Desvio de finalidade das contribuições de intervenção no domínio econômico

AutorDaniel Monteiro Peixoto
CargoMestre e Doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP. Pesquisador do Núcleo de Tributação e Finanças Públicas da Direito GV
Páginas156-178

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1. Introdução

O presente estudo tem por objeti-vo demarcar as possíveis conseqüências jurídicas da desvinculação dos recursos arrecadados por meio das Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico -CIDEs, previstas no art. 149 da CF/1988. Mais especificamente, cuidaremos de questionar em que medida eventuais problemas na destinação compromete a cobrança da CIDE-Combustíveis e da Contribuição ao FUST instituídas, respectivamente, pelas Leis ns. 10.336/2001 e 9.998/2000.

A relevância teórica e prática do referido questionamento decorre de sucessivas constatações acerca da utilização inadequada dos recursos das aludidas contribuições, a destacar: (i) julgamento da ADI n. 2.925, em dezembro de 2003, pelo STF; (ii) julgamento dos Acórdãos ns. 2.148 (FUST) e 1.857 (CIDE-Combustíveis) de 2005, pelo TCU, e; (iii) levantamento elaborado pelo Núcleo de Tributação e Finanças Públicas da Direito GV acerca da permanência do problema, não obstante as manifestações e recomendações do STF e do TCU.1

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2. Tributos e alteração no comportamento dos agentes econômicos

Que tipo de relação deve haver entre uma norma que institui determinado tributo e os efeitos no comportamento dos agentes econômicos para que a espécie tributária seja considerada uma CIDE?

Há uma vertente de interpretação na qual a própria instituição do tributo pode ser tomada como uma forma de intervenção, dados os efeitos extrafiscais que lhe são inerentes. Com base neste fundamento, já se afirmou, por exemplo, que as contribuições da Lei n. 10.865/2004 (Contribuição para o PIS e a Cofins, incidentes sobre a importação) teriam perfil jurídico de CIDEs, dada a finalidade e equalização da balança comercial anunciada na exposição de motivos da Medida Provisória que instituiu, originariamente, os referidos tributos.

Pensamos que conclusões deste tipo, sobre não considerar os aspectos peculiares que devem nortear o exercício da competência na instituição de CIDEs, não observam um dado básico: toda norma tributária, uma vez instituída, provoca alteração no comportamento dos agentes econômicos. Seja para que se ajustem a determinado incentivo fiscal previsto em lei (indução positiva), seja para que fujam ao espectro de incidência de determinado tributo, via mudança das características das operações normalmente praticadas (indução negativa).

Não há tributo exclusivamente fiscal (finalidade de arrecadar recursos) nem tri-buto exclusivamente extrafiscal (finalidade de induzir alteração no comportamento dos agentes econômicos). Todo tributo, além da finalidade arrecadatória, acaba, em maior ou menor medida, promovendo a extrafiscalidade. Do mesmo modo, seria de todo absurdo conceber que, dado o propósito extrafiscal de determinado tributo, haveria o Estado de descuidar da rígida disciplina e efetivação de sua arrecadação.

Os tributos, na sistematização de Joseph Stiglitz,2 podem impactar a economia das mais diversas formas, dentre as quais: (i) efeitos comportamentais em indivíduos: são os relativos a quantidade do tempo dedicado ao trabalho, a educação, a aposentadoria, podendo até mesmo, no limite, influenciar a decisão do sujeito em se casar/divorciar ou não; (ii) efeitos financeiros: são aqueles relativos a forma de remuneração dos empregados (salários/ benefícios indiretos) ou à própria forma de financiamento das empresas (tomar recursos emprestados/emitir ações); (iii) efeitos organizacionais: tipo de estrutura societária que será adotada pelas empresas; (iv) efeitos futuros a partir do próprio anúncio da criação do tributo: o preço dos bens são automaticamente aumentados a partir da divulgação de novo tributo, independentemente do pagamento concreto, (v) outros efeitos indiretos: nesta rubrica podemos mencionar, por exemplo, as próprias decisões empresariais relativas à forma de emprego dos seus recursos materiais e financeiros.

