqueles que a razão fixava: "O exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites além daqueles que asseguram aos demais membros da sociedade o gozo destes mesmos direitos" (art. 4º). Cada um pode exigir de outrem que respeite os seus direitos, desde que ele respeite os dos outros. Coletivos são os direitos oponíveis não a um indivíduo, mas à coletividade. São os direitos da segunda família de direitos fundamentais, os chamados direitos sociais. São direitos de crédito: crédito de trabalho e de emprego, de educação e de cultura, de proteção à saúde. Devedores destas prestações não são os indivíduos, mas a coletividade, representada pelo Estado. O direito ao trabalho não enseja ao desempregado o direito de exigir um emprego deste ou daquele empresário, mas sim o de postular perante a coletividade organizada o desenvolvimento de uma política econômica e social de tal natureza que todos possam obter um emprego e um salário.

2.2.3. Quanto ao titular do direito

Direitos individuais são o apanágio do homem, considerado em sua essência individual. Direitos coletivos são os direitos dos grupos, direitos da família, da nação, da coletividade local ou regional. São os direitos das coletividades ou direitos difusos, como o direito ao ambiente sadio, ao desenvolvimento, à paz internacional etc. (direitos da terceira família).

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Ao lado dos direitos individuais e coletivos, cabe incluir os direitos gerais ou públicos, cujo titular é o Estado. Enquanto os direitos coletivos representam o resultado da soma dos interesses individuais, os direitos gerais ou públicos resultam da soma dos interesses individuais e coletivos. A satisfação dos interesses públicos depende do atendimento dos interesses individuais e coletivos. Ao Estado, que recebe o encargo de tutelar primordialmente o interesse público, cabe a tarefa de balancear a extensão e o alcance dos interesses individuais e coletivos, quando necessariamente restringirá o exercício de direitos fundamentais, "a fim de assegurar a maior eficácia deles próprios, visto não poderem todos, concretamente, ser atendidos absoluta e plenamente", consoante justa observação de Willis Santiago Guerra Filho4.

2.3. Crítica

Os dois primeiros critérios não permitem distinguir de forma nítida os direitos coletivos dos individuais. O primeiro critério (distinção quanto ao modo de exercício dos direitos) peca, porque o exercício da liberdade de associação, embora pressuponha a ação combinada de vários indivíduos, não oculta o fato de que cada indivíduo exerce de maneira concomitante seu próprio direito. E, uma vez criada a associação, cada pessoa tem o direito de a ela aderir ou de abandoná-la. O segundo critério (distinção quanto ao sujeito passivo do direito) também não satisfaz, porque é impreciso. Certos limites podem ser opostos aos indivíduos ou à coletividade, segundo o contexto, dependendo do tipo de interesse protegido pelo direito. A comunicação, por exemplo, pode ser vista com um interesse coletivo, mas o direito à liberdade de expressão que a protege é, sem dúvida, um direito individual. Já o terceiro critério (distinção quanto ao titular do direito) traça a priori uma nítida fronteira entre as duas categorias de direitos: a designação de uma coletividade como sujeito ativo de um direito gera problemas específicos, que não surgem quando se trata de um titular individual5.

2.4. Evolução histórica

Os três critérios de diferenciação entre os direitos individuais e coletivos não surgiram simultaneamente na história. Na verdade, eles correspondem a uma evolução, no curso da qual se formaram as três primeiras famílias de direitos fundamentais.

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Os direitos fundamentais da Declaração de Virgínia e da...

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