Direito à alimentação adequada: a rua, o estado e a afirmação de direitos

AutorEduardo Gonçalves Rocha
CargoEduardo Gonçalves Rocha é mestre em Direito pela UnB
Páginas1-14

Eduardo Gonçalves Rocha é mestre em Direito pela UnB, tendo como tema o Direito à Alimentação. Contato: eduardogoncalvesrocha@yahoo.com.br

Agradeço à Milena Pinheiro Martins pelos comentários críticos.

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Em 2006, foi aprovada a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), Lei nº11.346/06, que em seu art. 2º versa:

"A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população".

A aprovação pelo Congresso Nacional da LOSAN foi parte de um importante movimento nacional em defesa do direito a todos os brasileiros a se alimentarem adequadamente. Este movimento iniciou-se na década de 40 do século passado, ganhando força e respaldo na década 90, por meio dos movimentos sociais contra a fome e em defesa da cidadania. A aprovação da LOSAN é parte e relevante passo na luta pelo direito à alimentação.

Como se defenderá neste artigo, a dinâmica dos direitos passa pelos textos legais, por sua institucionalização, porém não se restringe a ela. O direito se faz na rua, no campo por meio do debate e da discussão pública, por meio da luta e defesa de princípios fundamentais. Como conseqüência e parte dessa discussão são promulgados os documentos legais. O direito fundamental a se alimentar é preexistente à LOSAN. A compreensão deste tópico é fundamental para o debate jurídico contemporâneo.

Em um direito que se encontra e se faz na rua a sociedade civil e os movimentos sociais ganham centralidade. Será por meio deles que demandas dos grupos excluídos poderão Page 2 ser escutadas e terão repercussão pública. Os movimentos sociais servirão como amplificadores de sofrimentos que não são escutados pela sociedade: desigualdades antes desconhecidas e não reconhecidas motivarão ações sociais visando à correção de exclusões. Assim, a participação torna-se essencial para a implementação dos direitos: o cidadão deve se reconhecer como autor e destinatário do sistema jurídico. Políticas públicas devem ser formuladas, implementadas e fiscalizadas com a participação da sociedade civil e dos movimentos sociais. Isto está no cerne da promoção da cidadania.

Este artigo defenderá que o direito se encontra na rua, no campo, sendo fundamental o papel dos movimentos sociais para a criação de novos direitos. A luta por reconhecimento é o que oxigena o Estado Democrático. A legislação é um passo decisivo no reconhecimento de um direito, porém, não é o momento final. Uma lei exige ainda mais luta para sua efetivação. É este o momento que se está vivenciando no tocante à alimentação adequada. Em 2006, foi aprovada a LOSAN, exige-se agora pressão da sociedade civil organizada para sua implementação.

1) Afinal o que é o Direito?

Ao falar sobre o que é o direito a maior dificuldade será dissociá-lo de suas falsas compreensões: "A maior dificuldade, numa apresentação do Direito, não será mostrar o que ele é, mas dissolver as imagens falsas (...) Se procurarmos a palavra que mais freqüentemente é associada a Direito, veremos aparecer a lei ..." (LYRA FILHO, 2006, p.7)

O direito não se restringe à lei, nem se limita ao Estado. Por outro lado, não se assume aqui o pressuposto jusnaturalista de que existem direitos naturais inerentes aos seres humanos. Os direitos são construções sociais temporais e em processo. Pode-se definir o direito como "a livre organização social da liberdade". Ou ainda como expressa Marx e Engels "o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos". (citado por LYRA FILHO, 2006, p.91).

