Direito penal do inimigo

AutorKai Ambos
CargoProfessor da Faculdade de Direito da Universidade de Göttingen, Alemanha
Páginas1-45

    Título original: «Feindstrafrecht», publicado na “Schweizerische Zeitschrift für Strafrecht”, tomo 124 (2006), 1-30: publicado em espanhol em Cancio Meliá/Gómez-Jara Díez (coord.), Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión, Madrid/Buenos Aires 2006, vol. 1, p. 119-162. Agradeço ao ajudante científico Sr. Nils Meyer-Abich pelo importante auxílio prestado na coleta de materiais e pela conformação do artigo original; tradução do original de Carlos Gómez-Jara Díez. Atualização e revisão pelo autor, com a colaboração de Miguel Lamadrid, doutorando pela Universidade Pompeu Fabra e bolsista do DAAD no Departamento de Direito Penal Estrangeiro e Internacional do Instituto de Ciências Criminais da Universidade de Göttingen. Todas as traduções do original alemão são de Gómez-Jara, de Lamadrid ou do próprio autor. Tradução da versão espanhola atualizada ao português.

Tradução: Pablo Rodrigo Alflen*

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Introdução

A retomada do direito penal do inimigo por parte de Günter Jakobs tem gerado ondas altíssimas não só no debate jurídico-penal de língua alemã, senão,Page 2 principalmente, de língua espanhola, portuguesa e italiana1. Como ocorre de forma tão habitual, o pensamento de Jakobs tem sido introduzido rapidamente por seus talentosos discípulos nos países dominantes do âmbito jurídico da Europa continental – o chamado “direito continental”. Na versão espanhola de minha “Parte general del Derecho penal internacional”, já havia me pronunciado sobre as novas teses de Jakobs, afirmando que: “Prescindindo de que tal concepção dificilmente possa se mover hoje no terreno de nossa ordem constitucional, centrado na dignidade humana, é mais preocupante o fato de que possa conceder a futuros regimes injustos, uma legitimação teórica, pense-se só na propagação em massa das teses jakobsianas no ambiente latino-americano.”2 “Trata-se (…) de estar conscientes e atentos frente à periculosidade intrínseca de uma concepção que, segundo seu próprio autor, de um mero instrumento de análise crítica do estado do direito penal, foi radicalizada e convertida em uma concepção que não se limita mais à mera descrição, senão que, ao contrário, postula e exige a exclusão e marginalização dos inimigos do sistema (dominante), o qual pode perfeitamente servir como base teórica ou fundamentação de um regime (penal) de corte autoritário3. Esta volta da concepção de Jakobs do direito penal do inimigo não foi percebida nem sequer por todos seus discípulos (…) e não pode ser defendida invocando simplesmente os méritos da concepção global do citado pensador. Enfim, o que merece ser criticado na nova posição de Jakobs é sua ambigüidade até mesmo na utilização de certos termos, uma ambigüidade que pode dar lugar a abusos.”4

Continuo considerando que esta crítica, de cuja essência compartilham vários autores5, é correta. No entanto, agora considero que deve distinguir-se entre aPage 3 aplicação do direito penal do inimigo como categoria analítico-descritiva para criticar o direito penal expansivo6 de caráter nacional e internacional e sua postulação e legitimação no sentido de um programa político-criminal7. A Jakobs só se pode reprovar o último na qualidade de protagonista da discussão atual. Portanto, no que segue me proponho demonstrar – depois de uma aproximação histórica ao conceito de inimigo (infra I) – que o discurso de Jakobs passou de uma mera descrição a um programa político-criminal (especialmente infra II.2.b)) e que é nesse ponto em que reside o aspecto alarmante e perigoso (II.). A isso lhe contraponho o modelo de um direito penal adequado ao ser humano, que apesar de não ser novo, volta a ser importante.

