Direito do Trabalho e Constitucionalismo

AutorMaíra Neiva Gomes; Cynthia Lessa Costa
Páginas257-267

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Introdução

A história do constitucionalismo está ligada a história do Direito do Trabalho. Isto porque, no momento de construção e afirmação desses dois ramos do Direito, os trabalhadores formaram um agente histórico determinante.

Além disso, é com o desenvolvimento do constitucionalismo moderno que a democracia, seus instrumentos e institutos se consolidam, sendo que o Direito do Trabalho é um dos elementos essenciais desta consolidação, uma vez ele permite a concretização mais ampla da democracia, ao propiciar que esta se realize em seus múltiplos aspectos, tais como suas dimensões plurinormativas, social e econômica1.

No entanto, atualmente ainda se vive uma fase em que muitos direitos fundamentais - especialmente os trabalhistas - não passam de promessas normativas.

O intuito do presente estudo é buscar demonstrar como se desenvolveu o constitucionalismo, a partir do século XVIII, destacando a participação dos movimentos organizados dos trabalhadores em suas diversas fases.

Posteriormente, tentar-se-á descrever o desenvolvimento do constitucionalismo brasileiro, bem como o papel das organizações de trabalhadores em sua construção. Por fim, serão analisados os principais desafios atuais para a concretização dos direitos fundamentais.

1. A derrubada do antigo regime, o constitucionalismo liberal e os trabalhadores

Embora as primeiras Constituições do mundo moderno datem dos séculos XII e XIII, quando a Carta das Liberdades (1100 d. C.) e a Magna Carta (1215 d. C.) limitaram os poderes reais na Inglaterra, é com as Revoluções Burguesas do século XVIII que o constitucionalismo se firma na ordem jurídica, inaugurando uma nova forma de se compreender o Direito.

É que a bandeira de um Estado regido por uma lei maior, formal e que dispusesse, expressamente, sobre a separação dos Poderes e a garantia de direitos do homem2 foi erguida nas Revoluções do século XVIII, sendo que a burguesia, na derrubada dos governos absolutistas, aliou-se aos trabalhadores para realizá-las.

A Constituição norte-americana de 1787 e a francesa de 1791 são fruto - embora em intensidades distintas - das ideias republicanas e também dos movimentos dos trabalhadores.

Genericamente, é comum se afirmar que as Revoluções Burguesas são fruto do pensamento iluminista. Sem sombra de dúvidas, esse movimento cultural, que foi dirigido pelas elites intelectuais, contribuiu com enorme arcabouço ideológico e filosófico para tais Revoluções.

No entanto, a contribuição dos trabalhadores e das camadas populares foi essencial para a realização da derrubada do Antigo Regime. O historiador E. P. Thompson3 relata que

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o nascimento do movimento organizado dos trabalhadores se dá, na Inglaterra, a partir das Sociedades de Correspondência, onde se discutiam ideias republicanas, com intensa troca de informações entre trabalhadores ingleses, franceses e norte- -americanos, ainda no século XVIII.

Em tais sociedades, discussões republicanas se cruzavam com temáticas relacionadas às condições de vida e trabalho, que estavam se deteriorando devido à crise econômica e institucional do Regime Absolutista e também do modelo feudal, manufatureiro e mercantil de organizar o trabalho.

Thompson4 descreve que o radicalismo reformador inglês é, sem dúvida, subproduto da Revolução Francesa de 1789. O jacobinismo inglês precipitou agitações sociais na Inglaterra que se enraizaram entre os assalariados, modelando as novas experiências dos trabalhadores nos distritos manufatureiros que nasciam na época5.

A Revolução Francesa, por sua vez, teve participação ativa de trabalhadores artesanais, sendo os sans-culottes (jacobinos radicais)6 os maiores agitadores da Revolução, mesmo sendo a França ainda um país eminentemente agrário naquele período.

De acordo Hobsbawm7, os sans-culottes eram trabalhadores urbanos franceses pobres, pequenos artesãos, comerciantes, artífices que se organizavam principalmente em Paris ou em clubes políticos locais. Sua ideologia republicana se combinava com a defesa da pequena propriedade privada, hostilidade aos ricos, defesa de trabalho garantido pelo Governo, salários e segurança social para os pobres, bem como as ideias de democracia direta, liberdade e igualdade mais extremadas do que as defendidas pelos girondinos e pelos próprios jacobinos franceses.

Houve, no seio da Revolução Francesa e também dos movimentos republicanos ingleses e norte-americano, uma disputa dos sentidos dos princípios de liberdade e igualdade. Enquanto os burgueses defendiam a perspectiva negativa e individual de tais princípios, de modo que tais direitos se opusessem ao Estado Monárquico Absolutista, os trabalhadores queriam que tais fossem reconhecidos sob uma perspectiva positiva e coletiva, para garantir uma sobrevivência mais digna.

