Direito do Trabalho e Dignidade da Pessoa Humana: Redescobrindo a Tutela por uma 'Hermenêutica Responsável'

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas106-121

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1. Introdução

O desenvolvimento do Direito do Trabalho se confunde com a gênese e a evolução do modo de produção capitalista, tendo por marca uma natural “ambivalência”, pois, segundo Ramos Filho (2012, p. 94), busca “melhorar as condições de trabalho dos empregados, a fim de aprimorar a exploração” e, concomitantemente, tende a “diminuir as tensões e os conflitos” daí originados.

Contudo, a marcha da história não se faz linear, registrando ciclos de avanço e de retração das forças sociais, em especial daquelas atuantes no “mundo do trabalho”, tendo as últimas décadas do século XX se caracterizadas pela supremacia do ideário liberal e a consequente erosão das normas trabalhistas em todo o mundo.

Neste sentido, a busca pela preservação de antigas conquistas da classe operária tem se mostrado insuficiente a frear a dilapidação dos

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direitos sociais, distanciando cada vez mais da realidade a tutela prometida pelo Direito do Trabalho e pela própria Constituição da República de 1988. Mostra-se, portanto, premente uma atuação dos atores jurídicos, por meio de uma “hermenêutica responsável” das normas relativas ao trabalho subordinado, a fim de efetivar seu fim maior: a dignidade da pessoa humana.

Tecidas tais ponderações, almeja-se neste ensaio analisar a evolução do conceito de dignidade da pessoa humana e sua relação com os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa na Constituição Brasileira de 1988 e apresentar uma proposta de releitura de algumas normas vigentes, a fim de emprestar maior efetividade ao Direito Laboral, lançando mão, para tanto, de uma “hermenêutica responsável”.

2. Constituição de 1988 Dignidade da pess oa humana

A Constituição de 1988 ostenta particular significação para o país, por se revestir de verdadeiro marco jurídico e político final de 20 anos de um regime ditatorial e de exceção, ao longo do qual as liberdades individuais poderiam ser suspensas por decisão do Presidente da República, com amparo no Ato Institucional n. 5/1968.1Por conta de tal cenário, verifica-se a positivação dos anseios populares no preâmbulo e nos primeiros dispositivos da Lei Maior, em especial nos arts. 1º, 3º e 5º, por proclamar o país um Estado Democrático de Direito, fundado na cidadania, na soberania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa, bem como no pluralismo político, tendo por objetivos fundamentais a construção e o desenvolvimento de uma socie-dade livre, justa e solidária.

De tais fundamentos, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa guardam central importância ao estudo em curso, pela intrínseca vinculação com o labor subordinado.

Quanto à “dignidade da pessoa humana”, pela própria complexidade do termo, necessária uma breve digressão sobre seu desenvolvimento junto à Filosofia.

Rabenhorst (2001, p. 16) sustenta que na sociedade grega a dignidade não se manifestava da mesma forma em todos os indivíduos, variando em função da posição que estes ocupavam dentro da polis.

Essa ideia de dignidade como “hierarquia”, sustentando relações de poder fulcradas na condição diferenciada e proeminente de algumas pessoas em face de outras, perdurou ao longo de toda a história.

Assim se deu na Roma antiga, entre patrícios e plebeus; na Idade Média, entre senhores feudais e servos e; na idade moderna, entre colonizadores e colonizados.

Na idade contemporânea, várias foram e são as manifestações dessa concepção hierárquica de dignidade, sendo um de seus maiores exemplos a suposta supremacia da raça ariana defendida pelos nazistas.

As concepções rudimentares em torno da ideia de que os homens são iguais em dignidade surgiram na Filosofia Estóica.

Aquino (1977, p. 82-83), por seu turno, estabelece uma espécie de escala entre os seres inanimados e animados, destacando, entre estes últimos, o homem como ser supremo, dado a sua inteligência, fator que o aproxima do Divino.

Procurando encontrar uma explicação lógica (racional-científica) às sagradas escrituras, principalmente quanto à questão da Imago Dei (imagem de Deus — o homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus), Tomás de Aquino procura enquadrar o homem em posição destacada no plano da Criação (dignidade humana), colocando em evidência a racionali-dade (inteligência) deste.

Immanuel Kant, segundo Rabenhorst (2001, p. 16), foi o filósofo que melhor estabele-

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ceu a noção de autonomia e a ideia de dignidade humana.

