A Dicotomia Público-Privado no Direito Processual Civil

AutorEduardo Kochenborger Scarparo
Ocupação do AutorAdvogado em Porto Alegre; Mestrando em Direito Processual Civil - UFRGS.
Páginas211-230

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SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Dicotomia Público-Privado. 3 Direitos Fundamentais e Interesses Públicos e Privados. 4 Autonomia da Vontade no Âmbito do Direito Público. 5 O Processo e a Dicotomia. 6 Considerações Conclusivas. 7 Referências Bibliográficas.

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1 Introdução

IntroduçãoIntrodução IntroduçãoIntrodução

Tornou-se tão comum quanto irrefletida a afirmação de que o Direito Processual é ramo do “Direito Público” e, por isso, tem suas regras e princípios voltados ao interesse público. Como verdadeiro dogma erigido a partir da cientificação do processo, a publicização de todo interesse envolto às normas processuais confunde-se indevidamente com a publicização do processo, independentemente dos contextos científico, constitucional ou social ao qual se relacionam. Deve-se questionar desde a inserção do Processo Civil como ramo de “Direito Público”, até as conseqüências de valor em suas normas oriundas desse enquadramento.

Tamanho é o dogma da independência do Direito Processual do Direito Privado e tão incrustado ele está em nossa estrutura de pensamento que não será surpresa se, até a metade deste estudo, se queira denominálo jocosamente de um capítulo de direito material em um livro de direito processual. Todavia, prosseguindo-se na leitura, verificar-se-á que, ao fundo, alguns dos temas mais contemporâneos de Direito Privado são, também, temas de Direito Processual. O que muda é a perspectiva. Na verdade, o objeto deste estudo é um tema de Direito comumente estudado pela ótica material, mas que agora vai trabalhado em um estudo voltado ao processual.

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* Advogado em Porto Alegre; Mestrando em Direito Processual Civil – UFRGS. Contato com o autor: eduardo@scarparo.adv.br.

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Para cumprir essa difícil tarefa, primeiramente, duvidar-se-á da dicotomia erigida entre o “Direito Público” e o “Direito Privado”. A partir daí, identificar-se-á a presença ou a ausência de interesses privados tutelados por normas do chamado “Direito Público”. Após, tecer-se-ão considerações sobre o processo e sobre os valores e interesses que preservam, tendo como paradigma de reflexão as disposições presentes na Constituição Federal.

O tema mostra-se relevante, uma vez que perquire sobre os elementos estruturais e normativos da ciência processual, buscando a identificação dos seus valores fundamentais. Afinal, é a substancialidade das formas processuais – os valores e interesses que tutelam – que produz a necessidade de preservá-las.

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2 A Dicotomia Público-Privado

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Em geral, identifica-se nas relações contemporâneas o esfumaçamento entre os limites do “Direito Público” e do “Direito Privado”. A inserção de um ramo do Direito como “Público” ou “Privado” é cada vez mais tormentosa porque esse direcionamento exige remissão às funções institucionais contemporâneas da ciência jurídica. Esses propósitos somente são compreendidos usando-se uma visão não-reducionista dos fenômenos jurídicos e sociais. Utiliza-se de perspectivas também socioculturais, ao revés de fazer uso exclusivamente das meramente técnico-jurídicas.

Discute-se se a distinção entre o “Direito Público” e o “Direito Privado” foi engendrada já no Direito Romano ou às vésperas do Código de Napoleão. Aponta-se comumente para a resposta o seu ingresso na história do pensamento jurídico ocidental pela seguinte passagem de Ulpiano do Corpus Iuris Civilis:

Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem pertinet. dicendum est igitur de iure privato, quod tripertitum est; collectum est enim ex naturalibus praeceptis aut gentium aut civilibus1.

