O direito do autor

AutorParanaguá, Pedro - Branco, Sérgio
Páginas39-63

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Quem é o autor? Uma pergunta difícil

Pessoa física e pessoa jurídica: a quem pertence a obra?

A LDA é categórica ao afirmar, em seu art. 11, que “autor é a pessoa física criadora da obra literária, artística ou científica”. Mas o parágrafo único do mesmo artigo excepciona o princípio, afirmando que a proteção concedida ao autor pode se aplicar a pessoas jurídicas nos casos previstos na LDA.

De início, é muito importante distinguir entre autor e titular dos direitos autorais. Pela lei — atendendo-se, inclusive, a princípio lógico —, só a pessoa física pode ser autora. Afinal, apenas o ser humano é capaz de criar. A pessoa jurídica não pode criar, exceto por meio das pessoas físicas que a compõem, caso em que os autores são, então, as pessoas físicas.

Muito diferente, contudo, é a questão da titularidade. Ainda que apenas uma pessoa física possa ser autora, ela pode transferir a titularidade de seus direitos para qualquer terceiro, pessoa física ou jurídica. Nesse caso, ainda que a pessoa física seja para sempre a autora da obra, o titular legitimado a exercer os direitos sobre esta pode ser uma pessoa jurídica ou física distinta do autor.

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Um exemplo muito esclarecedor: o escritor Paulo Coelho pode transferir seus direitos econômicos sobre determinada obra que escreveu para a editora responsável por sua publicação. Nesse caso, Paulo Coelho será para sempre autor da obra, mas não exercerá pessoalmente o direito sobre ela, já que, com a transferência, a editora é que terá legitimidade para exercê-lo.

Por outro lado, o autor pode transferir seus direitos para um amigo ou um parente. Da mesma forma, continuará a ser autor da obra, mas o exercício de seus direitos econômicos caberá a quem recebeu os direitos por meio de contrato — uma pessoa física, neste segundo exemplo.

Essa distinção é bastante importante para refletirmos sobre os propósitos da lei. Embora se chame Lei de Direitos Autorais, na verdade a LDA protege principalmente o titular dos direitos, que nem sempre é o autor.

O autor não precisa se identificar com seu nome verdadeiro. De fato, a LDA, em seu art. 12, dispõe que, para se identificar como autor, o criador da obra pode usar seu nome civil, completo ou abreviado até por iniciais, pseudônimo ou qualquer outro sinal convencional.

Assim como é comum que atores e atrizes usem nomes artísticos, também autores podem se apresentar com pseudônimos. O famoso escritor Marcos Rey, autor de Malditos paulistas, Memórias de um gigolô e diversos livros infanto-juvenis, tinha por nome verdadeiro Edmundo Donato. Por sua vez, o internacionalmente conhecido Mark Twain se chamava Samuel Longhorne Clemens. O poeta Edward Estlin Cummings se identificava apenas como E. E. Cummings, e o músico Prince Rogers Nelson decidiu, durante algum tempo, ser identificado por (ou, informalmente, o Artista Anteriormente Conhecido como Prince).

Para ser identificado como autor de determinada obra, basta que o artista assim se apresente. De acordo com o art. 13 da

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LDA, considera-se autor da obra, não havendo prova em contrário (e aí o registro aparece como um fato relevante), aquele que, por uma das modalidades de identificação referidas anteriormente, tiver, em conformidade com o uso, indicado ou anunciado essa qualidade na sua utilização.

Também é titular dos direitos autorais quem adapta, traduz, arranja ou orquestra obra caída em domínio público, não podendo se opor a outra adaptação, arranjo, orquestração ou tradução, salvo quando cópia da sua.

Nos tempos contemporâneos, porém, nem sempre é fácil identificar o autor da obra. Quando a obra é realizada por mais de uma pessoa, a questão pode ficar bem complicada. Nem tanto quando se tratar de uma coautoria, mas quando a obra for construída colaborativamente, caso em que o conceito de autor se torna fluido e diluído, como veremos nas seções a seguir.

Coautoria e obras coletivas

A questão da autoria das obras torna-se consideravelmente mais complicada quando há mais de um autor. Existe coautoria quando duas ou mais pessoas são autoras de uma mesma obra. A situação é extremamente comum quando se trata de música, sendo trivial a existência de um letrista que trabalha em conjunto com o autor da melodia.

A LDA determina, em seu art. 32 que, quando uma obra feita em regime de coautoria não for divisível, nenhum dos coautores, sob pena de responder por perdas e danos, pode, sem o consentimento dos demais, publicá-la ou autorizar-lhe a publicação, salvo na coleção de suas obras completas. Um bom exemplo de obra coletiva indivisível são os livros publicados em nome de Wu Ming. De fato, Wu Ming é a assinatura usada por cinco autores italianos que escreveram romances coletivos como “Q” e

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“54”. As obras são escritas em conjunto, de modo que é impossível saber quem escreveu cada parte do livro. As obras do grupo podem ser obtidas gratuitamente na internet, já que encontramse licenciadas pela Creative Commons.22Por obra divisível entende-se, exemplificativamente, uma coletânea de contos, crônicas ou poemas, que reúna textos de diversos autores.

