Direito e ópera: estímulos a uma percepção sensível do direito

AutorGabriel Lacerda
Páginas163-205
DIREITO E ÓPERA: ESTÍMULOS A UMA PERCEPÇÃO SENSÍVEL
DO DIREITO
GABRIEL LACERDA1
Desde a primeira turma da Faculdade de Direito da FGV no Rio de Janeiro, em
março de 2004, venho conduzindo uma disciplina, rotulada segundo os câ-
nones acadêmicos como atividade complementar, intitulada Direito e Cinema,
oferecida geralmente a alunos do 1º e 2º períodos. Nesses mais de dez anos de
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uma ferramenta para o ensino do direito. Adotei diversos modelos: estudei, por
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sando por racismo, preconceito de gênero e pena de morte, utilizando a vasta
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assim por diante.
Um objetivo comum informou todas essas tentativas: a proposta da ativi-
dade, exposta francamente, sempre na primeira aula, não era passar aos alunos
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Da mesma forma que em uma academia de ginástica trabalha-se para fortale-
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nado no título, uma percepção sensível do direito. Um maratonista precisa ter
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nar-se com a realidade em que está inserido com um olhar crítico, afastando-se
conscientemente de uma natural tendência maniqueísta, que, quem não tem
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de conduta.
1 Professor da FGV DIREITO RIO e Advogado. LL.M em Direito pela Harvard Law School.
Sócio aposentado do Escritório Trench Rossi Watanabe.
164 CADERNOS FGV DIREITO RIO
O verdadeiro jurista procura sempre manter-se afastado de categorias ab-
solutas, do certo ou errado, do preto ou branco. O direito existe e movimenta-se
sempre em múltiplas tonalidades de cinza. Aguçar a captação dessas tonalidades
parece-me, sem dúvida, um instrumento necessário e útil no ensino do direito.
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que ele tenda a perceber o mundo com um olhar próprio. Confrontado com
uma sequência de eventos, seja da vida real seja expostos em uma obra de
arte, procura relacionar-se com ela usando o ferramental próprio de sua práxis.
Quando alguém se apropria de coisa alheia pensa logo se houve apenas um
eventualmente um mero , ou se ocorreu violência ou grave
ameaça, levando a categorizar o evento como um roubo. Se alguém sofre um
dano ou atravessa uma situação que lhe causa desconforto, o jurista imedia-
tamente cogita se o prejuízo é indenizável e qual a ação (ou remédio) que se
adequaria às circunstâncias; em atos que sente reprováveis busca intuitiva-
mente saber se são crimes, ilícitos civis ou apenas contrários à moral. Relaciona
qualquer ação direta ou indiretamente a uma norma jurídica. Ao escrever este
artigo, estou dando cumprimento a um contrato verbal feito com a Fundação
que edita a revista. Até mesmo ao começar uma relação amorosa, o jurista se
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siderada, à luz da lei e da jurisprudência, como uma  e, conforme
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Na atividade complementar que conduzi, usei o cinema para exercícios
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perceber as diversas tonalidades de cinza de um tema puramente jurídico ou
encontrar categorias jurídicas em contextos em que elas não estavam clara-
mente evidentes.
Esse exercício envolvia ainda uma mensagem, passada de forma expressa
ou implícita aos alunos, imbuída talvez de uma única liçãoa percepção holista
do direito. Os sistemas normativos, que regulam a vida social em qualquer comu-
nidade humana e a qualquer tempo, integram um todo e são elementos de um
sistema aberto. O Direito, para que seja verdadeiramente entendido, há de ser
estudado no contexto de sua inter-relação com os outros elementos do sistema
maior, que é a sociedade.. O Direito não vem de Deus nem cai do céu; ele regula
em um tempo determinado a vida de uma sociedade determinada, sociedade
esta que tem necessariamente uma história, uma economia, um clima, uma lo-
  
procura compreender.
Importante também, do ponto de vista didático, tornar presente a ampli-
tude daquilo o que se costuma chamar direito. A primeira alteração feita no
DIREITO E ÓPERA 165
primeiro curso de Direito e Cinema foi justamente abandonar a limitação que,
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semestre do primeiro ano em que matéria foi oferecida, abrangiam diversos
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captado a partir de diversos temas e com diversas ênfases. Estuda-se direito
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o processual, os direitos humanos e os políticos e, envolvendo todos, a busca
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artísticas de qualquer forma ou gênero, induz também, de forma sensível a
noção de como é amplo o campo de estudos do direito.
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do século XVIII e tem seu apogeu na segunda metade do século XIX, possa ser
considerado hoje como quase ultrapassado, apesar de ainda lotar os grandes
teatros do mundo. Mas, por isso mesmo, porque não se pode dizer que a ópera
seja uma manifestação artística moderna ou mesmo popular, uma visita ao re-
pertório do gênero pode nos aproximar talvez mais rapidamente do atemporal,
do eterno.
Não custa ainda acrescentar que, embora a ópera seja atualmente perce-
bida como arte das grandes casas de espetáculo, apreciada apenas por uma
minoria, quase uma parcela, talvez excêntrica, de uma elite social, não foi as-
sim sempre. Na Itália do século XIX, quando não havia televisão nem rádio,
as melodias de ópera eram música das ruas; o grande compositor Giuseppe
      
da Itália, chegou mesmo a ser deputado. Vale recordar que sua segunda ópera,
Nabucco, que tinha como tema o cativeiro dos judeus na Babilônia, foi adotada
como simbolizando o domínio da Itália pela Áustria. O famoso coro dos judeus
cativos — Va pensiero sull”alli dorate (vai, pensamento sobre asas douradas),
popular até hoje, tornou-se quase uma canção de revolta popular. Escrevia-
-se VIVA V.E.R.D.I. nos muros das cidades italianas, com intuitos subversivos,
subentendendo-se que as iniciais do sobrenome do compositor deveriam ser
Vitório Emanuel Rei Da Itália.
Antes disso, ainda no século XVIII, na Áustria, o gênio de Mozart trou-
xe conscientemente a ópera ao gosto popular, utilizando libretos cômicos, em
alemão (O Rapto do Serralho). Talvez sua composição mais conhecida, A Flau-
, também com libreto em alemão, era originalmente um espetáculo
popular, uma alegoria fantástica, que percorria pequenos teatros de pequenas
cidades, divertindo a todos, inclusive crianças. Uma de suas árias tornou-se

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