1 Digesto, 1.1.1.2. O texto foi assim traduzido por Hélcio Maciel França Madeira: “São dois os temas deste estudo: o público e o privado. Direito público é o que se volta ao estado da res Romana, privado o que se volta à utilidade de cada um dos indivíduos, enquanto tais. Pois alguns são úteis publicamente, outros particularmente. O direito público se constitui nos sacra, sacerdotes e magistrados. O direito privado é tripartido: foi, pois, selecionado ou de preceitos naturais, ou civis, ou das gentes”. MADEIRA, Hélcio Maciel França. Digesto de Justiniano. Liber Primus. Introdução ao Direito Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais; Osasco: Centro Universitário FIEO, 2002, p. 17-18.

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Contudo, o famoso texto no qual a duplicidade ius publicum e ius privatum fundou-se direcionava a um pensamento absolutamente diverso do resultado alcançado após dois mil anos de ciência jurídica. Quando Ulpiano afirmou “Huius studii duae sunt positiones: publicum et privatum”, quis dizer que as questões jurídicas poderiam ser estudadas em duas perspectivas. Todavia, “il testo è stato generalmente inteso come se le positiones avessero carattere sostanziale, come se il diritto pubblico e il diritto privato fossero distinti, e in questo dibattito insolubile si refletteranno nei secoli le concezioni e le ideologie della scienza giudirica, fino ai nostri giorni2.

Historicamente, nota-se que apenas no século XVIII houve uma diferenciação entre as esferas econômicas e a esfera das relações políticas, entre a sociedade civil e o Estado3. Neste período foi preconizada uma separação quase absoluta entre o direito que regularia os interesses gerais e as relações entre indivíduos4.

A dicotomia fundou-se na ideologia liberal de igualdades formais, própria às necessidades econômicas emergentes ao desenvolvimento do capitalismo. “Esta separação entre público e privado tornava a economia um campo infenso à intervenção estatal”5. Pela edição desses limites ao poderio estatal, portanto, se construiu o “Direito Privado” e, em especial, o Direito Civil6. Assim, forte no princípio de abstenção de atuação estatal no mercado, o modelo do estado liberal se baseou em uma “rígida separação

2 SATTA, Salvatore. Il formalismo nel processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, ano XII, n. 4, p. 1141-1158, dez. 1958, p. 1151. Tradução livre do autor: “O testo foi geralmente entendido como se as posições tivessem características substanciais, como se o direito público e o direito privado fossem distintos, e neste debate sem solução se refletiram nos séculos as concepções e as ideologias da ciência jurídica, até nossos dias”.

3 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 13-62, p. 18.

4 FINGER, Julio César. Constituição e Direito Privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituição Concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 85-106, p. 86.

5 SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 23-116, p. 36.

6 FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos Fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. Ingo Wolfgang. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 89-106, p. 92.

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entre Estado e sociedade”7. Sintomaticamente, nas chamadas relações privadas era terminantemente proibida a influência do poder público.

A partir da ruptura promovida pela Revolução Francesa, o direito privado passou a espelhar a ideologia burguesa, retratando necessidades das classes que tomaram o poder8. A origem dos direitos fundamentais, inclusive, está fortemente vinculada ao desiderato de separação entre os espaços privados e públicos.

Acima de tudo, os direitos fundamentais – na condição de direitos de defesa – objetivam a limitação do poder estatal, assegurando ao indivíduo uma esfera de liberdade e lhe outorgando um direito subjetivo que lhe permita evitar interferências indevidas no âmbito de proteção do direito fundamental ou mesmo a eliminação de agressões que esteja sofrendo em sua esfera de autonomia pessoal.9Contudo, a separação absoluta entre os interesses públicos e privados sofreu abalos com as inúmeras mudanças sociais que advieram na história mundial, culminando no Estado Capitalista Intervencionista (Welfare State). A partir da mudança, nas relações político-econômicas, o Estado deixou de ser mero espectador, para protagonizá-las, disciplinando-as de forma cogente. Com a abertura das fronteiras de atuação do Estado, “ele foi aos poucos se reapropriando do espaço conquistado pela sociedade civil burguesa até absorvê-lo completamente na experiência extrema do Estado total”10.

As codificações, símbolos das distinções absolutas entre o público e o privado, perderam progressivamente força para leis esparsas e não concentradas; operando uma verdadeira inflação legislativa11. Essas

7 SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In...

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