No caso das obras indivisíveis, ao surgir uma divergência, os autores decidem por maioria. Ao coautor dissidente, a LDA assegura os seguintes direitos: a) não contribuir para as despesas de publicação da obra, renunciando, entretanto, a sua parte no lucro e b) vedar que se inscreva seu nome na obra.

Cada coautor pode, individualmente, mesmo sem o consentimento dos demais, registrar a obra e defender os próprios direitos contra terceiros.

A LDA trata ainda dos casos que não configuram coautoria. Determina que não se considere coautor alguém que simplesmente tenha auxiliado o autor na produção da obra, revendo-a, atualizando-a, bem como fiscalizando ou dirigindo sua edição ou apresentação.

As obras audiovisuais obedecem a uma disciplina legal específica quanto à indicação dos autores. Segundo a LDA (art. 16), são coautores de uma obra audiovisual o autor do assunto ou argumento literário, musical ou literomusical — isto é, o roteirista — e o diretor. Dessa forma, são coautores de um filme o roteirista e o diretor. Ainda assim, o diretor será o único titular dos direitos morais sobre a obra (art. 25).

O tema será tratado mais a fundo nas seções a seguir, mas cabe aqui uma breve nota sobre a distinção entre direitos morais

22 Para maiores informações, ver o website oficial do grupo: .

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e patrimoniais. Estes últimos são os chamados direitos econômicos da obra, ou seja, os que autorizam seu titular a explorar a obra economicamente. Os primeiros referem-se aos direitos de personalidade do autor e garantem que, independentemente de quem exerça os direitos patrimoniais, o autor será sempre referido como o criador da obra.

A LDA determina, em seu art. 17, §2º, que o organizador de obra coletiva — seja pessoa física, seja jurídica — exerça a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto.

Autoria além do autor? Como impedir a exibição de Os doze macacos?

Muitas histórias curiosas podem ser invocadas para se ilustrar como a indústria do entretenimento vem transformando a propriedade intelectual em um fator de limitação à criatividade. O excesso de proteção — sobretudo nos Estados Unidos — acaba por exceder os limites do razoável.

Lawrence Lessig (2001) cita pelo menos três casos interessantes: o filme Os doze macacos teve sua exibição interrompida por decisão judicial 28 dias após seu lançamento porque um artista alegou que uma cadeira que aparecia no filme lembrava um esboço de mobília que ele havia desenhado. O filme Batman forever foi ameaçado judicialmente porque o batmóvel era visto em um pátio alegadamente protegido por direitos autorais, e o arquiteto titular dos direitos exigia ser remunerado antes do lançamento do filme. Em 1998, um juiz suspendeu o lançamento de O advogado do Diabo por dois dias porque um escultor alegou que um trabalho seu aparecia no fundo de determinada cena. Tais even-tos ensinaram os advogados que eles precisam controlar os cineastas. Eles convenceram os estúdios que o controle criativo é, em última instância, matéria legal.

É também Lessig quem chega a dizer, diante de tantas imposições da indústria cinematográfica norte-americana com relação

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ao clearing23de direitos autorais na produção de um filme, que um jovem cineasta estaria livre para realizar um filme desde que em uma sala vazia, com dois de seus amigos.24Como se vê, nem sempre o verdadeiro autor da obra tem total ingerência sobre seu destino. É cada vez mais comum a necessidade de realizar um clearing dos direitos das obras alheias relacionadas na obra principal. Exemplo clássico é o do filme Tarnation (Tormenta, em português), dirigido por Jonathan Caouette em 2003, que custou cerca de US$218, mas teve um custo de cerca de centenas de milhares de dólares de liberação de direitos sobre músicas, filmes e programas de televisão que apareciam incidentalmente no filme.25Obras colaborativas e o desaparecimento do autor

O mundo vem experimentando recentemente uma guinada conceitual quanto à ideia de autor. Primo Levi, escritor italiano, criou certa vez um personagem chamado senhor Simpson, simpático homem de negócios que oferecia em seu variado catálogo de produtos, entre outras coisas, máquinas capazes de produzir automaticamente versos nas formas desejadas, sobre os temas escolhidos, dispensando o engenho do “autor”.2623 Denomina-se clearing o ato de obter todas as licenças necessárias para o uso de obras de terceiros que apareçam no filme, ainda que incidentalmente, de modo a evitar possíveis transtornos na exibição da obra.

24 No original, lê-se: I would say to an...

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