Direito e mediação de conflitos: entre metamor fose da regulação social e administração plural da justiça

AutorCamila Silva Nicácio
Ocupação do Autorraduada em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em sociologia do direito pela Université Paris III (Sorbonne- Nouvelle), doutora em antropologia do direito pela Université Paris I (Panthéon-Sorbonne).
Páginas271-289

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1. Introdução

Nos últimos trinta anos, os métodos ditos "alternativos de resolução de conflitos" têm alcançado um desenvolvimento impensável. A mediação, assim como a arbitragem e a conciliação, fazem parte disso. Se tal desenvolvimento se faz notar em diferentes países, é, sobretudo, no conjunto das culturas ocidentais que ele parece inspirar (ou traduzir?) uma verdadeira mudança paradigmática no que concerne ao tratamento dos conflitos. Essa mudança diz respeito tanto à crise do modelo oficial de Estado para a gestão das controvérsias, hegemônico até então, como também à possibilidade de emergência de um novo modelo de regulação social, mais conforme às exigências e necessidades contemporâneas. Necessidades que serão identificadas, tal como tentarei demonstrar, em uma maior participação cidadã e no recurso a outros substratos normativos (além das leis) quando de processos de tomada de decisão.

A mediação, tal como é concebida hoje1, ou seja, como um método que prioriza a intervenção de um terceiro neutro, imparcial, independente, visando a facilitar a comunicação entre indivíduos e grupos para a resolução de disputas2, desenvolveu--se nos Estados Unidos no início do século XX, a partir de experiências cidadãs de grupos minoritários de imigrantes, tais como chineses e judeus, que não encontravam na justiça do Estado respostas adequadas à administração de seus conflitos. Foi, no entanto, na década de 70, naquele mesmo país, na sequência da luta e defesa dos direitos civis e do advento dos primeiros indícios de crise estrutural dos tribunais, que o recurso à mediação e a outros métodos alternativos às instâncias judiciárias se vulgarizou, compondo o que se convencionou chamar Alternative Dispute Resolution (ADR). Como tal, ela foi exportada primeiramente aos países de língua inglesa, mais tarde à Europa continental e posteriormente à América do Sul.

Dos anos 70 aos dias de hoje, a mediação já conheceu várias metamorfoses e, em sua breve história, pode-se verificar um interesse confirmado pelo método, seja da parte de atores precursores, como os movimentos sociais, as associações de bairro, as

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organizações privadas, como de outros que vieram a estes se somar, a exemplo de alguns tribunais, magistrados e advogados. No que toca ao contexto brasileiro, o investimento na mediação é maciço, sobretudo quando assegurado por planos de governo que, federais, estaduais ou municipais, fazem dela objeto de políticas públicas para aprimorar os meios de acesso à justiça. Assim, em sua terceira edição, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República sustenta, como nas edições anteriores, o fomento das iniciativas de mediação e conciliação, estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos, voltados à maior pacificação social e menor juridicização, além de recomendar aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios o incentivo a ações e técnicas de mediação popular de resolução de conflitos, tais como a mediação comunitária3. No âmbito estadual, o Governo de Minas Gerais adotou a metodologia inovadora dos Núcleos de mediação e Cidadania desenvolvida pelo Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, replicando-a em mais de 20 localidades mineiras e elegendo-a política pública de acesso à justiça no Estado4. Se se tratam de experiências institucionais, levadas a cabo pelos poderes públicos, práticas cidadãs de mediação, elaboradas e dirigidas pela sociedade civil, são igualmente identificadas em todos os estados brasileiros.

A análise da extensão do desenvolvimento da mediação é, todavia, ainda muito precária, com exceção dos Estados Unidos. No que concerne ao Brasil, os dados estatísticos são parcos e muito pouco sistematizados. Um primeiro diagnóstico nacional foi realizado em 2005 pelo Ministério da Justiça5 e trouxe a público apenas 67 experiências espalhadas em todo o país, número que parece não contemplar uma parte considerável das iniciativas em curso, como os próprios relatores do diagnóstico afirmam.

A dificuldade em tecer um estudo detalhado sobre a mediação se justifica por se tratar de uma prática relativamente recente, para a qual ainda não se compôs um quadro bem definido de leitura e análise, seja do ponto de vista conceitual ou deontológico. Tal dificuldade de sistematização pode se revelar em crescente ininteligibilidade tanto para o público de cidadãos, usuários eventuais da mediação, quanto para técnicos e homens políticos, que, como enunciado, a instrumentalizam como objeto de políticas públicas diversas. Contribuindo à ininteligibilidade da mediação ressalta-se também a existência de uma miríade de conceitos e a erupção de numerosas categorias de mediação (que os conceitos tentam apreender), divididas em diferentes domínios de ação (familiar, civil, comercial, intercultural, escolar, cultural, concernente à habitação, ao gênero, à dívida etc.6); de graus de institucionalização (espontânea, cidadã, institucional, judiciária, híbrida7); de objetivos propostos (resolução de conflitos, pacificação das relações, facilitação da comunicação, criação de laços sociais etc.8); de públicos de usuários (cole-

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tivas ou comunitárias e individuais9); de maneiras de operar (facilitadoras, avaliadoras, exploradoras, combinadas etc.10).

