Deveres resultantes do princípio da cooperação processual: um debate com a doutrina portuguesa

AutorEduardo Augusto Madruga de Figueiredo Filho/Sérgio Cabral dos Reis
CargoMestre em Direito Processual Civil pela Universidade de Coimbra/Mestre em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense (UNIPAR)
Páginas100-121

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1. Introdução

A reunião dos pilares principiológicos do processo, no início do diploma legislativo, alinha-se com a tendência das atuais reformas processuais, como o recente CPC português, e vai ao encontro da necessidade de compreender o processo a partir de um a?nado diálogo entre o Direito Processual, os Direitos Fundamentais e o Direito Constitucional.

O código projetado afasta-se de um “tratamento puramente privatístico”1, que se pauta no protagonismo das partes e na ?gura estática do juiz, bem como do processo social que se embasa nos reclames do Estado Social e no amesquinhamento do papel das partes em prol de um juiz interventivo. Superam-se, então, os modelos tradicionais de processo os quais se mostram incapazes de dar respostas humanísticas e éticas aos novos anseios da população.

Percebe-se que o principal antídoto contra o “vírus do autoritarismo”2 é o princípio da cooperação intersubjetiva, que surge como uma enzima que irá aperfeiçoar a aplicação do princípio dispositivo e do inquisitório, expurgando os contornos excessivos ou as concepções pálidas de tais princípios. A máxima da cooperação tem, assim, o condão de criar uma atmosfera dialogal e cooperante em esferas que antes eram de monopólio apenas das partes ou do juiz.

Por essa razão, a ideia do presente estudo surge da necessidade de defender um terceiro modelo processual tradutor das necessidades de um Estado Democrático de Direito, que deve ser concretizado e solidi?cado com o desenvolvimento do princípio da cooperação.

É imperioso coletar nos direitos fundamentais, na garantia do processo justo, no princípio da igualdade, no princípio da boa-fé processual, no contraditório e nos deveres da cooperação o material genético que formará o DNA do modelo processual cooperativo.

A melhor doutrina — a que nos ?liamos — aponta para a pertinência desse novo modelo, cujo arrimo quali?cativo ideal é o cooperativo ou “comparticipativo”3 e encampa o princípio da cooperação como uma de suas linhas mestras na tarefa de obter com brevidade e e?cácia a justa composição do litígio.

No mesmo sentido, Mariana França Gouveia concebe o modelo cooperativo como uma terceira via que se distancia dos modelos clássicos e que tem como espinha dorsal o princípio

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da cooperação, que tenta impor uma mudança de postura a ser adotada pelos sujeitos processuais no curso de todo o processo4.

Fredie Didier trilha esse caminho, ao defender que, no modelo cooperativo, a condução do processo deixa de ser determinada por atuações exclusivas, seja da parte ou do juiz, para se buscar uma condução cooperativa do processo, sem protagonismos5, onde não há barreiras ou obstáculos para a comunicação entre os sujeitos processuais.

O código projetado, o primeiro depois da promulgação da atual Constituição, ampara todo o eixo axiológico presente nesta Carta Magna e introduz as bases desse novo modelo processual, humanizador e garantístico, a ser concretizado pela doutrina e pelos operadores do direito.

O projeto de NCPC apresenta como “marco estrutural”6, como pedra de toque da estruturação do processo o princípio da cooperação intersubjetiva, que almeja a figura de um juiz colaborante, que personi?ca os anseios democráticos e participativos de um Estado Democrático de Direito.

O modelo cooperativo encontra seu substrato nodal no princípio processual da cooperação intersubjetiva. Tal princípio destina-se a transformar o processo civil em uma comunidade de trabalho” (arbeitsgemeinschaft, comunione del lavoro) e a responsabilizar as partes e o tribunal pelos seus resultados7.

É, pois, nesta lógica dialogal que esse novo modelo se espraia, como oportunamente observa Eduardo Grasso, quando a?rma que “o juiz, no desenvolvimento do diálogo, move-se para o nível das partes: a tradicional construção triangular é substituída por uma perspectiva de posições paralelas”8. A comuni-dade de trabalho deve, pois, ser compreendida como um feixe de relações colaborativas que se desenvolvem em um plano paralelo, com plena predominância do diálogo.

A correta divisão das funções entre as partes e o tribunal é, indubitavelmente, aquela que impõe que, ao longo de todo o iter processual, seja mantido um diálogo entre todos os sujeitos processuais, devendo o processo ser entendido, essencialmente, nas palavras de Costa e Silva, como uma “comunidade de comunicação”9, que permita uma discussão a respeito de todos os aspectos fáticos e de direito relevantes para o deslinde da causa.

A atividade dos três sujeitos processuais, portanto, deve se entrecruzar mutuamente por meio do diálogo, resultando em uma “unica forza operosa (unus actus)10, força essa que tem uma direção certa: a descoberta da verdade processualmente possível.

