Assédio Moral no Ambiente de Trabalho: uma Violação Silenciosa à Dignidade Humana no Âmbito das Relações de Emprego

AutorAna Carolina Gonçalves Vieira
Páginas290-300

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A valorização do trabalho individual, através de prêmios, faz surgir uma nova forma de convivência nas empresas. A rivalidade é estimulada de forma intensa e preocupante. O individualismo acaba sendo necessário para a sobrevivência. Cada empregado detém, agora, preocupação restrita à sua própria manutenção no serviço, evitando relações sociais e afetivas no ambiente de trabalho. As organizações também não estimulam (ou não desejam) que relações dessa natureza ocorram em seu território. Não percebem o quão degradadas estas relações se encontram. Perseguem apenas e tão somente o lucro, o capital, sem demonstrar qualquer preocupação eficaz com valores éticos e morais3.

Tais comportamentos, fatalmente, passam a gerar uma série de atritos no ambiente de trabalho, não apenas entre os empregadores (ou superiores hierárquicos) e empregados, mas também entre os próprios empregados. O medo se instala definitivamente. As relações humanas deterioram-se. Todos temem a perda do emprego, que está cada vez mais escasso e difícil de conquistar. Veem os outros como uma ameaça à sua subsistência. Preocupam-se em se manter no jogo a qualquer preço. Praticam atos dos quais muitas vezes se arrependem (ou não se orgulham). Acreditam (e com razão) que podem ser descartados a qualquer momento. Desejam apenas manter o emprego4.

Introdução

O mundo do trabalho é objeto constante de modificações, impostas pela sua já desgastada relação com o capital. Inicialmente, o capitalismo impôs a apropriação do saber operário, contemporaneamente, parece impor a apropriação da própria pessoa do trabalhador.

Como afirma Guedes (2004), antigamente as pessoas ainda se identificavam com seu trabalho, suas vidas transcorriam com a garantia de tranquilidade na velhice, contavam certo com a aposentadoria. Este ciclo era contínuo.

A globalização apresenta como novo paradigma o trabalhador que é capaz de ultrapassar as metas impostas pelo empregador, de não questionar ordens, de ser maleável, polivalente e flexível1.

O empregado atual vive para e não do trabalho. São deixadas em segundo plano as questões relativas à sua própria vida e a de seus semelhantes. Neste particular, parece que a predominância dos valores econômicos sobre a vida e a dignidade das pessoas é uma das mais perversas características atuais das relações empregatícias2.

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Tem início a competição: está dada a largada para o "cada um por si".

Como consequência do capitalismo desenfreado, são implementadas metas, desacompanhadas de qualquer bom senso ou razoabilidade, gerando uma constante opressão no ambiente de trabalho, capaz de contaminar todos os trabalhadores da empresa, sejam eles chefes, sejam eles subordinados. "As atitudes de desencorajamento, de ironia, de desligamento, de decepção, de desafeto pelo trabalho são, portanto, moeda corrente dentro do serviço" (DEJOURS, 1994, p. 50). Todos temem não corresponder aos anseios do capital. Sobrevivem como podem. A preocupação é generalizada.

Aqueles que adoecem, em razão do trabalho ou não, ocultam o fato sempre que possível. Sofrem calados. Trabalham doentes. Não querem aparentar qualquer fraqueza. Temem representar o papel de frágeis. A saúde perfeita é requisito essencial para a obtenção e manutenção do emprego5.

Os empregados são cada vez mais exigidos, cobrados, e nada recebem em troca. Sentem-se constantemente ameaçados, sufocados pela pressão sofrida no ambiente de trabalho. As pessoas pouco importam, foram rebaixadas. Perderam sua condição de seres humanos. Neste processo, acabam tratados como "coisas", como meros objetos a serviço do capital. Proporcionam-se o lucro, são importantes. Se não o proporcionam por qualquer motivo, ainda que transitório6, não mais interessam à organização.

Ao lado de tudo isso tem início uma campanha neoliberal pela flexibilização do Direito do Trabalho, que passa a ser visto como um empecilho ao crescimento econômico. Vista a situação sob esta lógica econômica, até parece coerente a tentativa de desarticular (ou destruir) este ramo do Direito. Afinal, se ele preocupa-se com o ser humano trabalhador e se foi construído sob as bases da proteção ao hipossuficiente, não atrai mais qualquer interesse. As pessoas novamente ficaram em último plano.

Mas, por sorte, ainda há aqueles (muitos) que defendem a manutenção do Direito do Trabalho7.

O trabalho é reconhecidamente fator relevante de dignidade para o homem. Se este mesmo trabalho atua como desestabilizador psicológico, o empregado acaba derrotado, humilhado, sem entender realmente o que se passa com ele.

O capitalismo, a globalização, a desvalorização do ser humano, o individualismo exacerbado e o temor relacionado com o desemprego emolduram, portanto, o cenário favorável (ou perfeito) para o surgimento do assédio moral.