1. O inimigo – uma aproximação ao conceito
1.1. O inimigo na filosofia do direito e do Estado

Em seus escritos sobre o Estado ideal, Aristóteles exige que suas cidades se preparem para tempos de guerra e para tempos de paz. Deve-se evitar que os inimigos conquistem a cidade e isso através de mecanismos reforçados e zonas e formas de construção de difícil acesso8. Quando trata o tema do inimigo externo, as reflexões de Aristóteles sobre aqueles cidadãos do Estado que «deveriam ter se comportado como as partes de um todo ao qual pertencem» fazem referência ao inimigo interno: aquele que não pode ou não deve viver em comunidade não é «membro do Estado e portanto nem um animal, nem um Deus»9. Mais claro ainda se manifesta Zeus a Hermes no mito de Prometeo: «a quem não pode fazer seus os costumes e o direito, pode-se matar como se mata a um membro enfermo do Estado»10. Cícero, ao contrário, adverte sobre somente levar em consideração os conterrâneos e não os estrangeiros; e isso devido ao fato de que, nesse caso, a sociedade comum ao gênero humano desaparece e com ela «o bem fazer, a generosidade, a bondade, e a justiça»11. Não obstante, este ideal de respeito mútuo referido ao estrangeiro tem certos limites em relação aos inimigos: «se um bom homem pudesse roubar as roupas do cruel e desumano tirano Parláis para não morrer de frio, ¿não o faria?»12. O próprio Cícero proporciona a resposta a esta pergunta retórica; assim, não o considera reprovável quando o bem social restringe os direitos «de quem não resulta de modo algum como útil»13. Mais ainda: nestePage 4 âmbito resultam necessárias a separação e a exclusão: “Com tiranos não existe sociedade alguma, senão a mais enérgica das separações e não é contrário à natureza roubar a quem é honroso matar. Toda esta estirpe que traz consigo a desgraça e encontra-se afastada de Deus, deve ser excluída da comunidade dos seres humanos, pois do mesmo modo que algumas partes do corpo tem que ser amputadas quando elas mesmas perdem o sangue e de certa forma o sopro da vida, prejudicando às demais partes do corpo, assim mesmo esta bestialização com forma humana, este monstro horroroso, deve ser excluído da comum humanidade do corpo”14.

Também no Digesto15 se distingue entre inimigos externos e internos: inimigos são aqueles com os quais entramos em guerra; via de regra, ladrões e piratas16. Também é inimigo aquele que, com má intenção e espírito traiçoeiro, abandona a pátria17; mas não o é, no entanto, aquele com o qual existe uma relação de amizade, hospitalidade ou análogas18.

Para Locke, a violência de um membro da, em si mesma, “pacífica” comunidade natural19 conduz ao estado de guerra20, o qual anula todas as obrigações fundamentadas no contrato social e outorga a cada indivíduo o direito de opor-se ao agressor.21 Locke diferencia entre este estado de guerra limitado que se desencadeia mediante uma violação da lei e a rebelião contra a ordem estabelecida22. Enquanto neste caso depende de em que medida a autoridade estatal tem provocado a rebelião23, no estado de guerra é “razoável e justo que eu tenha o direito de eliminar aquele que ameaça me eliminar. Posto que, assim como a lei fundamental da natureza é a de que a humanidade perdure tanto quanto seja possível, deve preferir-se a segurança do inocente quando não puder perdurar a segurança de todos”.

Ao homem que declara guerra a outro, se deve matar assim como a um animal carnívoro, posto que “este tipo de seres humanos não estão vinculados mediante a lei comum da razão, e não conhecem outras regras que não sejam as da força brutaPage 5 e da violência. Portanto, deve-se-lhes tratar como a animais carnívoros, como a qualquer criatura perigosa e lesiva que aniquila alguém quando cai em seu poder”24.

Enquanto que neste ponto se trata da vida em comum de uns cidadãos com os outros e da exclusão daqueles que abandonam o pacífico estado natural – e que portanto devem ser tratados como animais carnívoros – em outro lugar Locke se refere à vulneração dos direitos políticos e ao conseqüente direito de resistência do povo25 frente ao inimigo comum: “Quem usurpa violentamente, quer seja senhor ou súdito, os direitos do príncipe ou do povo, que conduzam a um golpe de estado à constituição e à totalidade da estrutura de um governo justo, é culpado pelo pior dos delitos que, na minha opinião, um homem pode cometer. Deve responder por todos os males de derramamento de sangue, roubos e devastação que provoca em um país a destruição do governo. E quem se comporta desta maneira é considerado, com razão, como o inimigo comum, como parasita da humanidade e deve ser tratado, em correspondência, como tal”26.

Na concepção de Rousseau – que se fundamenta igualmente no contrato social –, o homem que vive na comunidade política tem deveres como súdito e direitos como cidadão27. Converte-se em inimigo aquele que só persegue sua própria ambição de poder e posse, menosprezando, com isso, as normas sociais e, desta forma, o bemestar dos demais28. A ruptura do contrato social eqüivale à renúncia as qualidades relativas à pessoa moral e representa uma traição à pátria: “À medida que infringe suas leis, deixa de ser um membro desta e lhe faz guerra. (…) Ao culpável se lhe deixa morrer mais por inimigo do que por cidadão”29.

Como tal não “é uma pessoa moral, é um indivíduo e neste caso constitui um direito de guerra matar ao derrotado”30. A ruptura do contrato social e a conseqüente exclusão de quem o rompe como inimigo interno deve diferenciar-se da situação de guerra entre dois Estados, na qual os soldados se enfrentam a limine como inimigos31, porém somente enquanto dure a guerra: “à medida em que se depõemPage 6 [as armas] e se entregam, convertem-se novamente em homens por antonomásia – dado que já não são nem inimigos, nem...

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