Essas definições ainda estão muito abstratas, merecendo algumas explicações. Está no cerne da compreensão jurídica moderna a concepção de que todos os homens são iguais e livres: iguais em dignidade e livres para o exercício da autonomia. Liberdade e igualdade constituem o direito moderno: indivíduos modernos se consideram iguais e livres, sendo esses princípios que nortearão o direito contemporâneo. Page 3

Rompe-se aqui com a idéia clássica, kantiana, de que as pessoas físicas são proprietárias de si mesmas, em favor da concepção de que elas desenvolvem-se por meio de formas de vidas compartilhadas coletivamente. Os direitos desenvolvem-se em uma comunidade de jurisconsortes livres e iguais, conquistando legitimidade com base no reconhecimento recíproco. (HABERMAS, 2004, p.164, 384)

Crê-se que os vínculos dos membros de uma comunidade são mais profundos que um simples acordo artificial, como pressupõe a tese contratualista. A maioria das pessoas sentem alguma obrigação pelo grupo, responsabilidades associativas, que não provêm de uma escolha ou de um consentimento deliberado, mas que surgem, simplesmente, com o pertencimento à coletividade. O grupo ao qual se pertence e suas obrigações resultantes são definidas pela história de uma comunidade. Porém, essas obrigações não são definidas por decretos, por convenções, mas sim por meio da interpretação das práticas sociais.

Por meio da interpretação das práticas sociais, consegue-se definir o que é uma família, o que é a amizade, a religião, os princípios assumidos coletivamente: centro do direito. Mesmo associações eminentemente consensuais, como a amizade ou uma comunidade religiosa, não se fundam em acordos contratuais deliberados. As responsabilidades associativas surgem em decorrência de uma história em comum, de uma série de obrigações que se assumem para com o grupo e dificilmente são percebidas individualmente. (DWORKIN, 2003, p.237 e ss.)

Não se exige um acordo concreto, detalhado sobre as obrigações de uma comunidade: amigos não necessitam saber especificamente quais são suas responsabilidades. Obrigações associativas se dão em um nível mais abstrato. "Os amigos têm a responsabilidade de se tratarem entre si como amigos". Subjetivamente, a cada amigo deverá ser possível defender que suas ações são condizentes às obrigações de uma amizade. Mesmo que ambos companheiros não sejam capazes dos mesmos sacrifícios, devem pressupor que tenham o mesmo interesse um pelo outro e que sejam capazes de importantes sacrifícios, mesmo que diferentes. (DWORKIN, 2003, p.241).

Em uma sociedade fundada no reconhecimento é essencial a autonomia moral de cada cidadão. Uma regra não é cumprida cegamente, por simples dever. As normas são relativizadas de acordo com cada situação. Reconhece-se o caráter consensual, social, das normas, algo que decorre de relações recíprocas, fraternas, desenvolvidas com os demais membros. Relações mútuas determinam o cumprimento das normas, pois somente são Page 4 obedecidas quando possuem algum significado para o grupo, além de cessar a obrigatoriedade quando desrespeitadas pelas partes1. (FREITAG, 1987, p.54)

Cada cidadão reinterpreta as práticas sociais, os princípios que norteiam a comunidade e podem gerar compromissos explícitos. Com base na reciprocidade, o membro de um grupo, o cidadão pode fazer exigências aos outros e aceitar, ao mesmo tempo, as exigências alheias. Isso somente é possível por se viver em uma sociedade governada por princípios comuns, que são constantemente reinterpretados. As responsabilidades de cada membro não se esgotam com as regras, mas estão vinculadas aos princípios que norteiam a comunidade. (DWORKIN, 2003, p.230, 254-255)

O direito é antes de tudo uma atitude reflexiva, contestadora, em que cada cidadão é responsável em reinterpretar, em cada caso específico, os compromissos que unem a sociedade. Assim, não está adstrito ao Estado. É um compromisso com o futuro, mas mantendo a boa fé para com o passado. Pensar e reinterpretar os compromissos públicos é pensar o que a sociedade é, "...o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que queremos ter". (DWORKIN, 2003, p.492)

Esta atitude reflexiva tem como base o pressuposto de que todos os cidadãos são iguais e livres, portanto devem ser tratados com igual respeito e consideração. O direito é os...

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