Direitos Fundamentais e Ordem Pública
Autor | Arion Sayão Romita |
Ocupação do Autor | Academia Nacional do Direito do Trabalho |
Páginas | 207-224 |
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Uma norma jurídica dotada de certo grau de imperatividade habilita e por vezes obriga o legislador, a administração ou o juiz a limitar o exercício de liberdades em nome de um interesse superior ou da ordem considerada necessária à preservação do equilíbrio social ou da prevalência do ordenamento jurídico. Daí a necessidade de examinar as relações entre o exercício dos direitos fundamentais e a ordem pública.
Ao lado de noções rigorosas definidas de maneira precisa e objetiva, o direito se vale de noções flexíveis, suscetíveis de apreciação subjetiva e evolutiva. Fala-se, neste sentido, de noções de conteúdo variável, flexível, indeterminado, de textura aberta etc.1 Frequentemente, o legislador introduz deliberadamente expressões deste jaez no texto para ensejar às autoridades públicas ou ao juiz maior liberdade de apreciação. O mesmo fato se registra na redação dos tratados internacionais. A técnica legislativa moderna, graças a essas noções indeterminadas, pratica verdadeiras "delegações normativas". Como diz Jean Dabin, "há certas coisas que são mais bem compreendidas do que definidas"2, o que ocorre frequentemente com noções econômicas, morais ou políticas3.
Trata-se de noções refratárias a uma definição precisa, conhecidas no sistema do common law como standards, encontradiças porém em todos os sistemas jurídicos. Os standards, conceito mais restrito do que o de "noção flexível", correspondem a critérios fundados sobre o que parece normal e aceitável na sociedade, no momento em que os fatos são apreciados. São instrumentos de medida de comportamentos e de situações que permitem integrar na ordem jurídica realidades e valores sociais da atualidade4.
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A noção de ordem pública é uma dessas noções vagas, indecisas, pouco nítidas, imprecisas, porém ricas de conteúdo. Este conteúdo, no entanto, não é o mesmo nos diferentes ramos do direito que a utilizam: direito civil, direito administrativo, direito constitucional, direito do trabalho, direito internacional privado.
Cabe desde logo distinguir ordem pública substantiva de ordem pública procedimental. Estas duas noções são consideradas essencialmente diferentes: de um lado, a preservação da ordem na sociedade; de outro, a imperatividade de certas normas jurídicas. O que há de comum, por exemplo, entre o motivo de ordem pública invocado pela autoridade policial para impedir uma manifestação e a decisão do juiz do trabalho que nega validade a um contrato de aprendizagem ajustado por tempo indeterminado (CLT, art. 428)?
A influência crescente dos direitos fundamentais sobre a ordem jurídica determina a ampliação do significado da ordem pública, embora não afete o conceito. A ordem pública é geralmente definida como o conjunto dos valores reconhecidos pela sociedade em determinado momento, o que explica o caráter evolutivo de seu conteúdo. Como os direitos humanos estão jurídica e explicitamente vinculados aos valores fundamentais, eles devem ser compreendidos no conteúdo da ordem pública. Entende-se também que a função da ordem pública é habilitar o poder público a restringir o exercício dos direitos individuais, o que será feito em benefício da coletividade para preservação dos valores indispensáveis à sua coesão e à sua estabilidade. Não há como contestar a legitimidade de restrições ao exercício de certas liberdades, editadas pelo poder público em nome da ordem pública, porque não há liberdade possível sem um mínimo de ordem. A preservação da ordem pública é indispensável ao exercício das liberdades. Não é por outra razão que o art. XXVIII da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, dispõe que "todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados".
Quanto à intensidade da coerção a elas atribuída, as normas jurídicas se classificam em imperativas (cogentes, ius cogens) ou de ordem pública e supletivas (dispositivas, ius dispositivum). As primeiras são aquelas cuja aplicação não pode ser impedida pela vontade dos particulares e por isso são denominadas normas de ordem pública. As normas supletivas são as que se aplicam apenas quando a vontade individual deixa de manifestar-se, suprindo assim o silêncio dos interessados5.
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As normas cogentes (imperativas) são normas de ordem pública. O que significa isto? Por que tais normas, que se impõem coercitivamente à vontade dos particulares, são denominadas normas de ordem pública? Na lição de Jean-Pierre Gridel, "a ordem pública é a característica que apresenta uma norma jurídica em razão da importância essencial que a sociedade atribui a seu objeto e cuja consequência é privar de seus efeitos esperados todos os atos ou soluções com ela não conformes"6.
