O direito à saúde no Brasil: reflexões iniciais

AutorFelipe Dutra Asensi
Páginas23-62
1.1. Constituição material e direito vivo em saúde
As re exões que se desenvolveram no âmbito da teoria do direito produziram
diversas ideias e perspectivas que buscam superar o paradigma formalista do
direito, o que possibilita a inserção de critérios materiais e substanciais em seu
sentido e alcance. Ao longo da história, algumas perspectivas teóricas buscaram
pensar o direito enquanto valor e, assim, promover uma re exão mais aprofun-
dada a respeito de suas dimensões éticas, políticas e sociais.
Usualmente, sobretudo no que concerne ao direito público, desde o século
XIX tem sido realizado o debate sobre as diferenças e simetrias entre a ideia de
Constituição formal e de Constituição material. A primeira, em geral, se associa
à cristalização dos direitos num texto escrito, comumente constituído como
sua fonte formal. Com isso, conforme salienta José Afonso da Silva, diz respei-
to ao “peculiar modo de existir do Estado, reduzido, sob forma escrita, a um
documento solenemente estabelecido pelo poder constituinte” (Silva, 1993, p.
42). Tal documento somente pode ser alterado mediante procedimentos e for-
malidades especiais próprias da organização do Estado e das leis que lhes são
correspondentes.
A ideia de Constituição material, por sua vez, permite pensar a existência
de direitos constitucionais que não se encontram, necessariamente, positiva-
dos, escritos ou previstos na regra jurídica. Seria, em verdade, uma constelação
de valores presentes numa dada sociedade que se cristalizam enquanto direito
vigente. Na perspectiva de Alexandre de Moraes, seria “o conjunto de regras
materialmente constitucionais, estejam ou não codi cadas em um único do-
cumento” (Moraes, 2007, p. 3). Trata -se de uma perspectiva que, dentre suas
diversas con gurações, pode ser associada a dois sentidos:
a) amplo, que se identi ca com o regime político do Estado;
b) restrito, que designa as normas constitucionais escritas ou costumeiras,
que regulam a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os direitos
fundamentais.
CAPÍTULO I
O direito à saúde no Brasil: reflexões iniciais
24 INDO ALÉM DA JUDICIALIZAÇÃO: O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SAÚDE NO BRASIL
Diante dessa distinção, as teorias do direito constitucional debruçaram
suas re exões sobre a formulação de diversas tipologias das constituições, sob
o pressuposto da existência de normas que não necessariamente se encontram
escritas ou previstas expressamente no texto constitucional, mas que são mate-
rialmente constitucionais porque re etem valores sociais. Com isso, tais teorias
abriram a possibilidade de construção e reconhecimento de direitos que, em-
bora não constantes do texto formal, preservam sua força normativa num dado
ordenamento jurídico, de modo a fundamentar sua validade a partir de fontes
políticas, sociais, econômicas etc.
Um dos autores do campo do direito que mais se dedicaram a essa temática
foi Ferdinand Lassale. Contemporâneo de Karl Marx — com o qual compar-
tilhou alguns momentos, a exemplo da Revolução de 1848 —, Lassale buscou
pensar justamente os aspectos não -formais que são constituintes de uma ordem
jurídica. Com isso, buscou apresentar uma concepção material -sociológica de
Constituição. O autor parte do princípio de que a Constituição não é mera
norma escrita, é realidade. E, por ser realidade, a Constituição é informada pela
articulação e conjugação de fatores reais de poder, isto é, elementos de poder
presentes nas relações que os indivíduos estabelecem em sociedade. A Consti-
tuição, portanto, seria um re exo dos arranjos institucionais, sociais, políticos,
econômicos e históricos que permeiam sua formulação e concretização. Em seu
argumento, se uma Constituição não corresponde aos fatores reais de poder de
uma sociedade, essa Constituição consiste numa mera folha de papel, ou seja,
não possui relevância social e e cácia para os atores no cotidiano de suas práti-
cas. Seria um texto que não possui efeitos concretos, uma “forma” sem “alma”,
ou, na acepção contemporânea, uma norma desprovida de efetividade5.
