O direito como valor

AutorMárcio Antonio de Godoy
CargoMestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professor da Faculdade Maria Augusta e das Faculdades Integradas de Jacareí; advogado
Considerações preliminares

Muitos são os juristas ou jus-filósofos que se dedicam a estudar o valor. Porém, devemos destacar que há um ramo notório e desenvolvido na Filosofia que se dedica a estudar a Teoria dos Valores, a Axiologia.1Observamos claramente que muito se evoluiu desde a Filosofia Grega acerca do tema, mas, sem sombras de dúvidas, a problemática continua instaurada no mundo filosófico e muitas perguntas não querem calar acerca do tema sobre o qual nos propomos a escrever estas mal traçadas linhas, como, por exemplo: O que são os valores? Que espécie de ser lhe corresponde? Qual a estrutura ôntica desta classe de objetos ideais? Que espécies e categorias há de valores e qual a sua respectiva dignidade em hierarquia? Que meios de conhecimento temos para os apreender? Em que relação se acham eles com o homem, com a vida, com o espírito, com Deus?

O problema dos valores está definitivamente instaurado no mundo jurídico e filosófico.

Toda sociedade obedece a uma tábua de valores, de maneira que a fisionomia de uma época ou de uma sociedade pode ser logo observada por qualquer um através dos valores que estas ordenam para si.

Podemos elucidar esta afirmação tomando o exemplo do valor Vida que determinadas sociedades julgam "valiosa", porque acreditam que tal valor é indispensável à conservação das mesmas. Assim, aquele que se dispuser a violar tal valor deverá implicarse.

Ousamos dizer que toda manifestação de cultura de uma sociedade, acumulada através das gerações, corresponde a tentativas de aproximação desses valores ideais.

Através dos valores os homens buscam extrair dessas revelações, realidades, indicativos, ou qualquer outro nome que se queira dar ao ideal de Justiça, de Bondade, Liberdade, Beleza, entre outros.

Propomo-nos a efetuar uma análise jurídico-filosófica, onde procuraremos enfocar o Direito como valor, porque entendemos que nem os preceitos religiosos, nem as normas éticas, nem a ordem estética, nem mesmo o Direito terão significado pleno senão na base de uma subordinação valorativa.

Procuraremos, ao longo deste trabalho, trilhar um caminho eminentemente jusfilosófico, procurando demonstrar ao leitor que a validade do Direito se sustenta também alicerçada nos valores e dos valores tira parte da sua eficácia, buscando provar que o Direito é obra dos homens e que, sendo próprio da atitude humana a valoração, a ciência humana denominada Direito deve ser compreendida dentro de uma atitude que se refere à realidade dos valores.

O professor Miguel Reale afirma categoricamente que o jurista que não se apercebe da importância da Axiologia para o Direito deve mudar de profissão, uma vez que a atitude do jurista implica em uma tomada de posição perante os fatos, perante aquilo que na conduta humana se refere a valores.

Acreditamos, como muitos doutrinadores, que não pode haver uma justa visão de qualquer obra ou produto humano, se nos abstrairmos do fim para que serve e do seu valor. Uma consideração cega aos valores a respeito do Direito ou de qualquer fenômeno jurídico é, ao nosso ver, inadmissível.

Temos por certo que não trataremos de dissecar todos os assuntos que possam envolver o Direito como valor, procurando assim contribuir, ainda que de maneira simplória, para o crescimento intelectual da comunidade jurídica.

Sabemos que o tema que nos propomos a estudar, ou seja, o Direito como Valor, tendo como perspectiva a Filosofia do Direito, é assunto inesgotável e que perpassa toda a Filosofia e a Filosofia do Direito.

1. A teoria dos valores
1. 1 Axiologia

Muito embora não constitua objeto do nosso estudo um aprofundamento acerca da axiologia, antes de adentrarmos o tema propriamente escolhido para reflexão deste trabalho, fazem-se necessárias algumas considerações, bem como uma introdução ao tema da axiologia, para que possamos situar o leitor acerca do que vamos tratar.

É fato notório que a Filosofia busca realizar uma compreensão total, ao passo que as ciências culturais, por exemplo, buscam realizar uma compreensão parcial dos fatos. A Filosofia, crítica da ciência, objetiva o valor essencial das coisas e dos atos, tendo como um de seus problemas centrais o valor.

Todas as pessoas têm uma certa idéia do que seja um valor, ainda que simplória e prematura. Tanto é verdade a afirmação que fazemos, que, se porventura pedíssemos a um indivíduo com pouco ou nenhum grau de instrução que nos desse alguns exemplos de valores, provavelmente ele nos responderia sem grandes dificuldades uma infinidade de valores, tais como; a liberdade, a justiça, a beleza etc.