Se dificuldades existem, o interesse em identificar e repertoriar as experiências de mediação e aprimorá-las, tal como foi enunciado pelo Ministério da Justiça em 2005, justifica-se pela hipótese segundo a qual o desenvolvimento pelo qual passou a media-ção nos últimos 30 anos alterou e continua a alterar substantivamente as cenas institucionais e comunitárias de resolução, prevenção e administração de conflitos, tornando-a uma ferramenta de excelência para aprimorar o acesso à justiça. Por outro lado, tal desenvolvimento faz com que uma série de questões sejam inexoravelmente levantadas. Como se chegou a tal contexto? Quais são os atores centrais desta mudança? A quais lógicas a multiplicação das mediações responde? Quais necessidades a impulsionaram11?

Quais perspectivas ela abre e quais transformações a mediação medra nos contextos locais de acesso à justiça? Quais relações seu desenvolvimento pressupõe entre os diversos atores de direito? E entre mediação e regulação social?

Respostas parciais a essas questões podem ser identificadas a partir de duas abordagens aparentemente contraditórias, complementares, no entanto, consubstanciadas, de uma parte, no crescimento dos fenômenos da juridicização e da judiciarização (1), e de outra parte, do desenvolvimento da contratualização (2). Tais abordagens apontam para uma interação entre direito/justiça oficiais e mediação marcada pelo signo de uma mestiçagem inconteste 3, que seria, em definitivo, a marca mesmo de um momento de fratura paradigmática que, tocando indivíduo, sociedade e Estado na totalidade de suas relações, demandaria a invenção de novas sabedorias para integrar a vida social (4).

2. A mediação e os fenômenos de juridicização e de judiciarização12

Para compreender a evolução vivida pela mediação, é imprescindível se perguntar a quais necessidades ela responde, pois se, por um lado, o desenvolvimento de ideologias e métodos voltados à administração dita alternativa de conflitos se faz sentir (haja vista o aumento do número de experiências ligadas à mediação, às técnicas de comunicação não violenta, à cultura de paz etc.13), por outro lado, o recurso também crescente ao direito oficial, em suas vias institucionalizadas, não deixa de ser igualmente surpreendente.

Enquanto a criação de centros de mediação e a evolução téorica e prática em torno desta técnica fazem supor o desenvolvimento de uma ordem jurídica cada vez mais "negociada14", alguns atores

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denunciam o contrário, ou seja, a confirmação da ordem imposta, a partir da expansão do direito oficial a domínios onde antes ele não se encontrava, com o intuito de assegurar a gestão de conflitos normal-mente regulados por outras ordens normativas. Tal expansão se situa em uma dupla via, como a da "juridicização", expressa pelo aumento do número de leis e, de outra parte, a da "judiciarização", traduzida pelo aumento do volume do contencioso. À tendência de juridicização, a judiciarização se soma como uma sequência previsível: uma vez multiplicados os temas sobre os quais o direito oficial se estende, a judiciarização os trata na malha do aparelho judiciário, segundo seus ritos e formalidades. Este, por sua vez, continua a "enviar mensagens15" ao

público de cidadãos no que concerne à forma a partir da qual alguns temas e domínios são interpretados pelo direito oficial e suas autoridades constituídas. Essas "mensagens", desveladas no seio da cena social, prestam-se a refundar a maneira segundo a qual os cidadãos, público da justiça, mas também atores de direito, continuarão a tratar os conflitos e influenciar suas decisões no que toca às estratégias a adotar para a gestão da vida em sociedade.

O Ministério da Justiça é o primeiro a indicar, na exposição de motivos que acompanha o diagnóstico dos meios alternativos de resolução de disputas no Brasil, a relação estreita e turbulenta entre a crise do poder judiciário e o aumento progressivo das demandas que lhe são submetidas, devido à juridicização de conflitos e, por conseguinte, à criação acelerada de novos direitos16. Em relatório similar, embora em contexto social diverso, a Comissão Europeia aponta os laços evidentes entre as dificuldades de acesso à justiça e a multiplicação dos conflitos levados aos tribunais, o que...

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