O dever-Poder do Juiz do trabalho diante do dano Social

AutorJorge Luiz Souto Maior/Ranúlio Mendes Moreira/Valdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí/Juiz do Trabalho do TRT da 18ª Região; Ex-juiz do trabalho do TRT da 3ª Região/Juíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas117-147

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O debate acerca da possibilidade de os juizes, em reclamações individuais, deferirem indenização adicional por "dumping social", independentemente de pedido da parte, é bem mais profundo do que à primeira vista pode parecer.

O que se questiona, em última análise, é o papel do juiz na atual conjuntura de Estado nacional. Evidencia-se uma crise em nossas instituições, traduzida pelo hiato entre a vontade popular e a atuação do legislador, pela inércia e cumplicidade do administrador com o desrespeito contumaz a direitos sociais, bem como pela exigência de que o juiz fique alheio a tudo isso.

Se pensarmos acerca da função dos poderes de Estado dentro do ideal burguês de Estado nacional, não teremos muita dúvida de que ao juiz cabe aplicar a lei sem questioná-la e, especialmente, sem criar. No âmbito do processo, essa ideologia se traduz em regras que determinam a estrita observância aos limites da lide, vinculando a atuação do juiz à manifestação de vontade das partes.

A questão em debate bem serve para demonstrar isso. São inúmeros os acórdãos modificando a sentença para excluir a condenação por "dumping social" com um único argumento: ausência de pedido da parte, ignorando a própria configuração jurídica atribuída ao fato identificado e provado nos autos: o dano "social", que evidencia que o prejuízo não foi experimentado apenas pela parte. Essas reformas agarram-se ao paradigma racionalista que atribui ao juiz uma função passiva e irresponsável perante a realidade social.

O compromisso velado em prol da preservação do "status quo", ainda que embasado em prática supressiva de direitos, é assumido por grande parte da doutrina e da jurisprudência a partir dos postulados teóricos da concepção

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jurídico-liberal-burguesa, mesmo que o pacto do período pós-guerra tenha apontado para a superação dessa lógica. Essa fixação nos preceitos liberais impede que se perceba uma realidade marcada pela mais límpida obviedade: a violência da prática de agressões reiteradas aos direitos sociais por quem ostenta poder económico.

Ao ingressar com uma demanda, a parte pretende uma manifestação judicial que ponha fim ao litígio, pacificando o conflito social preexistente (ou, ao menos, minimizando-o). Pretende, a toda evidência, que tal manifestação seja tempestiva, de sorte a pacificar as relações sociais a tempo de evitar uma deterioração irreversível.

Quando várias pessoas demandam trazendo ao conhecimento do poder judiciário, de forma reiterada, a mesma realidade de inobservância de direitos sociais, buscam, além da satisfação de seus créditos, uma tomada de posição do Estado. Pretendem uma resposta que as faça novamente acreditar na realidade projetada como um áever-ser em nossa Constituição.

O principal argumento contrário à tese que reconhece o dever-poder do Estado-Juiz em condenar empresas reincidentes pela prática de "dumping social" diz com a ausência de pedido expresso da parte. Fundamenta-se, pois, em uma visão equivocada e ultrapassada do conteúdo do princípio dispositivo, cujo caráter democrático é inegável.

4.1. O debate sobre algumas consequências processuais da condenação por dumping social

Muitos intérpretes/aplicadores do Direito do Trabalho se assustam diante da possibilidade de condenação ao pagamento de indenização por "dumping social", de ofício, pelo juiz, no âmbito de uma demanda individual.

As oposições de ordem processual se somam. Há quem refira a quebra do contraditório, porque o fato que resultou na condenação não teria sido submetido à discussão prévia durante a instrução do feito.

Outros opõem o argumento de que há quebra do princípio da inércia da jurisdição, exigindo que haja pedido da parte, para que o juiz possa se pronunciar acerca da existência de "dumping".

Há, também, quem pondere a quebra do caráter individual da demanda, coletivizando-a, já que a consequência de uma condenação dessa espécie se alastra para além dos limites da lide. Há receio, por exemplo, de que a empresa seja condenada mais de uma vez pelo mesmo fato e haja dúvidas sobre as repercussões de uma decisão de tal natureza.

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De plano, temos de observar, e de certo modo admitir, que a indenização de ofício, pela prática de "dumping social", é certamente questão que rompe com alguns paradigmas processuais.

Paradigmas, porém, que a própria doutrina processual insiste estejam ultrapassados já há algumas décadas. O espanto dos intérpretes do direito com a possibilidade de condenação sem pedido da parte é, entretanto, reflexo direto dessa visão positivista e formal do processo.