Por todos esses motivos, é crescente o interesse da comunidade jurídica acerca das diversas modalidades de violação da dignidade humana ocorridas no ambiente de trabalho. Dentre elas, talvez em razão da recorribilidade do tema, ganha especial destaque o instituto jurídico do assédio moral (agora, recentemente, "destacado", equivocadamente do bullying, embora constituem-se em mesma conduta).

Uma simples pesquisa cujo tema seja "dano moral", em qualquer Tribunal Trabalhista, conduz a inúmeras decisões judiciais, todas com um traço em comum: assédio moral.

Por certo, não se trata de acontecimento novo, embora a preocupação com ele seja relativamente recente e certamente crescente.

Dos primeiros estudos sobre o assédio moral, realizados pela francesa Marie-France Hirigoyen (2002a), até os dias de hoje, pode-se afirmar que existe certa consolidação acerca do assunto. Diversas obras foram editadas. É farta a jurisprudência nacional.

Não obstante, pode ser que a preocupação com o fenômeno esteja se traduzindo em algumas interpretações equivocadas. Diz-se isso em razão do grande número de alegações de assédio moral que não atendem aos seus elementos básicos. A confusão (ou talvez a "desinformação") acarreta, entre outras coisas, na formulação, em juízo, por exemplo, de pedido de condenação da empresa ao "pagamento de assédio moral".

Confunde-se o instituto do assédio moral com o pedido de dano moral, que seria uma de suas consequências jurídicas dentre outras, como a rescisão indireta do contrato de trabalho, os danos patrimoniais sofridos - lucros cessantes e danos emergentes - além da possibilidade de configuração de acidente do trabalho por equiparação, em razão do adoecimento do empregado que guarde nexo de causalidade com o labor.

Instaurado o que se acredita ser o caos conceitual do assédio moral, é hora de refinar o estudo acerca do psicoterror. Buscar elementos caracterizadores das condutas. Colocar os "pingos nos is". Aprofundar a discussão. Reabrir os debates.

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1. Conceituação

Por certo, para a melhor compreensão de um dado fenômeno, é de extrema importância sua definição. Através do processo de conceituação, o estudioso será capaz de identificar com precisão os limites e as características essenciais do instituto objeto de análise. Assim, como ponto de partida para o desenvolvimento do tema, urge buscar conceitos preexistentes que possam indicar a exata proporção e definição do assédio moral.

Informa Aguiar (2005) que a utilização do termo assédio moral no Brasil ocorreu oficialmente em 28 de agosto de 1999, por meio do Projeto de Lei n. 425/1999, de autoria de Arselino Tatto, destinado apenas à administração pública municipal de São Paulo.

Importante destacar que a expressão "assédio moral" foi escolhida para denominar o fenômeno, partindo-se do pressuposto de que assediar significa "submeter sem trégua a pequenos ataques repetidos" (HIRIGOYEN, 2002b, p. 15).

O assédio moral no trabalho poderia ser definido como uma grave modalidade de violência psicológica, perpetrada no local de trabalho de maneira sistemática, abusiva e reiterada, constituída comumente por gestos, comportamentos, olhares e palavras sutis e covardes, levadas a efeito por empregadores, superiores hierárquicos e/ou colegas de trabalho, capaz de destruir psíquica e fisicamente a vítima, praticada pelo agressor com o deliberado objetivo de excluí-la do ambiente de trabalho ou de degradar o local em que os serviços são prestados.

No que se refere à legislação brasileira, ainda é incipiente a regulamentação do tema. Infelizmente, o Direito do Trabalho ainda não encontra na legislação suporte expresso para coibir a prática do assédio moral8. Existem projetos de lei que objetivam inserir na CLT, e até mesmo no Código Penal, consequências jurídicas específicas para o caso de psicoterror. Entretanto, atualmente, apenas existem em vigor leis municipais e estaduais, todas elas relacionadas com a prática do assédio moral no serviço público9.

2. Elementos característicos

Da análise do conceito atribuído ao fenômeno do assédio moral pode-se perceber os elementos que o caracterizam. Considerando a grande dificuldade de delimitação do instituto, assim como a própria vulgarização da utilização do termo, é de suma importância obter seus exatos contornos, o que apenas será possível com o fracionamento de suas características essenciais.

Torna-se unânime afirmar que constituem elementos característicos do assédio moral os seguintes:

- Intensidade da violência psicológica (NATUREZA PSICOLÓGICA);

- Prolongamento no tempo (CONDUTA REPETITIVA);

- Intenção de causar dano psíquico ou moral ao empregado para marginalizá-lo em seu ambiente de trabalho (FINALIDADE).

Impende ressaltar, também, como característica controvertida, a necessidade de diagnóstico clínico dos danos psíquicos (ou, em outras palavras, a própria ocorrência do dano psíquico).

Assim, diante da relevância de tais elementos, buscou-se um estudo mais detido de cada um deles.

Como primeiro...

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