Judicialização das relações sociais e desigualdade de acesso : por uma reflexão crítica

AutorAdriana Goulart de Sena Orsini - Mila Batista Leite Corrêa da Costa
Ocupação do AutorProfessora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG. Doutora e Mestre em Direito pela UFMG. Juíza Federal do Trabalho - Mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Público e em Direito Material e Processual do Trabalho.
Páginas59-68

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Todo começo encerra promessas, inclusive as constituições, como recomeço político de um povo, encerram promessas. Elas são quase sempre difíceis de cumprir. Unicamente os imortais poderiam prometer. Os mortais deixamos nossas promessas descumpridas com a potência das esperanças.1

1. Introdução

A sociedade pós-moderna vive a configuração de um quadro de mutações e transformações fundantes em sua estrutura institucional. As demandas sociais por participação, norteadas pelo referencial normativo da ideia de justiça, tornaram-se insuficientes, e a expectativa de reconhecimento e efetivação de direitos converteram-se na tônica da contemporaneidade. Nesse sentido, os papéis desempenhados pelo Poder Judiciário sofreram ressignificações relevantes: no século XX, nos países sul-americanos, era o Judiciário meramente aplicador da lei - bouche de la loi. E, no Brasil, sempre houve, em verdade, preponderância do Poder Executivo em relação às atribuições políticas.

A partir dos anos 80, entretanto, o Poder Judiciário ganhou proeminência, a partir da construção de um ideário de Estado Democrático de Direito, da implantação paulatina de reformas judiciais importantes e da difusão e acolhimento de um sistema econômico baseado no ideário neoliberal - preconizador de práticas de retração em relação à implantação e execução de políticas públicas e sociais, antes assumidas pelo Estado de Bem-estar, transformandose em ícone do aprofundamento das desigualdades sociais e da consciência social da injustiça -, fatores que ensejaram questionamentos acerca do papel e da real efetividade dos Poderes da República e, por conseguinte, do próprio Direito.

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Como Poder capaz de suprir, nesse contexto, as ausências e retrações do Executivo, o Judiciário transformou-se em depositário das demandas da sociedade, especialmente, de setores marginalizados, tendo sido chamado, ainda, a cumprir papel de relevo político, na legitimação da democracia, pela via do combate à corrupção2. No caso brasileiro,

o protagonismo do Poder Judiciário foi realçado por determinações da Constituição da República de 1988, que o concebeu como ator de suma importância político-social no cerne da construção democrática, constituída pós-ditadura, ao autorizar seu envolvimento em questões sociais, por meio do abandono da postura positivista kelseniana.3

[...] o Judiciário, antes um Poder periférico, encapsulado em uma lógica com pretensões autopoiéticas inacessíveis aos leigos, distantes das preocupações da agenda pública e dos atores sociais, se mostra uma instituição central à democracia brasileira, quer no que se refere à sua expressão propriamente política, quer no que diz respeito à sua intervenção no âmbito social.4

O protagonismo, todavia, atribuiu-lhe visibili-dade, transformando-o em objeto de questionamentos e análises pela sociedade civil, recém-imersa em uma democracia: nasceram, portanto, tensões entre o Poder Judiciário - supridor das carências sociais e investigador de marcas de improbidade - e os demais Poderes; e entre as pretensões neoliberais - pautadas no Estado mínimo e na desmobilização de compromissos sociais - e a Constituição de 1988, fruto de um nascente processo de arregimentação democrática e que, portanto, concebeu rol extenso de direitos sociais a serem tutelados, a despeito do contexto "ultraliberal", usando termo adotado por Mauricio Godinho Delgado.5 As concepções neoliberais geraram, nesse viés, desregulamentação da proteção ao trabalho, intensificação de práticas assistencialistas e, simultaneamente, ascensão do Poder Judiciário ao papel de tutor de direitos constitucionais, por sua competência interventiva nos demais Poderes pela via do controle de constitucionalidade. Essa é a judicialização da política, propiciadora do enriquecimento da democracia representativa e da democracia participativa no contexto moderno.6

A judicialização das relações sociais, por seu turno, implica a submissão ao Poder Judiciário das expectativas de direito e pretensões de cidadania dos novos jurisdicionados, antes silenciados pela dinâmica político-social e ausência de acesso. O Judiciário ganhou, portanto, largo redimensionamento em sua atuação, sendo chamado a ocupar novos lugares simbólicos, na perspectiva do acesso à justiça e da própria função social do Direito, na resolução de conflitos.7

2. Judicialização da política e das relações sociais

Assim, o Direito é a práxis da Justiça. É o espaço operacional que refunda a humani-dade dentro do círculo moral. O Direito é o trânsito entre "aquilo que é" para "aquilo que deve ser.8

2. 1 Histórico

O modelo de Estado concebido pelo Welfare State nasceu imbuído da necessidade de proteção normativa, demandada pela atuação do movimento operário - que deu origem ao Direito do Trabalho, ramo que publicizou relações antes consideradas eminentemente privadas e infiltrou "no campo do Direito um argumento de justiça"9, colocando o Direito nos rumos da justiça social e cidadã. O ramo

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justrabalhista, portanto, inaugurou a ideia de relação jurídica entre desiguais, que reclamava regulação normativa para além do indivíduo, devido ao caráter publicizante gerado pelo Direito do Trabalho.

