Refundando o Direito Penal do Trabalho - Primeiras Aproximações

AutorGuilherme Guimarães Feliciano
Páginas28-5

O presente artigo tem origem em palestra proferida na cidade de montevideo, em 08.08.2008, na Faculdade de Direito da Universidade de la Republica - UDELAR (Escuela de Posgrado), a convite da Associação dos magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (AMATRA-IV), no Curso de posgrado sobre los cambios recientes en la legislación laboral (montevideo, UDELAR/AMATRA-IV, 04 a 08.08.2008).

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1. Introdução

Se o leitor examinar as referências do Título IV da Parte Especial do Código Penal brasileiro (Dos Crimes contra a Organização do Trabalho) no conhecido Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, coordenado por Alberto Silva Franco (5ª edição), não identificará mais do que cento e cinco arestos a respeito do tema, no decorrer de vinte e nove páginas, entre doutrina e jurisprudência (SILVA FRANCO et al., 1995, pp. 2351-2379). Ou seja: cento e cinco arestos para onze tipos penais, o que perfaz média aproximada de dez arestos por fattispecie (na verdade, menos que isso). Desses arestos, a maioria trata de questões de competência (Justiça federal vs. Justiças estaduais), sem discorrer sobre quaisquer aspectos materiais da tutela penal laboral. E, nas edições subsequentes, esse quadro quantitativo não se altera significativamente.

A título de comparação, a mesma obra traz, com respeito ao homicídio - o simples (artigo 121, caput, do Código de Processo Civil), o privilegiado (artigo 121, § 1º), as figuras qualificadas (artigo 121, § 2º) e a modalidade culposa (artigo 121, § 3º) -, duzentos e trinta e oito páginas, com mais de mil arestos. Isso para um único tipo penal (com seus subtipos). E, no entanto, a doutrina universal tem sustentado, desde meados do século XX, que o trabalho humano é uma projeção da própria personalidade do trabalhador, confundindo-se com a sua própria vida em sentido dinâmico...

Noutra alheta, com respeito ao crime de redução à condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal) - crime de elevado potencial ofensivo, com penas cominadas de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência -, a jurisprudência nacional é igualmente hesitante. A ponto de merecer, em passado recente, a censura da própria Organização Internacional do Trabalho: vejam-se as referências feitas ao caso brasileiro nos relatórios da 74ª e da 75ª reunião da Comissão de Peritos da OIT sobre a Convenção n. 29 (Sobre o trabalho forçado ou obrigatório).

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Dados como esses permitem concluir que as questões penais laborais não têm povoado a jurisprudência nacional com o devido vigor. Não como se poderia esperar - na perspectiva de um observador neutro - em um país que já ocupou as primeiras posições nos índices mundiais de infortunística laboral.1

Diante disso, abrem-se à mente do operador mais atento três ordens de indagações:

  1. por que razão o acesso à justiça penal é tão restrito em matéria laboral, notadamente quando se sabe que o brasil - estado e sociedade civil - não é bom cumpridor do standard mínimo de deveres inerentes à noção internacional de trabalho decente (elevada infortunística, focos de trabalho escravo, focos de trabalho infantojuvenil ilegal, históricos de atos antissindicais, etc.)?

  2. que papel o direito penal poderia cumprir no universo das relações de trabalho (admitindo-se que, hoje, não cumpre praticamente papel algum)?

  3. quais os caminhos mais acessíveis para o desencargo desse novo papel institucional refundado?

Conquanto não pareça, responder adequadamente a essas três questões reclamaria alguns volumes de reflexão política, jurídica e sociológica. Não é esse o propósito do presente texto. Nossa intenção é unicamente introduzir o debate, com especial atenção às duas primeiras indagações (visto que, em relação à terceira, já publicamos2 e tornaremos a publicar). O debate científico, diga-se; não o sectário ou o político-ideológico. Se conseguirmos, o esforço não terá sido em vão.

2. Direito penal do trabalho - noções

Não há, em doutrina, definições consistentes do que seja o "Direito Penal do Trabalho". Se nos coubesse definir, diríamos que, em sentido objetivo, o Direito Penal do Trabalho é o segmento do Direito Penal especial predisposto à tutela jurídica fragmentária (ultima ratio) da dignidade humana da pessoa trabalhadora e da organização geral do trabalho. Por evidente, não tem autonomia científico-dogmática, enciclopédica ou acadêmica, nem se desprende do Direito Penal. É apenas uma sua especialização (como também é, p. Ex., o Direito Penal Econômico e o Direito Penal Ambiental),3 sem maiores pretensões. Nada obstante, por essa própria natureza interseccional, tende a encruzilhar, tanto no processo legislativo como nas operações hermenêuticas, princípios inerentes ao Direito Penal (taxatividade, culpabilidade, fragmentariedade, insignificância, etc.) e princípios próprios do Direito do Trabalho (primazia da realidade, irrenunciabilidade; menos frequentemente, princípio da proteção e princípio da continuidade da relação de emprego). E aqui, justamente, reside a sua maior riqueza. Afinal, sem essa percepção axiológica, jamais será mais que uma noção sem consequências.4

No entanto, admitir a existência de um "Direito Penal do Trabalho" é admitir a possibilidade constitucional de criminalização em sede de ilícitos laborais e afins. Em tempos de Direito Penal mínimo, de abolicionismo penal e de recorrentes processos legislativos de descriminalização (como recentemente se viu, no Brasil, em sede de delitos contra os costumes),5 isso não é pouca coisa.