Enfim, após sumariar algumas modalidades de entrelaçamento entre tributo e comportamento dos agentes econômicos, conclui o autor: "Any tax system influ-ences behavior. After all, the government is taking money away form an individual, and we would expect him to respond, in some way, to this lower income. When we say that we want the tax system to be nondistortionaly, clearly we do not mean

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that we want the individual not to react at all".3

Na mesma linha de raciocínio, assim expõem Murphy & Nagel: "Todo imposto que não é semelhante ao imposto fixo individual, ou seja, que não é simplesmente cobrado de todos independentemente do que façam, acaba por ter efeitos específicos de motivação sobre as decisões das pessoas - ou outro tipo de 'efeito de distorção'. Um sistema tributário moderno não pode ter a pretensão de ser neutro em seus efeitos de incentivo sobre as decisões economicamente significativas que as pessoas tomam a respeito do trabalho, do lazer, do consumo, da propriedade e da forma de vida".4

Evidentemente, o fato de reconhecer que toda regra tributária causa distorção na economia não quer dizer que não haja tributos com maior ou menor vocação extra-fiscal para determinado propósito, podendo este efeito ser racionalmente utilizado como instrumento de política econômica. Assim, por exemplo, (i) uma isenção de IPI sobre determinado produto essencial (ex.: trigo), promove sua acessibilidade ao consumo; (ii) o estabelecimento de depreciação acelerada relativo a determinado bem de capital, para efeitos de dedução no IRPJ, promove a renovação dos equipamentos de determinado setor da indústria; (iii) o aumento da alíquota de importação de um produto similar ao produzido internamente, incentiva a produção nacional; (iv) o estabelecimento de redução do ICMS, atrai empresas a se implantarem no Estado-membro que institui o benefício fiscal.

Por outro lado, um tributo que incide sobre a receita (ex.: PIS/Cofins) possui menor vocação extrafiscal que o imposto de importação, visto que auferir, ou não, receita, não é uma decisão a ser considerada pelas empresas. Ainda assim, isto não impede que haja instrumentos de extrafis-calidade dentro do próprio regramento do PIS/Cofins, como, de fato, existem (v.g., a exclusão de algumas receitas da base de cálculo ou o estabelecimento de alguns créditos presumidos, tudo com o propósito de incentivar esta ou aquela atividade).

Em suma: todo tributo tem aspectos fiscais e extrafiscais, em maior ou menor expressão e, portanto, se apresenta como instrumento de correção de falhas de mercado.5 Isto não quer dizer, todavia, que todo tributo seja uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, nos moldes do art. 149 da Constituição Federal, pelo simples fato de ter sido racionalmente utilizado como meio de intervenção, via ex-trafiscalidade. Há algo mais a ser considerado para que determinado tributo se torne adequado aos parâmetros de uma CIDE.

3. Destinação como elemento de caracterização das CIDEs

Se a mera utilização do tributo com propósito extrafiscal fosse fator de identificação das CIDES, teríamos de enquadrar nesta categoria, tributos como o Imposto de Importação, cuja vocação de equilíbrio na balança comercial e de proteção a determinados segmentos da indústria nacional é inequívoca,6 Teríamos ainda que reconhecer a inconstitucionalidade de diversos impostos Municipais ou Estaduais, nos quais podemos identificar emprego extrafiscal, sob o argumento de que a instituição de CIDEs é de competência privativa da União Federal, ex vi do art. 149 da CF/1988.7

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Estes argumentos, que não pretendem trazer nenhum teor de novidade, apenas reforçam que há um fator necessário e, ao mesmo tempo, preponderante na caracterização das CIDEs, qual seja: a destinação dos recursos arrecadados a determinado órgão, fundo ou despesa que se preste à efetiva intervenção no domínio econômico, via incentivo ou fomento. Se, por um lado, "domínio econômico" é um conceito de difícil determinação semântica, a destinação é perfeitamente controlável pelo estudo (i) da própria lei instituidora do gravame, (ii) da lei orçamentária relativa a cada exercício e, com um pouco mais de dificuldade, (iii) nas etapas posteriores, em que os recursos são direcionados via execução orçamentária.

As etapas da destinação, bem como, os tipos de influência que eventuais desvios de finalidade podem surtir na validade destas contribuições são temas que serão retomados mais adiante. Antes, porém, para fins de captarmos melhor a relevância contextual do item "destinação", versaremos sobre os demais requisitos para a instituição válida das CIDEs.

4. Requisitos constitucionais para a instituição válida das CIDEs

A competência legislativa para a criação das normas tributárias que instituem...

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