Princípios de Direito ? Conceito e funções

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas13-29

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I Introdução

Direito é o conjunto de princípios, regras e institutos voltados a organizar relações, situações ou instituições, criando vantagens, obrigações e deveres no contexto social.

Incorporando e concretizando valores, o direito desponta como essencialmente finalístico, isto é, dirigido a realizar metas e fins considerados relevantes em sua origem e reprodução sociais.

Em sua relação com a dinâmica social, o direito tende a atuar, essencialmente, de duas maneiras (que podem, obviamente, combinar-se): ou antecipa fórmulas de organização e conduta para serem seguidas na comunidade ou absorve práticas organizacionais e de conduta já existentes na convivência social, adequando-as às regras e princípios fundamentais do sistema jurídico circundante. enquanto a primeira maneira é cumprida, em geral, pelo legislador, ao editar novos diplomas normativos, a segunda tende a ser cumprida, em geral, pela jurisprudência, ao interpretar a ordem jurídica e encontrar nela soluções normativas para situações aparentemente não tratadas pelos diplomas legais disponíveis.

Em qualquer das dimensões do fenômeno jurídico (sua estrutura, seus valores e fins, sua operação concreta), os princípios cumprem papel fundamental.

De fato, eles compõem o direito, ao lado das regras e dos institutos jurídicos. Sua presença na estrutura do ordenamento jurídico é, hoje, inquestionável, embora caracterizem-se os princípios por funções múltiplas e concorrentes, e não a exclusiva função normativa.

São os princípios também, efetivamente, no quadro valorativo e finalístico que distingue essa produção cultural humana (o direito), o elemento de maior destaque na incorporação dos valores e fins mais essenciais à vida e

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convivência sociais. os princípios têm dimensão valorativa acentuada, por sua própria natureza e ainda por se concentrarem nos valores de maior perenidade na história social e naqueles que alcancem maior consistência e legitimidade cultural em um dado momento histórico.

Por fim, os princípios atuam de modo decisivo na dinâmica de ajuste do direito à vida social, moldando a interpretação da regra jurídica e se associando a ela no processo de sua incidência sobre a realidade dos seres humanos. Seja na antecipação de fórmulas de organização e conduta para serem seguidas na comunidade ou na absorção de práticas organizacionais e de conduta já existentes na convivência social, os princípios desempenham o papel fundamental de cimentarem a ordem jurídica aplicável aos valores mais essenciais do universo do direito.

Por todas essas razões, a análise circunstanciada dos princípios jurídicos é ponto obrigatório em qualquer programa consistente de compreensão do fenômeno jurídico.

II Conceito

Princípios são proposições gerais inferidas da cultura e do ordenamento jurídicos que conformam a criação, revelação, interpretação e aplicação do direito.

Podem os princípios ser comuns a todo o fenômeno jurídico ou especiais a um ou alguns de seus segmentos particularizados. desse modo, os princípios jurídicos gerais são proposições gerais informadoras da noção, estrutura e dinâmica essenciais do Direito, ao passo que os princípios especiais de determinado ramo do direito são proposições gerais informadoras da noção, estrutura e dinâmica essencial de certo ramo jurídico.

São os princípios jurídicos diretrizes gerais induzidas e, ao mesmo tempo, indutoras do direito; proposições fundamentais induzidas e indutoras do direito. São diretrizes centrais que se inferem de um sistema jurídico e que, após inferidas, a ele se reportam, informando-o. Por isso é que se pode dizer que consubstanciam comandos jurídicos instigadores do universo do direito.

Sabe-se, é claro, que a palavra princípios traduz, de maneira mais ampla (não apenas no campo do direito), a noção de proposições ideais que se gestam na consciência de pessoas e grupos sociais a partir de certa reali-dade e que, após gestadas, direcionam-se à compreensão, reprodução ou recriação dessa realidade.

Nesta acepção mais abrangente, princípios políticos, morais ou religiosos, por exemplo, importariam em proposições ideais resultantes de determinado contexto político, cultural ou religioso que se reportam à realidade como diretrizes de correspondentes condutas políticas, morais ou religiosas. em tal

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sentido, os princípios seriam elementos componentes da visão de mundo essencial que caracteriza as pessoas e grupos sociais, resultando de suas práticas cotidianas e sobre elas influindo. na dinâmica das pessoas e sociedades, os princípios atuariam como enunciados que refletem e informam, em maior ou menor grau, as práticas individuais e sociais correspondentes.