Kant estabelece uma distinção entre os seres irracionais, considerando-os como meio, e os seres racionais, considerando-os como um fim em si mesmo. Estes últimos, porque dotados de razão, possuem autonomia que os torna dignos de respeito e de consideração.

Dessas deduções filosóficas, Kant vai depurando seu pensamento até chegar à formulação daquilo que denomina imperativo categórico, ou seja, uma máxima de conduta, dedutível da racionalidade pura do homem, que idealisticamente deve conduzir a sua ação no plano individual e no plano social de suas relações intersubjetivas.

Tal imperativo categórico é lançado por Kant (1964, p. 92) nos seguintes termos: “Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio”.

Nessa linha, conceitua dignidade nos seguintes termos: “No reino dos fins tudo tem um PREÇO ou uma DIGNIDADE. Uma coisa que tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade” (1964, p. 98).

Do sistema filosófico de Kant nasce a ideia de que o homem, por ser dotado de dignidade, é um fim em si mesmo e, por isso, não pode ser coisificado (tratado como mero objeto) e, muito menos, instrumentalizado (tratado como meio para atingir um determinado fim) por seus semelhantes.

Todavia, passadas as experiências históricas da Revolução Industrial e das duas Grandes Guerras Mundiais, que evidenciaram exemplos tristes de violação da dignidade humana, foi verificado que não bastava meramente proclamar a dignidade da pessoa humana. Era necessário protegê-la com instrumentos que pudessem ser exigidos coercitivamente, transformando-a em uma categoria jurídica, vindo a integrar, inclu- sive, diplomas internacionais, como o Tratado de Versalhes (1919) e a Declaração Universal dos Direitos dos Homens (1948).

Assim, pertinente destacar o entendimento de Sarlet (2004, p. 70), para quem:

(...) a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o art. 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia.

Em síntese, a dignidade da pessoa humana, para além de uma categoria filosófica, figura como fundamento da ordem jurídica, sendo por esta protegida, exigindo do Estado e dos particulares condutas que não só respeitem a individualidade do homem, como também lhe proporcione tratamento igualitário perante os seus semelhantes, inclusive com medidas concretas (prestações materiais) que lhe proporcionem existência digna.

Sob inegável influência das correntes filosóficas descritas, rompendo com o paradigma vigente, foi a dignidade da pessoa humana erigida pelo Constituinte brasileiro não “apenas” a um Princípio, tendo “alçado a epicentro do ordenamento jurídico”, segundo expressão de Flórez-Valdez (apud DELGADO, 2006, p. 79), devendo as demais normas a este se submeter quanto à finalidade.

Partindo desta compreensão, verifica-se que os “valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa” alcançam a atividade produtiva como conjugação do trabalho humano subordinado com a atividade empreendedora de capital para além da simples produção de riqueza aos envolvidos, atingindo outros efeitos, v.g.: geração de impostos ao Estado, desenvolvimento cultural e tecnológico para as comunidades próximas e atração de investimentos estrangeiros.

Com isso, a Constituição explicita não apenas seus objetivos (construção e desenvolvimento

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de uma sociedade livre, justa e solidária e promoção do bem comum), mas também os parâmetros a serem observados para alcançá-los (valores sociais do trabalho e na livre-iniciativa), na busca da realização de um fim maior: a dignidade da pessoa humana.

Para Grau (2000, p. 236-41) a adjetivação “valor social” atribuída pela Lei Maior, em seu art. 1º, inciso IV, refere-se tanto ao trabalho, quanto à livre-iniciativa, devendo esta ser compreendida não “como expressão individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso”, sendo “um modo de expressão do trabalho e, por isso mesmo, corolária da valorização do trabalho livre — como observa Miguel Reale Júnior — em uma sociedade livre e pluralista”.

Embora aparentemente óbvia, dita constatação simboliza um movimento de vanguarda no ordenamento jurídico nacional, na medida em que simples leitura do art. 160 da Constituição anterior, de 1967, com as alterações promovidas pela Emenda Constitucional n. 1/1969, confirma a cisão conceitual ocorrida:

Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios:

I — liberdade de iniciativa;

II — valorização do trabalho como condição da dignidade humana;

III — função social da propriedade;

IV — harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção;

V — repressão ao abuso do poder...

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