O direito fundamental de greve e a atuação do Ministério Público do Trabalho
Autor | Giselle Alves de Oliveira |
Ocupação do Autor | Procuradora do Ministério Público do Trabalho - Procuradoria do Trabalho no Município de Santos. Mestranda em Direito das Relações Sociais (PUC-SP). Especialista em Direito Tributário pela Unifor / Fortaleza |
Páginas | 64-77 |
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Ver nota 1
O Direito do Trabalho reconhece legitimidade aos próprios atores sociais para buscarem o estabelecimento de normas autônomas para regerem as relações laborais, o que se dá, em grande medida, pela negociação coletiva.
Contudo, há momentos em que a negociação coletiva torna-se insuficiente para a formação de consenso entre as partes, o que leva os trabalhadores a utilizarem um dos poucos instrumentos de pressão legítimo, reconhecido pelo ordenamento jurídico, qual seja, a greve.
A greve, em sua evolução como fato e direito, deixa de ser vista como um ilícito penal e passa por uma fase de tolerância, até ser reconhecida como direito humano e fundamental, albergada em instrumentos internacionais e nas próprias Constituições dos Estados.
É assim que este fato social deve ser entendido e analisado: a greve apresenta-se como direito fundamental de caráter coletivo.
Como direito fundamental, gravita em torno do eixo axiológico do nosso Estado Social, qual seja, a dignidade da pessoa humana, que tem no Ministério Público um de seus agentes garantidores.
O presente trabalho se propõe a analisar a greve como um direito fundamental dos trabalhadores, bem como a atuação do Ministério Público do Trabalho, a partir do seu papel institucional reconfigurado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
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A evolução histórica da greve relaciona-se com o próprio surgimento da relação de emprego subordinado, já que o instituto vai de encontro à escravidão e ao modelo do sistema feudal, ou seja, a sua história se confunde com a do trabalho humano.
No ordenamento jurídico pátrio, a greve, primeiramente, foi considerada como um ilícito penal, tipificada no Código Penal de 1830 como crime, cuja pena era detenção de 1 a 3 meses. Após esta previsão, sua evolução histórica, como bem disse Raimundo Simão de Melo2, relacionou-se com o modelo de liberdade e autonomia sindicais prevalecentes no momento histórico em que vivia o país.
A greve como instituto jurídico e fato social absorvia características do modelo de Estado vigente em cada momento no País. Ou seja, a greve no contexto histórico brasileiro anterior a Constituição Cidadã foi marcada pela repressão, sendo a paralisação do trabalho considerada um ato nocivo e perigoso.
No entanto, foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que, seguindo as demais sociedades democráticas mundiais, passou a greve a ser considerada um direito social, conforme disposto em seu art. 9º.
Logo, pode-se dizer que a Carta Constitucional de 1988 reconhece a greve como "um direito fundamental de caráter coletivo, resultante da autonomia privada coletiva inerente às sociedades democráticas", nas palavras de Mauricio Delgado.3
A greve deixou de ser considerada como um ato nocivo e perigoso para ser, conforme explica Cristiano Paixão,
Compreendida como uma parte importante do processo de negociação coletiva, que é vital para a construção e manutenção das relações de trabalho numa democracia. E, como se sabe, não há negociação coletiva sem que se apresente em determinados momentos ou circunstâncias, a possibilidade de paralisação do trabalho.4
Considerando que a greve é o principal instrumento de pressão dos trabalhadores em face do empregador na busca de ter assegurados os direitos fundamentais e, em consequência, a dignidade enquanto pessoas, não poderia deixar de ser consagrada nas sociedades democráticas como um direito fundamental do trabalhador.
Como bem abordou Mauricio Godinho Delgado, a destituição do direito de greve dos trabalhadores torna inócuo o princípio da equivalência entre os contratantes coletivos, já que as empresas já possuem inúmeros instrumentos de pressão.5
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As relações de trabalho são conflituais, revelando tensões entre o capital e o trabalho. A solução de conflitos coletivos de trabalho pode se dar por meio da heterocomposição, autocomposição e autotutela.
A heterocomposição é a solução de conflito por intermédio da atuação de um terceiro, sendo o exercício da jurisdição o seu principal exemplo.
Na autocomposição, por sua vez, as próprias partes envolvidas solucionam o conflito, o que se dá, em grande medida, pela negociação coletiva.