Porém, após a derrubada do Antigo Regime francês e a disputa interna entre os próprios revolucionários, a burguesia deteve o controle da Revolução e construiu o Estado e o constitucionalismo liberal, impondo seus interesses.

Assim, a primeira fase do constitucionalismo moderno, o constitucionalismo liberal, erigiu como princípios as liberdades individuais, a proteção da propriedade privada e a não intervenção estatal nas relações privadas.

Napoleão Bonaparte levou o constitucionalismo liberal a grande parte da Europa, o que abriu caminho para a consolidação do próprio capitalismo, uma vez que as noções constitucionais propiciavam a liberdade comercial ampla.

Uma vez que o exercício das liberdades e garantias individuais estava relacionado à propriedade privada, no constitucionalismo liberal, a grande parcela da população não detentora de propriedades não podia exercer tais direitos. O direito de votar e ser votado ficaram restritos aos proprietários.

Além disso, a perspectiva do exercício dos direitos fundamentais era individual, o que inviabilizava a possibilidade dos mesmos serem garantidos às organizações de trabalhadores que, em momento anterior, tinham sido de extrema importância para a derrubada do Antigo Regime.

A Lei de Chapelier, de 1791, na França, inclusive, proibiu a associação de trabalhadores que anteriormente havia sido tão essencial a Revolução, o que também foi feito na Inglaterra, por meio dos Combinations Acts, de 1799/1800.

Segundo Santos8, os textos constitucionais liberais representavam a emancipação histórica do indivíduo perante os grupos sociais aos quais ele esteve vinculado. Porém, tal emancipação significou também a perda da proteção do grupo social. O Estado Liberal, em troca, para compensar tal perda, ofereceu a segurança da legalidade e a garantia da igualdade e liberdade formal, o que foi inútil para os trabalhadores.

No entanto, o movimento organizado dos trabalhadores e os sindicatos já haviam tomado corpo e a pressão social acabou fazendo surgir um novo ramo do Direito, o Direito do Trabalho, primeiro ramo jurídico construído pela pressão popular, invertendo a lógica de construção normativa. A norma, nesse peculiar ramo, é construída "de baixo para cima", pelos seus próprios destinatários, o que inverte a própria noção democrática, ao se superar a lógica representativa liberal.

2. O surgimento do movimento sindical e a construção do constitucionalismo social

No início do século XIX, a Inglaterra liderava o processo de formação do capitalismo. As oficinas artesanais, lentamente, foram substituídas pela organização descentralizada da produção, que Viana9 denomina de "fábrica difusa".

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Posteriormente, a produção têxtil - ramo produtivo que deu origem à organização fabril capitalista - foi concentrada em locais únicos, fora dos muros das cidades, a fim de propiciar não somente a utilização de energia proveniente dos rios, mas também a utilização de mão de obra concentrada em um único espaço físico, distante das corporações de ofício e de companheiros que buscavam regulamentar sua utilização10.

No processo de consolidação da produção fabril surgiram as primeiras formas de resistência operária. No início do século XIX, nas regiões de manufatura têxtil da Inglaterra, os luddistas passaram a contestar a nova forma de organização do trabalho, adotando métodos de resistência que pretendiam resgatar suas condições de artesãos. Mas os luddistas também contestaram a monarquia inglesa, invocando as conquistas revolucionárias francesas, como se pode visualizar em panfletos por eles distribuídos na época:

A todos os Aparadores, Tecelões & ao Público em geral,

Magnânimos Conterrâneos:

Vocês estão convocados a se apresentar em Armas e a auxiliar os Justiceiros para reparar os Erros deles e livrar- -se do odioso Jugo de um Velho Tolo, e seu Filho ainda mais tolo e seus Ministros Velhacos, todos os Nobres e Tiranos devem ser derrubados. Venham, sigamos o Nobre Exemplo dos bravos Cidadãos de Paris que à Vista de 30.000 Soldados Tiranos puseram Abaixo um Tirano. Fazendo isso, vocês estarão visando ao seu próprio Interesse da melhor forma. Mais de 40.000 Heróis estão prontos para levantar, para esmagar o velho Governo & estabelecer um novo.11

O desenvolvimento do modelo fabril, lentamente, fez desaparecer as diferenças de ofício entre os trabalhadores que, ao longo das primeiras décadas do século XIX, experimentaram outras formas de organização.

Por volta de 1833, os trabalhadores ingleses desenvolvem o movimento cartista que possuía, além de reivindicações trabalhistas, fortes aspirações democráticas, como o sufrágio universal, o direito dos trabalhadores de serem eleitos e de participar da vida política.

Inaugura-se assim uma nova fase de construção de direitos...

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