Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988

AutorProf. Ingo Wolfgang Sarlet
CargoJuiz de Direito no RS. Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha
Páginas1-45

Juiz de Direito no RS. Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Professor de Direito Constitucional na Escola Superior da Magistratura (AJURIS) e na PUC/RS, na qual também leciona a disciplina "Direitos Fundamentais" no Mestrado em Direito.

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I - Considerações introdutórias:

No limiar do terceiro milênio, podemos afirmar que os direitos fundamentais são construção definitivamente integrada ao patrimônio comum da humanidade. Resultantes do processo de constitucionalização (iniciado no final do século XVIII) dos assim denominados direitos naturais do homem, passaram a ser objeto de reconhecimento também na esfera internacional, de modo especial a partir do impulso vital representado pela Declaração da ONU, de 1948, hoje já com meio século de existência. É justamente sobre estes direitos fundamentais (ou, pelo menos, parte deles), que, há mais de duzentos anos, têm contribuído para o progresso moral da humanidade, que iremos centrar a nossa atenção. A inevitável amplitude do tema e os estreitos limites deste ensaio impõem, todavia, uma delimitação temática. Assim, optamos por discorrer sobre a problemática específica dos direitos fundamentais sociais na nossa Lei Fundamental, que acabou de completar a sua primeira década. A delimitação justifica-se, de outra parte, em face da natureza peculiar desta espécie de direitos fundamentais, notadamente por serem os direitos sociais os que mais tem suscitado controvérsias no que diz com sua eficácia e efetividade, inclusive quanto à problemática da eficiência e suficiência dos instrumentos jurídicos disponíveis para lhes outorgar a plena realização. Ademais, cumpre registrar que o ilustre homenageado por esta obra coletiva, Desembargador e Professor RUY RUBEN RUSCHEL, na condição de Magistrado e Jurista, exerceu e continua desempenhando papel de destaque na defesa intransigente da ordem constitucional e, de modo especial, dos direitos sociais, o que, por si só, já bastaria para justificar a delimitação temática. No mais, cuidando-se de abordagem centrada na perspectiva constitucional (ou estatal),1 deixaremos, em princípio, de discorrer sobre a proteção internacional dos direitos fundamentais, ainda que, vez por outra, venhamos a fazer alguma alusão sobre esta outra perspectiva de abordagem e forma de positivação dos direitos fundamentais da pessoa humana.Page 2

Antes de mais nada, porém, empreenderemos a tentativa de - ainda que de forma tímida e meramente exemplificativa - tecer algumas considerações sobre o contexto histórico, político e, acima de tudo, sócio-econômico: em suma, a respeito do pano de fundo no qual fatalmente se insere a problemática dos direitos fundamentais nos dias atuais. Assim, não poderíamos deixar de fazer referência à crise do Estado Social e ao impacto da globalização econômica e das doutrinas de matriz neoliberal sobre os direitos fundamentais, de modo especial, os direitos sociais, registrando, todavia, que de maneira alguma pretendemos aprofundar e esgotar - até mesmo por falta de formação específica - a gama de questões econômicas, sociais e políticas que o problema suscita. Superada esta etapa introdutória, passaremos a analisar alguns aspectos que dizem com os direitos fundamentais sociais na nossa ordem constitucional. Mesmo aqui, pelas razões já apontadas, priorizaremos os aspectos ligados ao conteúdo, significado e eficácia destes direitos, renunciando a qualquer pretensão de esgotamento da temática.

II - A crise do estado social de direito e a crise dos direitos fundamentais

Em recente artigo veiculado na imprensa nacional, o economista Roberto Campos, de forma irônica e não sem uma ponta de cinismo, alertava os leitores para aquilo que denominou de "armadilhas semânticas", dentre as quais destacou a expressão "social", sustentando que o termo "socialdemocracia", assim como "justiça social", não passam de "bobagens semânticas", já que inexiste democracia que não seja social, ao passo que o segundo termo pressupõe a existência de "um clube de justiceiros capazes de distinguir, melhor que o mercado, entre quem merece e quem não merece."2Se efetivamente cumpre reconhecer que as expressões referidas pelo ilustre articulista (a exemplo de tantas outras) são de conteúdo extremamente indeterminado e aberto, passíveis das mais diversas interpretações, além de revelarem uma certa redundância, não é menos certo afirmar que oPage 3 pensamento ora reproduzido, traduz, de forma significativa, a essência da doutrina neoliberal e, principalmente, o descaso com o qual ao menos parte de seus seguidores tratam temas e valores essenciais (por mais que se procure negar) para a humanidade.