E, nessa perspectiva, en?m, estudaremos o princípio em apreço.

2. Princípio da cooperação intersubjetiva

A colocação da ideia de cooperação na categoria de princípios processuais possui vozes contrárias na Alemanha. Filiamo-nos, no entanto, à corrente11 que identi?ca a máxima

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da cooperação como um princípio que tem origem germânica e corresponde, nas lições de Greger, a “ideias fundamentais que determinam globalmente o termo e o caráter de um processo judicial e de?nem o conjunto de orientações e comportamentos das partes”12.

Em Portugal, o princípio da cooperação foi consagrado expressamente no art. 266º/1 do CPC com a reforma de 95/96, sendo tal redação repetida no NCPC português no art. 7º/1 do CPC.

Teixeira de Sousa13 é quem vai desenvolver as linhas mestras do princípio da cooperação no ordenamento português. O eminente doutrinador não confere ao princípio da cooperação e?cácia normativa direta capaz de agregar situações não previstas em regras ou subprincípios. Para esse autor, a máxima da cooperação só pode ser aplicada por meio de regras que a concretizem.

O professor de Lisboa defende ainda que a sistemática de funcionamento da cooperação estrutura-se pela expressa previsão de regras que estabeleçam um plexo de deveres impostos ao magistrado: de esclarecimento, de prevenção, de auxílio e de diálogo14. Assim, tais deveres são consagrados em artigos especí?cos do ordenamento jurídico português, e não extraídos da cláusula geral da cooperação presente no art. 7º do NCPC (português).

Destaca-se que tal delimitação evidencia os limites do princípio, deixando-os relativamente claros, o que leva o juiz a pautar a sua atuação apenas em consonância com as concretizações normativas legais.

Essa restrição ocasiona um grande empobrecimento de aplicabilidade à máxima da cooperação, pois, de acordo com Costa e Silva,

“ao exigir-se uma norma de concretização, amputa-se este princípio do seu espaço natural de actuação: o de impor uma intervenção justi?cada diretamente por uma justa composição do litígio”15.

Defendendo uma posição que amplia os horizontes de aplicação da máxima da cooperação, Fredie Didier, corretamente, a?rma que “a eficácia normativa do princípio da cooperação independe da existência de regras jurídicas expressas”16. Na linha de Humberto Ávila17, Fredie Didier confere ao princípio da cooperação e?cácia normativa direta capaz de impor e tornar devidas condutas necessárias à obtenção de um processo leal e cooperativo, mediante substancial cooperação entre as partes e o juiz.

O estado ideal de coisas que o princípio da cooperação busca promover é a transformação do ambiente processual em uma comunidade de trabalho18, ou seja, a sua bússola deve ser a transformação do processo em uma comuni-dade de diálogo, para, dentre outros objetivos, mitigar as desigualdades processuais, valorizar a primeira instância e alcançar a tão almejada justa composição do litígio.

Apesar de o princípio da cooperação já ter reconhecimento jurisprudencial e implícito pela doutrina brasileira, faz-se mister enfatizar o grande salto qualitativo dado pelo projeto de NCPC brasileiro, ao prevê-lo expressamente no rol dos princípios estruturantes do processo19.

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Desse modo, acreditamos que o art. 6º do projeto deve ser dotado de e?cácia normativa direta su?ciente, para dar suporte a todo leque de situações que devem ser acobertadas pelos reclames da participação, da lealdade e do ideal cooperativo de processo, dando um maior conteúdo ao princípio da cooperação.

Acontece que os princípios, segundo Humberto Ávila20, possuem ainda uma e?cácia indireta, quando atuam por meio da inter-mediação de outras normas. Nessa faceta da e?cácia da cooperação, as regras exercem um papel fundamental, pois possuem uma função de? nitória em relação ao princípio da cooperação, na medida em que de?nem e delimitam os comportamentos e condutas a serem adotados no intuito de concretizar as ?nalidades estabelecidas pelo princípio.

O projeto, nessa seara, poderia ter dado passos mais largos, pois não sistematizou o plexo de regras que de? nem o princípio da cooperação de forma correta no que concerne aos deveres de esclarecimento, prevenção, auxílio e consulta, pois tratou o tema de maneira esparsa21, como ainda acontece no CPC atual.

De todo modo, impõe-se enfatizar, neste momento, que, a partir da positivação do princípio em comento, deverá haver alteração do modo de atuar do magistrado perante o litígio, imunizando-o do possível autoritarismo judicial. É o que preleciona Mariana França Gouveia22:

Quanto mais se defender a postura colaborante do magistrado mais autoritarismo lhe retiraremos. Uma magistratura obrigada pela colaboração é a concretização de uma justiça próxima ao cidadão, de uma justiça ao seu serviço. Uma justiça de igualdade entre todos os homens, independentemente de sua posição concreta.

Nesse contexto, demonstraremos a seguir que o princípio da cooperação impõe ao juiz um feixe de deveres, visando à democratização do processo...

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