Afinal, o valor social do trabalho, pensado in abstracto, engendraria importância bastante para desafiar a tutela penal estrita? Aliás, seria o legislador ordinário - entre nós, por força do artigo 22, I,

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da CRFB - um agente criador plenamente livre para estabelecer sanções penais às condutas que bem lhe aprouvessem, sem qualquer parâmetro superior?

CLAUS ROXIN (1997, pp. 51-58) respondeu bem a tais questões. Na percepção do catedrático alemão, os processos legislativos de criminalização não se guiam ao inteiro talante do legislador ordinário. Há, nos Estados Democráticos de Direito, um programa penal constitucional, do qual o legislador não pode se desviar sensivelmente. É dizer: nem tudo pode ser criminalizado. Essa tese - que se ensaiou noutras paragens e já se tem por adquirida em boa parte das doutrinas estrangeiras (inclusive no Brasil) - atende bem aos propósitos do garantismo penal (LUIGI FERRAJOLI, 2000, pp. 353-367) e promove, ao mesmo tempo, uma superfetação da chamada "teoria constitucional do direito penal". E é bom que seja assim. Previnem-se, por essa via, intromissões indevidas do Estado na esfera individual (como ocorrem, p. Ex., nos países que criminalizam atos homossexuais entre maiores e capazes, ou naqueles sistemas que outrora profligavam a miscigenação racial, conquanto as respectivas Constituições fossem silentes a respeito).

Nessa linha de ideias, ROXIN vale-se de exemplos históricos e lições análogas para identificar quatro grupos principais de "objetos" que não devem se servir do Direito Penal. Na perspectiva constitucional-garantista, o Direito Penal não pode se prestar a (a) cominações penais arbitrárias (como na lenda de WILHELM TELL, preso pelo "crime" de não reverenciar em praça pública o chapéu do governador GREßER, nos tempos da dominação austríaca); (b) finalidades puramente ideológicas (a exemplo dos tipos penais abertos que grassaram durante o regime alemão nacional-socialista, voltados a punir tudo o que atentasse contra o Volkgeist, i.e., o "espírito do povo"); (c) repressão a meras imoralidades (como os tipos incriminadores de certas modalidades de atos sexuais); (d) guarida de preceitos penais que criem ou assegurem desigualdade entre seres humanos (como nos tipos penais segregatórios ou de "apartheid", já referidos há pouco).

É fácil perceber, todavia, que o trabalho humano - e a sua organização público-coletiva - não pode ser reduzido a nenhuma dessas categorias. Afinal, insista-se ainda uma vez, o trabalho é uma projeção da personalidade humana do trabalhador, confundindo-se com a sua própria vida em sentido dinâmico (supra). Ou, se com ela não se confunde, é um seu atributo indissociável. Trabalha-se para viver; e, não raro, vive-se para trabalhar. São mundialmente conhecidas as estatísticas do sistema japonês de relações de trabalho, a apontar, no século XX, vertiginoso aumento do "tempo de empresa" do trabalhador (i.e., do tempo em que o trabalhador permanece no meio ambiente de trabalho, cumprindo ordens ou aguardando-as, em detrimento do convívio familiar), chegando aos limites do "Karoshi" (= morte por exaustão laboral). Sob tais circunstâncias, admitir a tutela penal para inibir as agressões mais contundentes à dignidade do trabalhador (trabalho escravo ou degradante, assédio sexual ou assédio moral intenso, sujeição negligente a risco iminente de dano físico, etc.) é admiti-la para, direta ou indiretamente, proteger a vida; e, antes dela, a condição mesma de autorrealização integral do indivíduo (FERNÁNDEZ, 1998, p. 424).

Mas não é só. O trabalho não é constitucionalizado apenas em seu valor humano, mas também - e sobretudo - em seu valor social (artigo 1º, IV, da CRFB). É, indiscutivelmente, um bem jurídico-constitucional inerente à gama de Constituições democráticas contemporâneas, em todo o seu espectro ideológico (desde as mais liberais até aquelas mais engajadas socialmente, próprias de Estados outrora designados como "Estados de Direito Democrático" - veja-se, por todos, J. J. GOMES...

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