Direito comum e direito colonial

AutorAntónio Manuel Hespanha
CargoProfessor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Páginas95-116

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Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro

Desde há uns anos que o tema das relações entre a sociedade Metropolitana e a sociedade brasileira se tem vindo a libertar de algumas imagens historiográficas translatícias, adoptando modelos de análise e pontos de vista que têm menos a ser com os imaginários nacionalistas do que com a incorporação de perspectivas mais modernas da historiografia geral.

Neste texto, abordo uma questão que interessa particularmente aos historiadores do poder e das instituições e cuja compreensão necessita de alguns esclarecimentos que a história do direito de Antigo Regime pode fornecer.

O meu ponto o seguinte. Para se falar de um direito colonial brasileiro - com a importância política e institucional que e isto tem -, é preciso entender que, no sistema jurídico de Antigo Regime, a autonomia de um direito não decorria principalmente da existência de leis próprias, mas, muito mais, da capacidade local de preencher o os espaços jurídicos de abertura ou indeterminação é assistente as na própria estrutura do direito comum.

De algum modo, a tendência para andar à procura do leis especiais para o Brasil quando se quer comprovar existência de um direito próprio é induzida pelo modo como a historiografia espanhola tratou tradicionalmente o chamado “direito dasPage 96Índias”. Na verdade, só muito recentemente – a partir de um livro do historiador argentino Vítor Tau Antzoategui 1 – é que a concepção de “direito das Índias” como complexo de leis da coroa foi substituída por uma concepção de direito construído pela prática - eventualmente, pela prática dos tribunais – nos espaços que o direito comum clássico deixava à regulamentação local, consuetudinária ou judicial.

É certo que a monarquia portuguesa emitiu algumas leis para o Brasil, embora em menor quantidades do que as editadas pela monarquia espanhola para a sua América 2. Em todo o caso, se se procurara pelo direito do Brasil colonial, é minimamente aí que ele se encontra. Diria mesmo que a maior parte destas providências vindas da corte indiciam - quando não as referem expressamentezonas de incumprimento do direito real e, portanto, de existência de um direito próprio.

De seguida, lembraremos os conceitos de direito comum que permitiam que as práticas locais se tornassem direito. Mostraremos, depois, como esta abertura às particularidades locais era política e doutrinalmente antipática ao poder da coroa, quer elas se referisse à metrópole, quer se referisse às colónias. Salientaremos, em todo o caso, como estas virtualidades de diferenciação periférica do direito, embora existissem em todos os lugares das monarquias, eram enormemente potenciadas nas situações “de fronteira”, como as colónias. Ao longo do texto, daremos alguns exemplos, quase todos referentes a Minas e provenientes do Códice Costa Matoso 3, do vigor destas práticas particularistas as periféricas que as fontes continuamente referem como divergentes, ou mesmo contrárias, ao direito do Reino.

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1. A autonomia do direito colonial como reflexo do pluralismo do ordenamento jurídico europeu de Antigo Regime

Na sociedade europeia medieval e moderna, conviviam diversas ordens jurídicas - o direito comum temporal, (basicamente identificável com a doutrina da tradição romanística, incorporada numa a mole imensa de textos, invariavelmente escritos em latim, e existentes nas bibliotecas das universidades e dos tribunais europeus), o direito canónico (direito comum em matérias espirituais, obedecendo basicamente à mesma natureza formal) e os direitos dos reinos, constantes, antes do mais, de leis que representavam a vontade do soberano, mas também do direito estabelecido pelos tribunais do Reino (praxe ou estilo dos tribunais).

A esta situação de coexistência de ordens jurídicas diversas no seio do mesmo ordenamento jurídico tem-se chamado pluralismo jurídico 4, que significa, portanto, a coexistência de distintos complexos de normas, com legitimidades e conteúdos distintos, no mesmo espaço social, sem que exista uma regra de conflitos fixa e inequívoca que delimite, de uma forma previsível de antemão, o âmbito de vigência de cada ordem jurídica. Tal situação difere da actual - pelo menos tal como ela é encarada pelo direito oficial -, em que uma ordem jurídica, a estadual, pretende o monopólio da definição de todo o direito, tendo quaisquer outras fontes jurídicas (v.g., o costume ou a jurisprudência) uma legitimidade (e, logo, uma vigência) apenas derivada, ou seja, decorrente de uma determinação da ordem jurídica estadual.