O Welfare, portanto, foi um modelo de Estado pautado na intervenção do Poder Legislativo, colocando o mercado e o sistema capitalista sob a tutela da Administração Pública e de sua regulamentação, celebrando o "compromisso Keynesiano"10 com vias a regular a economia e, simultaneamente, gerir as demandas sociais. "A consequência desse tipo de medida é que as relações sociais passam a ser media-das por instituições políticas democráticas, em vez de permanecerem dependentes da esfera privada"11.

Essa mediação feita pelo Estado, passando pela normatização, gerou a judicialização das relações sociais, tornando o Direito parte essencial do "Capitalismo Organizado", conforme denominado por Przeworski.

[...] exatamente em razão do enorme aumento dos encargos da intervenção legislativa, verificou-se o fenômeno de obstrução (overload) da função legislativa, e este overload, que representa tema central da ciência política atual, tornou-se típica característica, na verdade típica "praga", dos Estados modernos, pelo menos daqueles com regime não autoritário e pluralístico-liberal. Nesses Estados, os parlamentos amiúde são excessivamente abundantes e por demais empenhados em questões de política geral e partidária para estarem em condições de responder, com a rapidez necessária, à demanda desmedidamente aumentada da legislação. Paradoxalmente, os parlamentos ‘atribuíram-se tarefas tão numerosas e diversas’ que, para evitar a paralisia, encontraram-se ante a necessidade de transferir a outrem grande parte da sua atividade, de maneira que suas atribuições terminaram em abdicação (grifo nosso).12

O transbordamento do Legislativo, vertendo suas limitações, gerou a criação do aparato burocrático-administrativo do Estado, no âmago da Administração Pública, que se apropriou das iniciativas das leis por estar próxima à realidade das dinâmicas sociais e deter o conhecimento técnico em seu corpo, "inacessível à cidadania e conversor dos indivíduos em clientes"13. O Poder Executivo tornou-se, nesse momento histórico, portanto, hegemônico em relação ao Legislativo e o Judiciário passou a desempenhar o relevante papel de intérprete das normas, decidindo sobre sua legalidade e aplicação.

Com o surgimento do constitucionalismo moderno e a positivação dos princípios fundamentais, desmantelou-se o positivismo kelseniano, especial-mente, após o fim do nazi-fascismo e das ditaduras nos países periféricos. A constitucionalização e consolidação de direitos sociais, a partir do Welfare State ou Estado Providência, a integração das classes trabalhadoras aos padrões de consumo capitalistas, o ingresso da mulher no mercado de trabalho, mudando a lógica das relações familiares e do padrão de consumo, ampliaram as possibilidades de demanda, segundo Boaventura de Sousa Santos14, pelo aumento de conflitos na seara consumerista, trabalhista e no âmbito do Direito de Família. A relação entre os três Poderes foi redefinida e o Judiciário, nesse momento, inserido nas composições políticas com a função de guardião da vontade geral e de direitos socialmente tutelados.

Deve-se acrescentar que os conflitos coletivos15, nascidos com o movimento globalizatório16, determinaram o envolvimento do Direito nas relações sociais, tornando o Poder Judiciário alternativa plausível para a "resolução de conflitos coletivos, para a agregação do tecido social e mesmo para a adjudicação de cidadania, tema dominante na pauta para a facilitação do acesso à justiça"17. Em torno do Poder Judiciário, vem-se concebendo, desde então, uma nova arena pública, externa ao circuito clássico "sociedade civil - partidos - representação

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- formação da vontade majoritária"18. Isso, para

Vianna et al, representou o movimento de invasão do Direito na política e nas relações sociais, fazendo surgir novos atores relevantes: magistrados e Minis-tério Público, tornando-se um Poder estratégico nas democracias contemporâneas.19

2. 2 Efeitos

Embora o fenômeno da judicialização da política e das relações sociais não seja controverso, seus efeitos o são. Há autores, na linha de Habermas e Garapon, que entendem ser o avanço do Direito e do Poder Judiciário sobre a política e as relações sociais um esvaziamento da cidadania social, construindo uma sociedade passiva e um paternalismo estatal, sustentado também no fato de que o indivíduo moderno está "desenraizado", em virtude da fragilização das relações sociais20. Nasce, portanto, a "expectativa de uma instância que se pronuncie sobre o bem e o mal, e fixe a...

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