A negociação coletiva, segundo conceituação fornecida por Enoque Ribeiro dos Santos e Bernardo Cunha Farina, é
Um processo dialético por meio do qual os trabalhadores e as empresas, ou seus representantes, debatem uma agenda de direitos e deveres, de forma democrática e transparente, envolvendo as matérias pertinentes às relações entre capital e trabalho, na busca de um acordo que possibilite o alcance de uma convivência pacífica, em que impere o equilíbrio, a boa-fé e a solidariedade.6
A negociação coletiva foi reconhecida como direito fundamental dos trabalhadores, conforme se observa no art. 7º, inciso XXVI, da Lei Maior, in verbis:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XXVI - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho;
Todavia, como já acima mencionado, para a negociação coletiva atingir seu objetivo por meio de acordos e convenções coletivas é necessária muitas vezes a utilização da greve como instrumento de pressão para a reivindicação por melhoria de condições de trabalho para a categoria. Ou seja, a greve é um direito indispensável para a liberdade e reivindicação dos obreiros.
Neste sentido, a autotutela, que pode ser considerada como o exercício direto de coerção pelos particulares, tem a greve e o lock-out como espécies.
O lock-out, segundo conceito de Mauricio Godinho Delgado, é o "fechamento provisório, pelo empregador, da empresa, estabelecimento ou simplesmente algum de seus setores, efetuado com o objetivo de provocar pressão arrefecedora de reivindicações operárias" 7. É prática vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, conforme previsão expressa no art. 17 da Lei de greve (Lei n. 7.783/89).
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A greve, também seguindo a conceituação proposta pelo Ministro Mauricio Godinho Delgado,
Seria a paralisação coletiva provisória, parcial ou total, das atividades dos trabalhadores em face de seus empregadores ou tomadores de serviços, com o objetivo de exercer-lhes pressão, visando à defesa ou conquista de interesses coletivos, ou com objetivos sociais mais amplos.8
Como o Estado assumiu para si o monopólio da jurisdição e a imposição de suas decisões pelo uso legal da força, aos particulares, individuais e coletivos, restaram resquícios pontuais da autotutela, como no caso da greve. Ronald Amorim e Souza diz que, na esfera trabalhista, "o exercício da autotutela conduz não à realização da pretensão pelo recurso à greve ou ao locaute, mas à imposição do parceiro social recalcitrante iniciar, retomar ou aquiescer na pretensão da negociação coletiva"9.
A greve seria, portanto, um instrumento de pressão reconhecido pelo ordenamento jurídico que levasse os atores sociais à retomada das negociações coletivas para se alcançar, por intermédio desta, uma solução para o conflito de interesses gerados da relação de trabalho.
Para que esta dinâmica relacional composta pela autotutela e autocomposição sequenciais surta seus efeitos desejados, é fundamental a existência de um sindicalismo livre das influências estatais e patronais, desenvolvendo-se em um ambiente de plena liberdade sindical.
A liberdade de organização sindical, embora relativamente prevista na Constituição Federal, eis que a mesma ainda contempla a representação por categoria, a contribuição sindical obrigatória e a unicidade, tem como importante corolário o direito de greve, "indispensável nos regimes democráticos, como instrumento de equilíbrio indispensável entre o capital e o trabalho" 10, nas palavras de Raimundo Simão de Melo.
Neste sentido, José João Abrantes afirma que o conjunto formado por liberdade sindical, negociação coletiva e greve "é, na verdade, condição necessária de todas as outras liberdades dos trabalhadores; só esses direitos colectivos podem compensar a fraqueza relativa dos trabalhadores relativamente à empresa"11.
Feita a análise acerca da greve e uma vez constatada que a Constituição Federal de 1988, alterando toda a sistemática antes prevista para o instituto, necessária uma
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rápida abordagem dos direitos fundamentais. Esta abordagem justifica-se pelo reconhecimento da natureza jurídica de direito fundamental de caráter coletivo do direito de greve dos trabalhadores, como afirmado por Mauricio Godinho Delgado.12
Embora o denominado constitucionalismo social tenha surgido no contexto do primeiro conflito mundial, com a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Alemã de Weimar de 1919, é com o término da Segunda Guerra Mundial que surge um novo ambiente constitucional centrado no ser humano, fruto, em grande medida, a partir das severas violações dos direitos humanos ocorridas neste período.
Trata-se do constitucionalismo pós-moderno, também conhecido como neoconstitucionalismo, que traz a necessidade de assegurar a máxima efetividade à Constituição integrando-a no conceito de norma jurídica plena, com força normativa e eficácia jurídica, focada na concretização dos direitos fundamentais.
É sob esta nova concepção atribuída ao constitucionalismo que os princípios ganham nova conotação, ou seja, juntamente com as regras passaram a ser espécies do gênero norma jurídica, todavia aqueles possuem maior carga axiológica. Constata-se, assim, que os princípios deixaram de ter a função apenas integrativa, informativa e interpretativa para alcançar o status de norma jurídica.
Seguindo o fenômeno acima mencionado, a Constituição Cidadã inovou e assegurou a dignidade da pessoa humana como vetor axiológico que orienta todo o...
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