O Direito Social à Saúde na Constituinte Brasileira de 1988: Avanço Político

AutorCélia Teresinha Manzan
Páginas45-57

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1. Introdução

Este artigo tem por objetivo anotar as conquistas em relação ao Direito Social à Saúde na Constituinte de 1988. Será apresentada a acepção do termo saúde sob o aspecto histórico, seguindo por comentar a sua evolução nos organismos internacionais.

Ressalta-se que o processo Constituinte foi um importante momento político vivenciado pelo Brasil, pois contou com intensa participação popular e política. Inovou-se com a introdução do Sistema Único de Saúde sob o modelo de um federalismo cooperativo no estado brasileiro.

Assim, a saúde foi reconhecida na raiz constitucional como de aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º, § 1º, da CF/88, o que resguarda a sua eficácia e consequente efetividade. E, por se tratar de uma prerrogativa que é assegurada de forma universal e igualitária à generalidade das pessoas, culminou por se constituir como um direito de todos e dever do estado.

2. Significado de saúde sob o aspecto histórico

Quanto ao significado da palavra saúde, recorremos à concepção dos antigos gregos que considerava como ser humano saudável aquele que detinha um equilíbrio do corpo e da mente. O artigo de pesquisa "A ausência de doença e o conceito de saúde entre os gregos antigos", de autoria de Ribeiro Jr.1, nos mostra que a concepção de saúde era limitada, entretanto, vigeu em várias culturas da antiguidade, especialmente na dos gregos.

Os textos da coleção hipocraticaos contêm a "descrição de tratamentos que visam restabelecer a saúde perdida". Um acordo posterior diz que: "o homem sagaz deve considerar que, para os homens, a saúde é o [bem] mais valioso" (Hp. Salubr. 9 = Aff. 1; cf. VM 3). E ainda, advertem que:

Por outro lado, recomendações para manter a saúde, sem perdê-la, são relativamente comuns em textos

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tardios escritos por não-médicos, como o tratado de Instruções para a boa saúde (lat. De tuenda sanitate praecepta), de Plutarco (c. 50-120 d. C.). Nesse texto, Plutarco defende bons hábitos, como os exercícios regulares, e condena o excesso de bebida, de comida, de luxúria e de outras auto-indulgências.2

Ainda, antes dos filósofos pré-socráticos e dos médicos hipocráticos, no período correspondente à segunda metade do século VII a. C. e o final do século V a. C., arriscavam observações isoladas e ocasionais indicando que já se pensava na saúde como algo que transcendia a simples ausência de doença, e assim enfatizavam que:

A palavra ‘saúde’, deriva do adjetivo ‘são’. No Período Clássico, qualificava o bom funcionamento do corpo e da mente, e ainda a ausência de males de várias espécies. Esses conceitos estão bem documentados nos diálogos platônicos, em que ‘[saúde] é o nome que se dá ao estabelecimento da regularidade e da ordem no corpo’ (Pl. Grg. 504b), em Eurípides (passim, v. g. Andr. 944-53, Hel. 744-7, Ph. 200-1, Or. 590) e em outros.3

Em conformidade com Ribeiro Jr., desdobramentos posteriores foram agregados à saúde ao lado dos conceitos tradicionais:

Eurípides, no Hipólito (428 a. C.), afirmou que (261-3) práticas de vida rigorosas, dizem, levam mais à queda do que à plena satisfação e fazem excessiva guerra à saúde. O poeta, aparentemente, tinha consciência de que excessivo rigor na condução das obrigações da nossa vida acarreta agravos à saúde; um médico de nossos dias, dirigindo-se a um paciente, certamente diria algo muito semelhante... Quanto a Aristófanes, em Aves (414 a. C.), o poeta atrelou a saúde ao bom andamento dos negócios (603-5): Pi. Se os negócios vão bem, isso não é o principal para a saúde? Eu. É óbvio, pois nenhum homem tem saúde se os negócios vão mal.

Destarte, sob a óptica dos antigos gregos, a saúde era compreendida como ausência de doenças e, desde então, para ter saúde era importante, além, ausência de doenças, o equilíbrio físico, mental e o bem-estar social. Os gregos, embora cultuassem os deuses da saúde e, por não conhecerem a Biologia, se remetiam a aspectos divinos ou mágicos em matéria de saúde. Em uma cultura voltada para a magia, "eram os feiticeiros, pajés, druidas ou xamãs"4.

Posteriormente, já no regime feudal, depois da queda do Império Romano, a saúde contou com regresso, pois a Igreja e o absolutismo fizeram ressurgir rituais religiosos de curas5.