Sabemos, porém, que muito embora todos saibam falar em valores, poucos são aqueles que possuem uma idéia precisa sobre a axiologia, dada à complexidade da temática, uma vez que possui dimensões prodigiosas, por dizer respeito principalmente a problemas fundamentais do espírito.

Quando se ouve falar em filosofia, muitos atrelam a ela assuntos sem qualquer relação com a vida prática, sem nexo de causalidade, desprezando assim qualquer aspecto prático e utilitário para a vida, esquecendo-se de que, como destacado por Benedito Motta, "se lembrarmos que toda a especulação filosófica é necessariamente crítica, e que criticar implica em valorar, em apreciar algo sob o prisma de valor, chegaremos à conclusão de que, nesse sentido especial ou a essa luz, a Filosofia é Axiologia" 2.

Como ciência propriamente dita, a filosofia ramifica-se, de modo que um determinado ramo vai cuidar da política, outro da arte, outro ainda da ética, etc., todos buscando explicações sobre a vida e os fenômenos que atinem diretamente ou indiretamente ao homem.

A axiologia se constitui um desses ramos da ciência filosófica, como teoria dos valores morais, abordando filosoficamente as questões éticas e culturais, daí dizermos que o problema do valor esteja no centro da Filosofia, lembrando-nos Lúcio Craveiro da Silva que "desconhecê-lo, seria retardar o progresso da ciência e fomentar questões parasitárias"3.

Ao buscarmos a raiz etimológica da palavra axiologia, veremos que deriva do grego, onde axios significa estima, valor, valioso ou apreciação de alguma coisa. Em termos científicos, designa o estudo das relações que o homem tem face ao ser, no sentido de apreciá-lo ou não, de estimá-lo ou não.

Os dicionários de filosofia, ao descreverem a axiologia, expressam-se como sendo parte da filosofia consagrada ao estudo da natureza e critério de valores e juízos de valores em termos gerais. Em outras palavras, examina e estuda a natureza dos valores, tendo como enfoque principal a sociedade e seus valores.

Os dicionários de filosofia nos fornecem ainda a noção de que a axiologia possui duas extensões, que são a ética e a estética.

Paulo Dourado de Gusmão nos traz valiosa colaboração ao lecionar que "entendida a ética como doutrina do valor do bem e da conduta enquanto objetiva, observa o Prof. Reale: 'é preciso lembrar que ela não é senão uma das formas de 'conhecimento e de experiência de valores', ou, por outras palavras, um dos aspectos da Axiologia ou Teoria dos Valores, que constitui uma das esferas autônomas de problemas postos pela pesquisa ontognoseológica, pois o ato de conhecer já implica o problema do valor daquilo que se conhece"4.

O problema axiológico, ou seja, a busca do conhecimento do valor em sua natureza quase inefável, ocupa lugar privilegiado no olhar crítico dos filósofos, uma vez que desde os primórdios da filosofia, lá na Grécia Antiga, encontramos Platão e Aristóteles debruçando-se acerca do tema, sendo, portanto, a axiologia um nome novo para um velho problema5.

A teoria dos valores, ou axiologia, como muitos a preferem designar, segundo Soares Martinez,

já foi abordada pelos filósofos gregos, especialmente por Platão e Aristóteles. A escolástica tomista absorveu-a na temática geral do ser. Com Kant a problemática do valor deslocou-se da natureza das coisas para a consciência do homem. Finalmente, neste século, a Filosofia deu o maior relevo à temática da axiologia. Mas sem unidade de princípios, de metodologia ou de conclusões. As divergências provêm da própria dicotomia que separa a axiologia de Platão da axiologia atribuível a Kant. Para Platão, como já para Sócrates, a formação dos valores corresponde à defesa de uma objetividade, de um absoluto, contra o relativismo e o subjetivismo dos sofistas. Mas esse subjetivismo, esse mesmo relativismo, ressurgiram, sobre o abandono da Escolástica, em pleno vigor, com Kant, para quem nada pode ser julgado bom, sem restrições, excepto uma boa vontade. É a negação de qualquer valor objetivo. Também para Nietzsche, a invocação dos valores não é de sentido valorativo, porque os refere apenas com o propósito de invertê-los. Talvez para substituí-los por outros, mas, sem dúvida, para destruí-los 6 .

Cabral de Moncada, via Benedito Motta, afirma que da axiologia

...a verdade é que este como que ramo autônomo do saber filosófico, mesmo depois da aplicação do método fenomenológico à investigação dos problemas dos valores tentada pelos dois últimos filósofos contemporâneos (Max Scheler e Nikolai Hartmann)..., se encontra ainda nos seus começos. A axiologia como que ensaia os seus primeiros passos. É mais, por enquanto, aquilo que nela há de perspectivas grandiosas, de sugestões interessantes, de pressentimentos magníficos, sobretudo no seu capítulo ontológico, do que há de problemas definitivamente delimitados e postos, quanto mais de soluções conquistadas e firmes7.

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