Por um Código de Direito do Consumo para Portugal

AutorMário Frota
CargoFundador e primeiro presidente da AIDC
Páginas153-192

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Excertos

"Código é um corpo jurídico ordenado sintética e sistematicamente de harmonia com um plano, metodológico e cientíico, susceptível de abarcar as regras que a determinado ramo de direito ou acervo normativo compitam"

"Pobres consumidores que se deixam avassalar por direitos e submergem ante a inestancável torrente de compressões que as empresas geram para lhos negar"

"Importa que se diga que estamos perante um "Código do Consumidor" que não tem como destinatário único o consumidor"

"Não adianta, pois, numa lei geral, uma noção de consumidor que não serve para os múltiplos domínios em que a lei recorre a tal noção - mas com um sentido diverso - para delimitar o seu âmbito de aplicação"

"Nenhum código tem ou pode ter sequer a pretensão de abranger todas as normas de um determinado ramo de direito"

"A publicação do Código do Consumidor terá de ser acompanhada de vários outros diplomas, em virtude de, como dissemos atrás, haver matérias só parcialmente reguladas no Código"

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"Firme convicção é a nossa de que as Instâncias, e agora o Supremo, não tiveram minimamente em conta a proteção do consumidor lesado, valor fundamental em que assenta o direito do consumo, de raiz comunitária, como é o caso.

Aliás, por im, permita-se-nos a liberdade de expressão:

O direito do consumo ainda não sensibilizou, de vez, os operadores judiciários ."

Voto de vencido in Acórdão do S.T.J. - 3 de abril de 2003

NEVES RIBEIRO

- conselheiro - vice-presidente do STJ

1. No princípio .. era o verbo!

No recuado ano de 1992, nas páginas do secular e prestigiado periódico "O Primeiro de Janeiro", houvemos por bem discernir sobre o ordenamento jurídico dos consumidores, do amálgama de diplomas legais inextricáveis que se nos oferecia, das perversões que neles se lobrigavam, na insusceptibilidade de uma aplicação congruente, na compreensão da occasio legis (as circunstâncias históricas determinantes da preparação, aprovação, promulgação e publicação das leis) e nas complexas vias de acesso à sua revelação. Aí se consignavam as preocupações que nos acudiam ao espírito.

Eis o texto, não muito burilado, oferecido aos habituais ledores (e tantos eram os que procuravam os nossos escritos), não raro de intervenção, ante o esmagamento dos direitos e a ausência de atitude da administração pública face às agressões de que padeciam sistematicamente os consumidores, em situação desprezível de rejeição dos textos e de respeito pela dignidade própria e a autonomia ética de cada um e todos:

"Um código é, segundo as enciclopédias: coleção, compilação de lei, regulamentos, preceitos, convenções, formulas, regras...

O vocábulo código vem do latim codex ou caudex.

Os comerciantes designavam codices accepti et recepti os seus livros de escrituração e os simples títulos ou documentos públicos eram também codices: daí advém o nome por que se intitulavam os maços de documentos antigos recolhidos nos arquivos e bibliotecas.

Contudo, só no século III é que o termo codex foi aplicado a uma coleção de leis.

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Daí que se registem os códigos Gregoriano, Teodoniano e Justinianeu.

A palavra código tem hoje, porém, um sentido técnico preciso.

Não lhe quadra tão só o conceito que visa a exprimir simples coleções, compilações ou incorporações de leis.

Código é um corpo jurídico ordenado sintética e sistematicamente de harmonia com um plano, metodológico e cientíico, susceptível de abarcar as regras que a determinado ramo de direito ou acervo normativo compitam.

De há muito já, ante a dispersão das regras que direta ou relexamente tutelam a posição jurídica do consumidor, vimos sustentando vigorosamente a necessidade de um Código de Direitos do Consumidor ou simplesmente de Direito do Consumidor.

Nele se compendiariam as regras, de harmonia com um quadro próprio, vertidas em inúmeros domínios susceptíveis de recondução à temática do consumo e à sua interconexão com os consumidores.

O direito do consumo é considerado em diferentes latitudes como um ramo de direito, dotado de autonomia, ao menos funcional! Daí que o Código seja o modelo de organização mais simples para que se enunciem e desenvolvam princípios e se plasmem regras precisas.

Espíritos bem pensantes preferem os mais de 1500 diplomas dispersos, incoerentes, incongruentes nas soluções, sobreponíveis, plenos de brechas, que ora regem este domínio especíico.

Espíritos bem pensantes, decerto menos fundadamente, preferem o caos à ordem. A dispersão e a desconexão à concentração e ao encadeamento preceptivo. O mar encapelado ao mar chão. A tempestade à bonança. O risco à segurança. A guerra à paz. A dúvida à certeza.