Explicando melhor nossa afirmação, começamos por salientar que o processo em sua concepção racionalista, filho de uma doutrina romano-germânica que o transformou em relação de débito-crédito e o destinou à finalidade última de descobrir a vontade da lei, sem se preocupar com a mudança dos fatos, efetivamente não tem espaço para uma jurisdição comprometida e modificadora, de inegável caráter pedagógico, como aquela que estamos propondo.

O professor Ovídio Baptista, processualista gaúcho, trata em várias de suas obras da influência das ideias liberais para a construção do conceito de ação que "ordinariza" o processo, quando identifica a sociedade de empresários com a sociedade em geral", referindo que

a partir da célebre observação de Kant, segundo a qual todo o direito, seja ele real ou pessoal, corresponde a uma relação interpessoal e, portanto, obrigacional entre pessoas, posto que não poderá haver relação jurídica entre um ser humano e uma coisa, como até então se sustentara ocorrer dos direitos reais, estabeleceram os juristas do século XIX, especialmente os pandetistas germânicos, o princípio segundo o qual todo o direito, quando violado, transforma-se em direito de crédito.134

O autor acrescenta que a

pessoalização do direito real trouxe como consequência a universalização da sentença condenatória, com sua natural impotência executiva.

E, acrescentaríamos, impotência como meio de prevenção de conflitos sociais.

Neste tópico procuraremos enfrentar as principais questões processuais que envolvem o tema, demonstrando a plena viabilidade e compatibilidade da indenização por "dumping social", inclusive quando cotejada com outras medidas há muito admitidas em nosso ordenamento jurídico.

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4.1. 1 O Princípio Dispositivo Diante do Dumping Social: a Inércia da Jurisdição e o Contraditório no Âmbito de um Estado Social

As alegações de quebra do contraditório e da inércia da jurisdição serão examinadas em conjunto, pois ambas estão ligadas ao que a doutrina convencionou denominar princípio dispositivo.

O princípio dispositivo é identificado com a noção de que o processo é algo colocado à disposição das partes, pelo Estado, a quem, entretanto, é vedada a instauração de procedimento, de ofício. Estamos no período de construção e consolidação da noção de Estado Nacional tripartido, nos moldes preconizados por Montesquieu.

Nesse cenário, o Estado tem o monopólio da jurisdição, vedando a chamada justiça privada, mas ainda assim se submete à vontade dos cidadãos, que tenham interesse em resolver algum conflito social. E, nesse contexto, os conflitos sociais cuja resolução o processo tinha como meta, eram substancialmente conflitos individuais.

Bem por isso, a noção de que o juiz deve declarar a vontade contida na lei passa a ser um pressuposto desse princípio, a partir do qual os teóricos da época baseiam suas ideias a propósito de Estado, sociedade e direito135.

O trabalho do jurista resume-se a desvelar a verdade contida na lei e aplicá-la ao caso. Para ele, tem importância a ideia (preconcebida) que se tem de algo, para que, a partir dela, identifique-se um conteúdo. Esse racionalismo iluminista assume a razão como móvel da ordem política, forjando a noção de lei (escrita) como criadora e organizadora da comunidade. O documento escrito representa a razão transformada em experiência, constituindo "expressão formal indispensável do fenómeno de racionalização da ordem política"136.

A exemplo de Ovídio Baptista137, Canotilho ressalta o distanciamento que o paradigma iluminista acabou provocando entre a lei (como força "criadora e conformadora da razão") e a História. Tal distanciamento foi fruto da necessidade política, advinda do rompimento com as antigas leis do reino, quando da Revolução

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Francesa138, evento histórico de extrema relevância, porque rompeu não apenas com o modelo político, mas com o modelo social e económico vigente até então.

Várias áreas do conhecimento humano tiveram seus postulados revisados, convergindo para uma visão do homem (indivíduo) como razão de ser da Terra, da organização humana, das ciências. A consequência foi uma união tácita entre política e economia, na medida em que a ruptura com o poder político da época representava, sobretudo, a necessidade económica da classe em ascensão (burguesia) de ter acesso às riquezas e aos bens de produção e consumo139.

Trata-se do chamado paradigma racionalista, que inspirou a doutrina do século XVII e subsiste até os dias atuais, de tal modo que Ovídio fala da persistência em nos referirmos às decisões jurídicas como "certas" ou "erradas", perseguindo, ainda que de modo inconsciente, o ideal da verdade única preconcebida pelo legislador. A matemática ciência de demonstração empírica é usada como fundamento para a descoberta da verdade da Lei. E o Direito, a exemplo da liberdade, passa a...

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