Os mosteiros começaram a ressuscitar a medicina grega em meados de 1240, iniciando processos de dissecação de cadáveres, época em que se tem notícia das primeiras corporações médicas e, de acordo com Davies6. Para Dallari, referenciando-se aos antigos gregos, no que tange à conceituação de saúde diz que:

Muito já se escreveu a respeito da conceituação de saúde durante a história da humanidade. No auge da democracia grega, Hipócrates mencionou a influência da cidade e do tipo de vida de seus habitantes sobre a saúde e afirmou que o médico não erraria ao tratar das doenças de determinada localidade quando tivesse compreendido adequadamente tais influências. 7

Schwartz anota que os Estados Unidos começaram a pensar em saúde como bem acessível a todos, no que é seguido pela Revolução Francesa, advindo, assim, um imenso avanço na sua conceituação8.

Com maestria, Guimarães ressalta que:

A urbanização e o período industrial também muito colaboraram para a mudança desta mentalidade. Isto porque as indústrias precisavam de operários saudáveis para a garantia da linha de montagem e do lucro. Ademais a convivência próxima do ambiente urbano favorecia a conta-

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minação dos industriais com seus empregados. Daí, então surge a responsabilidade do Estado pela Saúde do povo e com isto a idéia de direito à saúde. 9

No século XX, o temário da saúde ganhou um novo espaço, suplantando a ideia de saúde curativa para uma saúde preventiva. O Estado, nessa conjuntura, passou a fazer parte.

3. A saúde no âmbito internacional e a concepção vigente

O Estado passou a prestar assistência à saúde depois do período das grandes guerras. Em 1945, na Conferência realizada na cidade de São Francisco, fundou-se a Organização das Nações Unidas - ONU, e, neste momento, lavrou-se um documento sobre os direitos humanos, expressando os direitos culturais, econômicos e sociais. Em dezembro de 1948, criou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos e, finalmente, concluiu-se pela necessidade de se instituir uma Comissão de Direitos Humanos como uma das medidas basilares desta nova Organização.

Para Dallari et al., a saúde é indiretamente reconhecida como direito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), onde é afirmada como decorrência do direito a um nível de vida adequado, capaz de assegurá-la ao indivíduo e à sua família (art. 25)10.

Com a criação da ONU, surgiram organismos especializados com fins à garantia dos direitos fundamentais básicos e, dentre eles, a Organização Mun-dial da Saúde - OMS, onde a saúde foi entendida e reconhecida como direito fundamental, essencial ao ser humano e imprescindível à dignidade humana. Assim, consequentemente, harmoniza-se o direito à saúde que é pressuposto da vida. Na Carta da OMS, evidencia-se a saúde como Direito Humano e mais:

A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econô-mica ou social. 11

Tem sido objeto de indagações a conceituação de saúde ofertada pela Carta da OMS, em relação, especificamente, aos elementos que integram a definição. Asseveram a subjetividade constante da definição. Assim, o que seria um completo bem-estar? Para Dejours (1986), apud Dallari e Nunes Júnior, "convencido de que não existe o estado de completo bem-estar, a saúde deve ser entendida como a busca constante de tal estado"12. Dallari e Nunes Jr. destacam, ainda, que:

A saúde depende, ao mesmo tempo, de características individuais, físicas e psicológicas, mas, também, do ambiente social e econômico tanto daquele mais próximo das pessoas, quanto daquele que condiciona a vida dos Estados. O que obriga afirmar que, sob a ótica jurídica, a saúde deverá inevitavelmente implicar aspectos individuais, sociais e de desenvolvimento. [...] deve-se observar que qualquer conceito de saúde deve carrear características de generalidade e de abstração. [...] Os conceitos, em regra, devem ignorar diferenças pontuais entre elementos de uma mesma categoria. Logo, o conceito jurídico de saúde humana deve partir dos traços comuns a todos os seres humanos, tratando-os - só para o fim de delineamento do juízo hipotético, é evidente - como se todos idênticos fossem. [...] é impensável que se conceba saúde sem uma dimensão coletiva que envolva a comunidade e o Estado, que, por meio de ações variadas, intervém não só em atividades prestacionais, como também no controle sanitário e de zoonoses. 13

Observa-se que inexiste uma acepção de saúde de forma pontual. Conforme bem pontuaram Dallari e Nunes Jr., diversos aspectos devem ser levados em consideração. Há uma integração dinâmica de aspectos outros consistentes nos individuais, coletivos e de desenvolvimento.

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