O Assédio Moral Coletivo

AutorRenato de Almeida Oliveira Muçouçah
Ocupação do AutorProfessor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Páginas176-221

Page 176

1. Bases sociais, políticas e econômicas para a prática
1.1. O suporte ético do trabalho na empresa

O homem sempre buscou trabalhar no escopo de manter a integridade física, própria e da família, no sentido mais elementar do signo: conseguir os bens mínimos necessários à manutenção da vida física, a fim de garantir a autoconservação.

Por isto, o homem trabalhou e trabalha mesmo a baixos custos, em jornadas exaustivas, em condições precárias de higiene e segurança etc., evidenciando o trabalho como algo muito distante, portanto, de um possível processo de emancipação humana. Na sociedade capitalista, aliás, este possível processo mostra-se ainda mais inverso: em nome da sobrevivência lograda por meio do trabalho, os indivíduos direcionam toda sua formação, seu corpo, sua alma, à utilidade da técnica421. No mundo racionalizado torna-se irracional a possibilidade de o indivíduo destinar sua vida a algo que fuja às necessidades do sistema econômico, posto que isto agrediria, por si só, a autoconservação, ou seja, seu próprio existir.

Nessa sociedade o trabalho tornou-se um autêntico processo de alienação, pelo qual o sujeito se forma tão só para satisfazer o interesse do sistema, como já salientamos. Ao longo de todo esse processo o homem perde sua consciência e se reifica para garantir a autoconservação; o caráter coercitivo da alienação implica em sempre o indivíduo ter de fazer uma escolha entre sobreviver ou morrer. Não dedicar o homem sua existência para satisfazer às necessidades sistêmicas é algo que o estigmatiza, já que tal postura o conduziria à ruína ou, em outras palavras, fá-lo-ia

Page 177

regredir à pré-história. Assim, tudo o que não se ajusta ao progresso, à produção, às demandas, enfim, causa irritação e deve ser digno de repulsa.

A escolha humana entre submeter-se aos ditames da produção ou sucumbir não se dá ao acaso. Serve também à conservação da minoria que detém o poder: por meio da militarização significada no construir um “exército de reserva” de mão de obra, os donos da produção podem, a qualquer tempo, oferecer quaisquer condições de trabalho a possíveis trabalhadores interessados. Desta maneira, é oferecido o mínimo possível ao trabalhador para este manter sua autoconservação, enquanto ele deverá oferecer ao capitalista o máximo para a conservação deste.

Portanto, o capitalista já lucra duplamente: tanto na venda de seus produtos vários ao mercado quanto na exploração da mão de obra, remunerando-a em valor muito menor do que ela produz. Daí advém, aliás, a dignificação do trabalho: se antes este era considerado degradante, e realizado pelas classes inferiores submetidas a uma dominação repressiva, agora ele não mais envergonha. Mesmo os capitalistas, que forçavam os trabalhadores a produzir, passaram a denominar-se “produtores” para buscarem igualar-se aos empregados, na ânsia de apropriar-se mais racionalmente do trabalho alheio422.

Georges Friedmann, todavia, ressalva que mesmo quando o trabalhador, por uma razão qualquer, se desliga de uma atividade profissional rude, muitas vezes, sente saudades da época em que a desempenhava. Isto provaria o papel central que o trabalho, mesmo aviltante, desempenha na vida do ser humano: é “uma atividade essencialmente humana, criadora, aquela mesma que distingue o homem, homo faber, no conjunto das espécies animais”423. É por meio do trabalho, portanto, o modo como o homem modifica seu ambiente e se modifica a si próprio, traçando assim, nas palavras do citado autor, seu “destino particular”.

Em nosso sentir, porém, as instâncias do sistema de produção, como um prêt-à-porter, entregam ao indivíduo os comportamentos que este deve adotar como os únicos que podem ser considerados racionais, naturais e decentes, visto que doravante o trabalhador “só se determina como coisa, como elemento estatístico, como sucess or failure424. Não significa, é claro, negar a centralidade do trabalho: significa questioná-la na forma como o trabalho é exercido atualmente nos ambientes do trabalho patrocinados pelas empresas.

O sistema de produção coisifica seus agentes operacionais, transformando até mesmo o pensamento em algo de relativa inutilidade — inútil porque não propicia resultados imediatamente verificáveis ou, em outras palavras, não se adapta à funcionalidade requerida pela empresa. Esta funcionalidade, entretanto, assemelha-se aos jogos de azar, afirma Walter Benjamin425, e nisto talvez possamos compreender

Page 178

a afirmação de Friedmann, citada no parágrafo anterior. Aparentemente a proposição de Benjamin é estranha, pois podemos considerar ofício e ócio os mais figadais inimigos. Mas a máquina imprime ao empregado o mesmo mecanismo que o jogo de azar imprime ao jogador; a única diferença existente entre eles é a aventura, radicada apenas nos jogos de azar.