Que todo o Estado, toda a democracia e até mesmo toda a Justiça são, em última análise, fenômenos ligados à vida humana em sociedade, realmente parece elementar (pelo menos, desde Aristóteles), sendo, portanto, absolutamente dispensáveis as referências feitas pelo ilustre economista (e não serão os termos "economia" e "neoliberalismo" eles próprios uma "armadilha semântica"?). Quando, no entanto, se pode afirmar que a expressão "social", agregada aos termos "Estado", "Democracia" e "Justiça" (assim como ao termo "Direito") sempre teve a função de ressaltar uma alteração substancial de conteúdo e significado dos referidos termos ao longo da História, ainda que não de forma similar nos mais variados quadrantes, verificase que a terminologia utilizada pode até ser objeto de controvérsia, mas certamente não se reduz a uma mera "bobagem semântica". A evolução do assim chamado Estado Liberal para o Estado Social de Direito (apenas o segundo seria uma "armadilha" ou "bobagem semântica"?) certamente representou para a humanidade bem mais do que um mero capricho semântico. Da mesma forma, haveríamos de reconhecer que todos os ilustres juristas, economistas, sociólogos, políticos e filósofos que fizeram e ainda fazem largo uso destas expressões (de Marx e Lassale a Tony Blair, Bobbio, Gomes Canotilho e, entre nós, Paulo Bonavides), nada mais foram ou são do que "bobos" ou, na melhor das hipóteses, vítimas "das armadilhas semânticas" criadas pela fértil imaginação humana ao longo dos tempos.

Já que iniciamos pelo aspecto "semântico" da questão, cumpre evitar que nos enredemos na própria teia e sejamos, também nós, vítimas das armadilhas das quais nos falava o ilustre articulista, um dos mais destacados e ferrenhos representantes do pensamento liberal (no melhor estilo "neo") pátrio. Assim, até por falta absoluta de espaço para enfrentarmos o problema, haveremos de partir do consenso, em termos do que se poderia chamar de "acordo semântico", a respeito da terminologia "Estado Social de Direito", que aqui utilizaremos ao invés de outras expressões, tais como "Estado- Providência", "Estado de Bem-Estar Social", "Estado Social", "Estado Social e Democrático de Direito", "Estado de Bem-Estar" ("Welfare State"). Muito embora nem todos atribuam às expressões referidas exatamente o mesmo sentido, e respeitadas as diferenças entre os diversos modelos, cumpre reconhecer que, mesmo cada uma das terminologias utilizadas, já (mas não exclusivamente) pela sua inevitável abertura semântica, tem sido objeto das mais diversas interpretações e definições quanto ao seu conteúdo e significado. Todas, porém, apresentam, como pontos em comum, as noções de um certo grau de intervenção estatal na atividade econômica, tendo porPage 4 objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade material e liberdade real na vida em sociedade, bem como a garantia de condições materiais mínimas para uma existência digna. Neste contexto, para justificarmos a nossa opção dentre as variantes apontadas, entendemos que o assim denominado "Estado Social de Direito" constitui um Estado Social que se realiza mediante os procedimentos, a forma e os limites inerentes ao Estado de Direito, na medida em que, por outro lado, se trata de um Estado de Direito voltado à consecução da justiça social.3 Como se percebe, também nós, mais cedo ou mais tarde, acabamos por nos tornar vítimas de uma ou mais "armadilhas semânticas".

Visto o que entendemos, ainda que sumariamente, por Estado Social de Direito, e movimentando-nos - ainda - no âmbito das premissas sobre as quais se assenta este estudo, cumpre registrar a...

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