Direito e fenômeno religioso, o que têm a ver?

AutorMarco Antonio Papp
CargoMestre em filosofia pela PUC-SP
Introdução e colocação do problema

Para um leigo, a prática jurídica pode parecer uma atividade atraente pela sua impressionante capacidade de resolver contendas; tem-se a sensação de que o Direito pode tudo. E é essa sensação de poder que cria uma verdadeira hierarquia religiosa – do advogado comum, passando pelo “bom advogado”, até o desembargador – verdadeiros sacerdotes que promovem a salvação ou a danação das almas, que determinam, em última análise, o que se pode fazer e como se deve fazer; que determinam quem é o culpado, quem é o inocente.

É fato que até as mais altas instâncias de poder, governamental ou empresarial, estão todas submissas ao poder máximo do sistema jurídico. Embora vez ou outra o “certo ou errado” pode questionar uma ou outra lei ou entrar em conflito com ela, as informações que vêm normalmente da media identificam o certo com o legal e o errado – ou o crime – com o ilegal.

É, portanto, natural que nasça a pergunta pelo que realmente significa o “Direito”, isto é, se é um sistema de leis adequado a uma ética ou ordem natural, se é apenas uma convenção cultural atrelada ao poder econômico ou se é “algo mais” fundado num sistema de valores antropológicos que transcendem os interesses particulares.

O grande Miguel Reale (1998, p. 497-510) discute a “tríplice perspectiva histórica” do termo “Direito” e entende que esses três elementos “marcam a experiência histórica do Direito: o Direito como fato social e histórico, como valor de Justiça e como norma ordenadora de conduta”. Conceituar o Direito é um problema de todos os filósofos do direito. Eles sofrem com esse empreendimento por se tratar de um termo “análogo” (Cretella Jr., 2003 p. 173-183), isto é, há vários “direitos” (direito romano, direito brasileiro) ou diversos aspectos dele (direito penal, tributário), embora se suponha uma unidade nessa diversidade.

Mas a grande relevância antropológica, isto é, o que de fato importa aos seres humanos leigos – e o presente artigo é escrito numa perspectiva leiga – é entender não só o significado da “Ciência Jurídica” para a vida dos homens e mulheres, mas também investigar a natureza do Direito e o que fundamenta o poder das leis.

Pode parecer que a pergunta-problema resuma-se a explorar a ambigüidade do termo, na seguinte forma: “que direito o Direito tem de arbitrar ou de interferir na vida das pessoas e quem ou o que determina esse poder?” Não, não é essa a pergunta. Na verdade, o problema também não se resume a identificar a natureza e o fundamento do Direito como um todo, mas levantar um aspecto importante da sua natureza. A tese subjacente nas linhas abaixo é que a forma religiosa gerou todo o sistema jurídico e o cordão umbilical jamais foi rompido.

Essa concepção não parece ser muito cara aos juristas ou filósofos do Direito, uma vez que sua maioria apresenta o mito e a religião como uma forma primitiva e já superada porque creu que suas leis foram concedidas diretamente pela divindade. Do ponto de vista de algumas linhas da filosofia contemporânea, como a filosofia neokantiana da escola de Marburgo, Mito e Religião constituem “formas simbólicas” tão legítimas quanto a ciência, por exemplo, e permeiam todas as instâncias do exercício ético e, conseqüentemente, jurídico.

Para que seja possível uma primeira discussão desse aporte, é necessária uma breve investigação da estrutura e do pensamento mítico-religioso para depois discutir se realmente a religião está presente na prática jurídica atual e de que maneira se faz presente. Cabe, portanto, uma consideração primária acerca do fenômeno mítico-religioso.

O problema de uma fenomenologia mítico-religiosa

O ser humano possui uma característica peculiar de estar constantemente em busca do sentido da vida, da auto-realização, da felicidade. Tal busca parece transcender os afazeres e as preocupações do cotidiano, pois visa aos aspectos mais profundos da vida humana; e, ao mesmo tempo, depende do sucesso desse mesmo cotidiano, já que ninguém é feliz estando desempregado ou passando fome.

Nesse caso, a problemática da existência humana identifica-se com o “problema da salvação” (Rahner, 1989, p. 55). Esse problema tornou-se um fato significativo para a humanidade e, por isso mesmo, é considerado um “problema filosófico”. Há autores que demonstraram, inclusive, a dependência que o início do pensamento argumentativo filosófico deveu a uma forma de discurso anterior, que se propõe a crer e a convencer (DETIENNE, 1986). O sucesso da maioria das atividades hodiernas depende do convencimento, o que implica em crer no produto, no serviço, na instituição. Das eras mais primitivas até hoje, mudamos de deus, mas não mudamos de ato religioso. No caso do Direito, não se pode considerá-lo apenas como um ato mecânico, de aplicar a lei a cada caso, trata-se antes de uma arte de convencimento, o que implica em crer no sistema jurídico.

Tratando-se de uma forma espontânea de o ser humano situar-se no mundo, sua objetivação cultural é considerada um fenômeno, que sofre uma grande variedade e discrepância de produções. Conforme variantes em suas múltiplas experiências culturais, tal fenômeno tem sido denominado ora por Mito, ora por Religião. Antes que se possa compreender tais variantes, é necessária uma consideração prévia sobre o significado da palavra fenômeno.

Immanuel Kant, considerado não só o maior filósofo do século XVIII, como também um dos maiores filósofos de todos os tempos, estabelece uma distinção importante entre fenômeno - a realidade como aparece à nossa consciência - e noumeno - “coisa em si”, da qual nada se pode falar. Para ele, nosso saber, o único objeto da investigação científica, é conhecimento dos fenômenos. Para o Neokantismo (corrente alemã iniciada no século XIX), o noumeno é somente uma idéia, a idéia da completa realização da tarefa da consciência. Em outras palavras, nas coisas, no mundo encontramos apenas aparências, a “essência” é um ato da consciência, uma idéia aprisionada nos seres humanos ou desenvolvida por eles.

Se concordarmos com essa linha, haveremos de admitir que nossa busca da “essência” ou da realidade das coisas nada mais é do que uma busca que o ser humano faz de si mesmo. Toda a atividade humana é, portanto, uma busca de si mesmo. Se, por exemplo, um jurista estiver buscando uma melhor forma de alcançar a “justiça” – atitude pouco comum na prática jurídica –, estará em busca de uma verdade absoluta que deverá ser encontrada não em Deus, mas na própria consciência. A única diferença entre alguns juristas e os religiosos é que esses últimos crêem que esse transcender da consciência nada mais é que um encontro com Deus.

Fenômeno quer dizer “tudo o que aparece”, uma derivação do verbo “mostrar-se”, “o que se mostra em si mesmo (Heidegger, 1974, § 7A), da forma como se apresenta à consciência humana. Como não “vemos” as coisas como são, mas segundo o nosso modo humano de percebê-las, então, um principal fenômeno a ser estudado é o fenômeno da consciência. Esse é precisamente um ponto chave no pensamento de Edmund Husserl (1859-1938).

Acontece que o estudo da consciência, na sua subjetividade e individualidade humana é tarefa da psicologia. Husserl, antes de filósofo, era matemático; e, como tal, preocupou-se com a objetividade da consciência. Objetividade não é sinônimo de...

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