Em ambas as atividades não há qualquer conteúdo: tanto no jogo quanto no trabalho, o movimento é rápido, automático, de forma a não permitir a reflexão; qualquer operação levada a cabo não tem qualquer relação com a operação anteriormente realizada, justamente porque é igual a ela, repetindo-a. Nesta repetição, tanto o jogador quanto o empregado não conseguem observar uma sequência lógica, o desenrolar de seus atos. A atividade do trabalhador, assim como a féria do jogador é uma sucessiva, uma eterna série de atos repetidos, atos repetitivos, atos monótonos e, por isso mesmo, atos jamais concluídos. Como poderemos falar, portanto, em verdadeira subjetividade?

Ora, a experiência do homem forma-se com dados acumulados na memória durante o viver, parte deles inconscientes. Quando o indivíduo defronta-se com a possibilidade de uma experiência, “entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo”426. Esta é a função da assim chamada memória involuntária, pela qual o inconsciente traz à tona um somatório de valores adquiridos pelo homem mediante suas experiências. Neste sentido, o consciente (ou a memória voluntária) tem outra função: o processo estimulador, ora compreendido como qualquer fato vivenciado, encontra no consciente uma espécie de anteparo, de barreira, que protege o indivíduo contra os estímulos advindos do exterior.

Desta maneira, pela utilização do consciente, ou em outras palavras — pelos choques destinados aos indivíduos — tanto mais o consciente os protegerá contra os estímulos, e, portanto, tanto menos os fatos serão incorporados à experiência. Para adaptarem-se ao movimento da máquina, os operários coordenam e condicionam os seus próprios movimentos, sendo levados à uniformização. Isto retira do trabalhador qualquer possibilidade de incorporação de experiência, pois os operários, condicionados à automatização, conseguem apenas expressar-se desta mesma forma automática.

Os sentidos do trabalhador encontram-se submetidos à técnica, num espaço de tempo que Walter Benjamin chama de “infernal”, por nunca permitir “concluir o que foi começado”427. Na esteira desta uniformização, podemos afirmar que ela transcende os mundos do trabalho, sendo levada até mesmo à própria vida pessoal do trabalhador, seja em família, seja em comunidade. Desta forma, notamos que o comportamento do trabalhador é uma reação a choques, o qual se torna uniforme

Page 179

até mesmo na maneira de portar-se socialmente, culminando na padronizada forma de rir, nos gestos calculados, enfim, na “face imóvel e impassível”, sem qualquer expressão, como “o rosto de bebê dos homens de ação, dos políticos, padres, diretores gerais e gângsteres”428.

Os homens, que de início são diferentes entre si, por meio da coerção social que visa às finalidades do mercado são negados enquanto indivíduos para tornarem-se iguais, uniformes em atos, gestos e pensamentos. Conforme Adorno e Horkheimer, “os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu”429. A vida existente nos mundos do trabalho encontra-se organizada com base nos comandos, e “o eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador”430.

Os sentimentos havidos em afastar o homem de seu trabalho, ao contrário do que quer Georges Friedmann, parecem-nos denotar ainda mais o sustentado: sem consciência própria, sem possibilidade de construir a sua própria experiência, tornada apenas um número, a pessoa humana encontra em seu trabalho não o delinear de uma atividade criadora, nem o esquadrinhar de seu destino particular, mas o locus privilegiado para a obtenção de um discurso de verdade que preenche a sua vida: vida destituída desta mesma verdade, graças ao paradigma assumido pela forma de trabalho que lhe foi imposta.

Retirar-lhe esta parcela de verdade gera a lembrança, obtida na memória voluntária, de um período em que a verdade era produzida pelos discursos de poder personificados no empregador. Reflete, assim, a vivência automatizada do empregado que foi, num ato instantâneo (como numa dispensa ou num afastamento), retirada de sua esfera de ação. Porque, afinal, toda esta automatização das relações encaminha o homem novamente à selvageria, curiosamente por meio da disciplina que conduz ao isolamento e à normalização dos homens, como num tabuleiro de idênticas peças.

Como notam Adorno e Horkheimer, a sociedade capitalista encontra-se “dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas”431. Este conceito de igualdade serve à calculabilidade do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT