A dignidade da pessoa humana do trabalhador e a teoria geral dos direitos fundamentais

AutorAdriana Wyzykowski/Renato Da Costa Lino De Goes Barros/Rodolfo Pamplona Filho
Ocupação do AutorProfessora substituta da Universidade Federal da Bahia ? (UFBA)/Professor de Direito do Trabalho do Centro Universitário Jorge Amado e da Faculdade Dois de Julho/Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Salvador/BA
Páginas22-113

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2.1. Perspectiva civil-constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana

No decorrer do século XX, houve uma tendência de inclusão dos princípios fundamentais do Direito nas constituições dos países de tradição romano-germânica1.

Tanto é que, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 incluiu, como fundamento da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana. A saber:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I — A soberania;

II — A cidadania;

III — A dignidade da pessoa humana;

IV — Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V — O pluralismo político.

Nesse caminho, a prestigiada posição alçada pela dignidade da pessoa humana, nos termos e na forma proposta pela Constituição Federal, irradia sua eficácia a todo o ordenamento jurídico pátrio, demonstrando, especialmente no que concerne às relações privadas, a alteração de seu enfoque ao desprestigiar a autonomia e o patrimônio em nome do reconhecimento da necessidade de proteção do homem, visto em sua essência.

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Assim, evidente é a necessidade de reconstrução do sistema, especialmente na ótica civil-constitucional. Neste sentido, propõe Maria Celina Bodin de Moraes2:

Para a adequada e coerente reconstrução do sistema, impõe-se ao civilista o desafio de restabelecer o primado da pessoa humana em cada elaboração dogmática, em cada interpretação e aplicação normativas. A transposição de normas diretivas do sistema de Direito Civil para o da Constituição acarretou relevantíssimas consequências jurídicas que se delineiam a partir da alteração da tutela, que era oferecida pelo Código ao “indivíduo”, para a proteção, garantida pela Constituição, à dignidade da pessoa humana, elevada à condição de fundamento da República Federativa do Brasil. O princípio constitucional visa garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e não conduz exclusivamente ao oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação do Direito Civil, de um Direito que não mais encontra nos valores individualistas codificados o seu fundamento axiológico.

Afinal, com o advento do Novo Código Civil Brasileiro em uma leitura civil--constitucional, já é possível enxergar uma alteração na tendência de seu enfoque, reduzindo a importância dada às situações patrimoniais em nome da prevalência da situação extrapatrimonial, uma vez que a proteção humana deve ser prioritária.

Nesse caminhar, o intérprete deve valer-se desta nova orientação, aplicando a norma jurídica, em uma perspectiva integrativa civil-constitucional, no intuito de que seja tutelada, sempre prioritariamente, a dignidade da pessoa humana na resolução das lides postas em análise.

Necessário se faz, por oportuno, analisar o substrato que é dado ao princípio da dignidade humana pelo ordenamento vigente, no intuito de que sejam alcançados seu contorno e sua limitação.

2.2. O conceito da dignidade sob as óticas filosófica e jurídica

As reflexões sobre a dignidade feitas por Kant influenciaram e prevalecem no pensamento filosófico da atualidade.

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Fazendo alusão a Kant, sustenta Martins3 que: “em termos filosóficos-constitucionais parece haver um certo consenso no sentido de se considerar o princípio da dignidade da pessoa humana a partir da sua construção teórica”.

O fundamento kantiano baseia-se na premissa de que o homem, como ser racional, deve ser entendido como um fim em si. Assim, sustenta Kant4:

Ao invés, os seres racionais são chamados pessoas, porque a natureza deles os designa já como fins em si mesmos, isto é, como alguma coisa que não pode ser usada unicamente como meio, alguma coisa que, consequentemente, põe um limite, em certo sentido, a todo livre arbítrio (e que é objeto de respeito). Portanto, os seres racionais não são fins simplesmente subjetivos, cuja existência, como efeito de nossa atividade, tem valor para nós; são fins objetivos, isto é, coisas cuja existência é um fim em si mesma, e justamente um fim tal que não pode ser substituído por nenhum outro, e ao serviço do qual os fins subjetivos deveriam pôr-se simplesmente como meios, visto como sem ele nada se pode encontrar dotado de valor absoluto.

Impõe ele, para tanto, um imperativo prático que prevê que a humanidade deve ser tratada sempre como fim, e não como um meio para algo. E, neste caminho, o homem deve ser visto como um sujeito criador, capaz de criar suas próprias leis, impondo-as a si mesmo dentro de um ambiente de união sistêmica por meio de leis comuns. Explica Kant5 que:

Os seres racionais estão todos sujeitos à lei, em virtude da qual cada um deles nunca deve tratar-se a si e aos outros como puros meios, mas sempre e simultaneamente como fins em si. Daqui brota uma união sistêmica de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, ou seja, um reino o qual atendendo a que tais leis têm precisamente por escopo a relação mútua de todos estes seres, como fins e como meios, pode ser denominado reino dos fins (o que, na verdade, é apenas um ideal). Mas um ser racional pertence, na qualidade de membro, ao reino dos fins, pois que, muito embora ele promulgue leis universais, no entanto está sujeito a essas leis. Pertence-lhe na qualidade de chefe, enquanto, como legislador, não está sujeito a nenhuma vontade alheia.

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É essa relação mútua, dentro do chamado reino dos fins, que impõe a necessidade de agir neste sentido. Nas palavras de Kant6: “procede assim, não tendo em vista qualquer outro motivo prático ou vantagem futura, mas levada pela ideia de dignidade de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei que não seja, ao mesmo tempo, instituída por ele próprio”.

Dentro dessa Kant reflexão, refuta qualquer tentativa de coisificação do ser humano, garantindo a posição de destaque do ser racional humano ao sustentar que o mesmo estaria acima de todo e qualquer preço, não admitindo equivalente, por ter uma dignidade. Neste sentido, destaca Kant7: “o que constitui a só condição capaz de fazer que alguma coisa seja um fim em si, isso não tem apenas simples valor relativo, isto é, um preço, mas sim um valor intrínseco, uma dignidade”.

O ser racional humano é dotado de dignidade, que o faz insubstituível e livre para elaborar sua própria lei, que o regerá, inclusive, impondo-o deveres. Isto significa dizer, nas palavras de Martins8, que: “o homem precisa do dever para tornar-se um ser moral, pois obedecê-lo consiste em obedecer a si mesmo, na medida em que foi o próprio ser humano que consciente e racionalmente estabeleceu o dever”. Sobre esta moralidade, disciplina Kant9:

Ora, a moralidade é a única condição capaz de fazer que um ser racional seja um fim em si, pois só mediante ela é possível ser um membro legislador no reino dos...

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