A tônica dessa definição recai sobre o sintagma importância essencial. Por que razão a sociedade atribui importância essencial ao objeto da norma? O que leva a sociedade a conferir a certas normas força obrigatória, enquanto a outras deixa de atribuir esta qualidade? Cabe investigar o significado de ordem pública.
O conceito de ordem pública deriva da correlação existente entre a política e o direito. A ordem pública é o reflexo do ambiente geral da ordem jurídica vigente em determinado momento, em dada sociedade. Por isso, varia no tempo e no espaço. Ela é função da fisionomia social que o legislador retrata por meio do ordenamento jurídico. Fixando os limites dentro dos quais a autonomia de cada qual pode movimentar-se, deve ser entendida como instrumento técnico do qual se serve a política para impor sua vontade aos indivíduos7.
A importância essencial está ancorada nos requisitos básicos que a sociedade estima indispensáveis à sua própria estabilidade. Por este motivo, a ordem pública pode ser definida como "o conjunto de condições essenciais a uma vida social conveniente, fundamentada na segurança das pessoas e bens, na saúde e na tranquilidade públicas"8.
Muitas são as definições de ordem pública, todas convergindo para a noção de preservação da ordem social estabelecida. "Conjunto de princípios de ordem superior, políticos, econômicos, morais e algumas vezes religiosos, aos quais uma sociedade considera estreitamente vinculada a existência e conservação da organização social estabelecida". "A ordem pública se constitui de princípios jurídicos que, dadas certas ideias particulares admitidas em determinado país, consideram-se ligados a seus interesses essenciais". "Conjunto de princípios fundamentais, da observância dos quais depende o bom andamento da vida social e que constituem os eixos de todo ordenamento jurídico". Um aspecto negativo (ausência de desordem)
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também pode ser enfocado: "A ordem pública existirá onde estiver ausente a desordem, isto é, os atos de violência contra pessoas, bens ou o próprio Estado"9.
Com Hely Lopes Meirelles, podemos dizer que a ordem pública não é figura jurídica nem instituição política ou social. "É situação fática de respeito ao interesse da coletividade e aos direitos individuais que o Estado assegura, pela Constituição da República e pelas leis, a todos os membros da comunidade". O conceito de ordem política está sempre "vinculado à noção de interesse público e de proteção à segurança, à propriedade, à saúde pública, aos bons costumes, ao bem-estar coletivo e individual, assim como à estabilidade das instituições em geral"10.
A partir da definição de Clóvis Beviláqua, entende-se por ordem pública a situação "cuja manutenção se considera indispensável à organização da vida social, segundo os preceitos do direito"11. Mais explícita é a definição de Enzo Roppo: "Ordem pública é o complexo dos princípios e dos valores que informam a organização política e econômica da sociedade, numa certa fase de sua evolução histórica e que, por isso, devem considerar-se imanentes no ordenamento jurídico que vigora para aquela sociedade, naquela fase histórica"12.
As normas de ordem pública podem ser classificadas segundo diferentes critérios: 1º - quanto à natureza jurídica, as normas de ordem pública podem ser de ordem pública material ou de ordem pública processual; 2ª - quanto ao conteúdo, elas podem ser normas de ordem pública política e moral ou normas de ordem pública econômica e social; 3º - quanto à finalidade, as normas de ordem pública econômica podem ser normas de ordem pública de direção ou de proteção; 4º - quanto à extensão, as normas de ordem pública social podem ser de ordem pública absoluta ou relativa.
As normas de ordem pública material são aquelas que dizem respeito à segurança jurídica e impõem o respeito ao ato jurídico perfeito à coisa julgada e ao direito adquirido. Corre ao Estado democrático de direito o dever de garantir a segurança jurídica, pela injunção de previsibilidade e estabilidade
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das relações jurídicas através de normas que tratam da prescrição, da irretroatividade da lei, da vedação de retroeficácia de nova interpretação dada a lei já existente. Quanto ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido, cabe lembrar que gozam de proteção constitucional (Constituição, art. 5º XXXVI). As normas de ordem pública processual consagram direitos inerentes ao devido processo legal, como o respeito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes (Constituição, art. 5º, LV)13.
A classificação das normas de ordem pública em normas de ordem pública política e moral e de ordem pública econômica e social é descritiva e histórica, já que corresponde à evolução do papel do Estado. A primeira categoria...
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