Preferem, ainal, o nada a algo.

Ou por outra, bolsam enormidades (fruto de incontida ignorância) com a segurança de quem pretende passar por gente esclarecida e douta...

Invocam tais espíritos que o direito do consumo está em constante mudança. Que as normas não são deinitivas. Que se não pode cristalizar em regras algo que é volúvel e voga ao sabor da ciência, em constante mutação.

Ainar por um tal diapasão signiica ignorar a capacidade de previsão do direito, as técnicas de modelação ou de plasticização de que o direito se socorre para captar condutas e lhes deinir o sentido. A generalidade e abstração da norma jurídica. De outro modo, ignoram não só a realidade e a mutabilidade dos fatos como as técnicas de que o legislador se socorre para acudir as situações do quotidiano.

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Tendo o Código Civil como paradigma, ignoram que outros códigos há de maior ou menor expressão: o Código do Notariado, o Código de Registo Civil, o Código Tributário, o Código da Estrada, o Código do IVA, o Código da Publicidade...

E, no entanto, não há quem discuta o paralelismo ou as dissemelhanças formais e materiais entre tais coleções de regras, de normas...

O direito do consumo tem objeto próprio.

O direito do consumo tem método próprio.

O direito do consumo tem princípios contradistintos. Tal como o direito comercial e o direito do trabalho.

E, no entanto, continua a negar-se-lhe, entre nós, autonomia e a pretender que o Código é ou utopia ou rematado disparate de uma perspectiva lógico-construtiva.

Esquecem os nossos detratores que há Códigos e códigos. Que os códigos não ainam todos pelo mesmo igurino. Que há códigos civis, por exemplo, que assentam em modelos distintos e que não recobrem, ainda que para um mesmo padrão civilizacional, domínios inequívocos.

Citem-se alguns exemplos:

- O Código Civil italiano abrange não só a matéria de direito civil como de direito comercial;

- O Código Civil suíço não encerra a parte atinente às obrigações, havendo, em paralelo, um Código das Obrigações;

- O Código Civil português já não consagra, como tradicionalmente, a matéria do arrendamento urbano, rústico rural e rústico lorestal. (Em 2006 e, com maior propriedade em 2012, tornou ao Código Civil o regime do arrendamento urbano, que não os mais...)

- Códigos civis há, designadamente na América Latina, em que a matéria respeitante à família constitui preocupação autónoma - há códigos de família separados . . .

Um não mais indar de exemplos. De onde, pois, a relutância?

Um Código de Direitos do Consumidor (ou de Direito do Consumo) é um primeiro passo para a digniicação do direito do consumo.

O exemplo de França é, a todas as luzes, de uma grandeza plena de signiicações."

O direito do consumo é considerado em diferentes latitudes como um ramo de direito, dotado de autonomia, ao menos funcional

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A 15 de março de 1996 o governo de então, pelo Ministério do Ambiente, em que pontiicava como ministra Elisa Ferreira, anunciou solenemente que se constituiria uma comissão incumbida de preparar o anteprojeto do Código.

Dez anos volvidos, a comissão apresentou inalmente ao ministro da tutela (o da Economia e Inovação) o tal anteprojeto.

Em momento em que no domínio, ao menos dos serviços de interesse geral, se avassalam os consumidores com "leis" feitas por entidades regulatórias, que tendem a enxamear o país, e em que o Código parece ultrapassado na sua concepção original, a menos que nele se tipiiquem os contratos de fornecimento ou de prestação de serviços do estilo e se rejam de forma pormenorizada, a confusão parece insuperável.

"Leis" feitas por "engenheiros" são ainda mais complexas que as complexas leis geradas pelos equívocos conceituais dos juristas (quantos deles sem a mundividência que seria de se lhes exigir).

A "diarreia legislativa" (consinta-se-nos a expressão que só por si provoca vómitos...) a que nos expõem as entidades reguladoras parece inestancável.

O legislativo parece mudar de mãos...

E a comunidade jurídica ainda de tal se não apercebeu.

A confusão está instalada.

Pobres consumidores que se deixam avassalar por direitos e submergem ante a inestancável torrente de compressões que as empresas geram para lhos negar.

Estranho universo o que nos envolve nas suas contradições maiores - e em que a terra de ninguém só avantaja as empresas transnacionais e nacionais que sistematicamente denegam direitos a consumidores que se descaracterizam por serem considerados como sujeitos desprovidos de um estatuto maior.

As próprias entidades reguladoras, como, no caso, a Anacom - Autoridade Nacional de Comunicações, até se vangloriaram quando se subtraíram os domínios em que preponderam a regimes de tutela dos outrora denominados "serviços públicos essenciais", como fora patentemente o caso das ora denominadas "comunicações electrónicas", que passaram a constituir uma ilha insubsumível...

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