Nas ciências, a palavra princípio é apreendida com sentido similar. aqui, princípios correspondem à noção de proposições ideais construídas a partir de certa realidade e que direcionam a compreensão da realidade examinada. os princípios atuariam no processo de exame sistemático acerca de certa realidade — processo que é típico às ciências —, direcionando tal processo.

III Funções

Os princípios cumprem funções diferenciadas no direito. Tais funções se manifestam nas duas fases próprias ao fenômeno jurídico: a primeira, de sua construção, e a segunda, de sua realização social.

A fase de construção da regra — fase pré-jurídica, de natureza essen-cialmente política — corresponde ao estágio histórico de elaboração das regras de direito. aqui, os princípios já existentes no próprio universo jurídico agem, por influência teórico-ideológica, no processo de construção das novas regras.

A fase jurídica típica, surgida desde que consumada a elaboração da regra, corresponde ao estágio histórico em que ela irá reger as organizações e condutas sociais. certamente será aqui, nesta fase, que os princípios cumprirão seu papel mais relevante.

1. Fase pré-jurídica: construção do Direito

Na fase pré-jurídica, os princípios despontam como proposições gerais que propiciam uma direção coerente na construção da regra de direito. São veios iluminadores à elaboração da regra jurídica.

Os princípios gerais do direito e os específicos a determinado ramo normativo tendem a influir no processo de construção das regras jurídicas, orientando o legislador no desenvolvimento desse processo. nesse instante, os princípios atuam como verdadeiras fontes materiais do Direito, à medida que se postam como fatores que influenciam a produção da ordem jurídica.

A fase pré-jurídica, de elaboração da regra de direito, é tradicionalmente longa, tortuosa, em face dos distintos instantes de depuração e sedimentação que caracterizam o processo legislativo moderno. essa lenta maturação da norma favorece a influência, em seu construir, dos ideários e diretrizes contidos nos princípios jurídicos.

O inverso tende a ocorrer em processos de criação açodada, imatura e/ ou imprudente de regras jurídicas; aqui, entre outros graves problemas (como

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a centralização autoritária que lhe é inerente), tende a se mostrar tênue a influência dos princípios do direito. É o que se percebe, na história, nas experiências de regimes de exceção, como o regime militar no Brasil (1964-85). lamentavelmente, é o que se tem percebido também no afluxo incontido de medidas provisórias na trajetória republicana brasileira após 19881.

A influência dos princípios no processo regular de criação das regras jurídicas (desconsiderados, pois, os processos distorcidos acima mencionados) é, porém, ainda assim, relativa. É que se os princípios atuam aí como fontes materiais do direito, dificilmente têm a aptidão de se alçarem como a principal dessas fontes.

Na verdade, sabe-se que as principais fontes materiais do direito situ-am-se fora do sistema jurídico, provocando a modificação nesse sistema (pela criação de novas normas). Trata-se fundamentalmente das forças econômicas, dos movimentos sociopolíticos e das correntes político-filosóficas que instigam e condicionam a elaboração normativa.

2. Fase jurídica: Direito construído

O direito posto, construído, rege as organizações e condutas sociais. corresponde à fase jurídica típica, já consumado o processo de elaboração das normas. nesta fase, certamente, os princípios cumprem seu papel mais relevante.

Em primeiro plano, esclareça-se que os princípios compõem o próprio Direito posto, são elemento integrante do ordenamento jurídico. este se conceitua como o complexo de princípios, normas e institutos que regulam, em certo período histórico e área territorial, as relações sociais.

Na fase propriamente jurídica, os princípios desempenham funções diferenciadas e combinadas. insista-se que as distintas funções se exercem, muitas vezes, combinadamente, de modo simultâneo, no mesmo processo de apreensão, compreensão e aplicação do direito. embora isso não reduza a relevância de se identificar cada uma de tais funções específicas, não se pode olvidar que em seu processo operativo os princípios comumente exercem ao mesmo tempo seus diferentes papéis.

Os princípios integram o direito, nele exercendo, desse modo, distintas funções: função interpretativa (também chamada descritiva ou informativa), função normativa subsidiária (ou supletória), e função normativa própria (ou função normativa concorrente).

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A) Função interpretativa (ou descritiva ou informativa)...

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