Referimo-nos, no parágrafo anterior, basicamente a três ordens jurídicas: o direito secular comum (tradição romanística), o direito canónico e o direito secular próprio (direito do Reino). Estamos, no entanto, a simplificar muito. Diremos brevemente porquê.

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2. A equivocidade das ordens jurídicas Divergências doutrinais

O direito comum, quer o secular, quer o eclesiástico, eram quase exclusivamente de origem doutrinal; e, por isso, estavam cheios de controvérsias, de argumentos de sentido diferente, desembocando em soluções contrárias. Pode dizer-se que o tecido do direito no era feito de regras, mas antes de problemas; para a resolução dos quais os juristas dispunham de fontes contraditórias, logo nos textos de direito romano, e de argumentos de sentidos contrários. A abordagem de no caso concreto era, por isso, feita de uma forma tentativa, confrontando o caso com vários argumentos (ou figuras de direito) possíveis, cada um dos quais justificaria uma solução diversa.

Dou um exemplo tirado de uma decisão real (embora aqui algo simplificada), que não é brasileiro, embora trate de um assunto com relevância para o Brasil. Se um pai, em testamento, legou uma escrava a um filho e, à data da morte testador, desta tinham nascido cinco filhos, estes fazem parte do legado ou devem ser considerados como incluídos na massa da herança, a dividir pelos herdeiros ? A resposta a esta questão depende da qualificação doutrinal que fizermos dos objectos “escrava” e “filhos de escrava”. Se estes forem tidos como frutos da coisa legada, não entrarão na herança, de acordo com a regra de direito comum de que os frutos seguem o destino da coisa principal. Se forem considerados como objectos independentes da sua mãe, não se consideram legados e entrarão, por isso, na partilha do remanescente da herança 5.

É certo que existia o princípio de que se devia decidir pela opinião comum, incorrendo numa violação deontológica e até em pecado, o jurista quePage 99imprudentemente se afastasse da solução mais frequentemente adoptada 6. Porém, apesar de se conceber, assim, a prática (local) como uma “ciência digestiva”, a escolha entre soluções diversas, quaisquer delas justificáveis em direito, criava uma grande margem de liberdade na altura de decidir. É isto que alimenta a burocracia judicial ou para judicial: memoriais jurídicos, litígios judiciais, alegações dos advogados das partes, sentenças contraditórias, recursos ou, puramente, a recusa de obedecer há ordens mais terminantes do monarca ou dos seus oficiais, mesmo de alto nível, como base numa opinião jurídica distinta.

A incerteza do direito não é igualmente boa ou má para todos. Normalmente, serve os mais poderosos, os que têm capacidade de influenciar, de subordinar, de sustentar com um litígio durante anos em tribunal ou, pura e simplesmente, de se estribarem no parecer de um letrado por sua conta para desobedecerem ao direito estabelecido. É, por isso, com este espírito que devemos ler as queixas, frequentes no Brasil ou em Portugal, sobre em incerteza do direito e liberdade dos juristas (ou juízes) na sua interpretação. Disso se queixam normalmente dos mais fracos ou, por outro razões, os funcionários mais zelosos do interesse da coroa.

Num papel do povo amotinado de Minas, dirigido ao governador D. Pedro de Almeida Portugal, conde de Assumar, em 1720, reclama-se um “Regimento para os salários [...] de sorte que se forem lá [no Rio] 4 vinténs de prata não duvidem [no Brasil] que sejam de ouro” (CCM, I, 372).

As próprias leis do Reino não estão da salvo deste entendimento de que o direito tem muitas faces, abrindo mais questões do que aquelas que fecha.

O que alguns (mas não outros) querem é, portanto, que haja um norte, uma regra certa, nas interpretações: “Assim como o leme é o governo da embarcação assim são os despachos para os contadores, e faltando nestes a clareza a respeito das condenações já se põem os contadores a adivinhar, e disto nascem dúvidas causadas das interpretações que cada um dá aos despacho, conforme lhe faz maisPage 100conta para se lhe diminuir o que se tem contado ou ao menos dilatar a causa, com o pretexto de embargo de erros de contas [...] Só assim se poderão evitar muitas maldade e ladroeira que se fazem, e com muito grande excesso os oficiais dos contratos e fazenda real” (CCM, I, p. 699).

Pode dizer-se que a interpretação distorcida era a legitimação formal e o princípio do abuso aberto dos poderosos locais contra a lei: “querem que os...

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