Segundo Lassale, em essência, a Constituição de um país é “a soma dos fa-
tores reais do poder que regem uma nação” (Lassale, 1988, p. 19). Uma vez que
tais fatores reais se articulam e estabelecem pontos de interação que constroem
sentidos aos atores, “os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem
expressão escrita” (Idem). Com isso, a partir desta incorporação em forma de
papel, “não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito —
instituições jurídicas” (Idem).
Por essa razão, apesar de não ser objeto próprio de sua re exão, a con-
cepção de Lassale nos permite, atualmente, afastar a ideia de que o direito é
5 No Brasil, a ideia de efetividade da norma jurídica foi amplamente trabalhada por Luis Roberto Barroso
em artigos, palestras e livros. A obra Direito Constitucional e efetividade de suas normas (Barroso, 2006)
busca justamente sistematizar os desa os e estratégias atinentes à efetividade de direitos constitucionais
no Brasil. O autor, em outra oportunidade (Barroso, 2008), ainda dedica especial atenção aos desa os
da efetividade do direito à saúde no Brasil.
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: REFLEXÕES INICIAIS 25
um campo fechado, autopoiético, coeso, ausente de contradições etc. Lassale
permite pensar no interior do processo de formulação de normas jurídicas os fa-
tores sociais orientados por relações de poder presentes em qualquer sociedade.
Ao se admitir esse pressuposto, os problemas constitucionais não seriam, prima
facie, problemas meramente de direito, mas, fundamentalmente, de poder, que
consistiria na “alma” da Constituição.
No Brasil, a perspectiva da existência de uma Constituição material rece-
beu atenção de muitos estudiosos e pesquisadores, sobretudo pelo que se con-
vencionou denominar de doutrina brasileira da efetividade, que possui, dentre
os seus expoentes, o jurista Luis Roberto Barroso. O argumento central desta
perspectiva consiste no seguinte: para além da e cácia jurídica que uma norma
possui, ou seja, sua possibilidade de produzir efeitos num ordenamento jurídico
porque formalmente válida, o autor sugere o debruçar sobre a e cácia social das
normas, ou seja, a possibilidade de produzirem efeitos concretos no cotidiano
das práticas dos atores sociais.
Ao partir do pressuposto de que o direito existe para se realizar, a ideia de
efetividade signi ca o desenvolvimento concreto da função social do direito.
“Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e sim-
boliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever -ser normativo
e o ser da realidade social” (Barroso, 2006, pp. 82 -83). Portanto, busca pensar
o desenvolvimento dos direitos na prática, de modo a superar a perspectiva
formalista que se traduz na mera e cácia jurídica.
*****
Porém, talvez seja no campo da sociologia do direito que essa discussão
tenha recebido maiores atenções acadêmicas. Jean Carbonnier, por exemplo,
aponta que o direito se consolidou historicamente por meio da ênfase de sua
autonomia em relação às outras ciências. Mais precisamente, o que explica a
ampla adesão a esta ideia é a defesa da exclusividade do direito e do dogma-
tismo, a rmando que “é próprio dele [direito] ser um deus ciumento que não
tolera partilhas: cabe ao direito negar a qualquer outro sistema o título de di-
reito” (Carbonnier, 1980, p. 42). O campo do direito, portanto, evita, repele e,
estigmatiza qualquer explicação que não seja realizada por ele próprio. É Deus
porque se propõe a responder todos os fenômenos sob uma perspectiva univer-
salista; e é ciumento porque se propõe a responder sozinho, ou seja, sem a incor-
poração de outros campos de saber em seu discurso. A ênfase na explicação do
direito pelo direito é um elemento importante para a solidi cação e manutenção

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