O 'Novo' Direito Internacional do Desenvolvimento: Conceitos e Fundamentos Contemporâneos

AutorMarcus Maurer de Salles
CargoDoutor, Professor Adjunto de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
Páginas131-146

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1. Introdução

O presente artigo trata do processo de retomada da construção do desenvolvimento enquanto princípio de direito internacional, ao longo da década de 1990 e da primeira década do século XXI, a fim de demonstrar as transformações e renovações pelas quais passou o direito internacional do desenvolvimento (DID), desde que foi erroneamente decretada a sua extinção, ao final dos anos 80.

Para avaliar o desenvolvimento enquanto fundamento jurídico das relações inter-nacionais contemporâneas, este estudo parte da premissa de que, em decorrência deste ressurgimento, é possível afirmar que o DID permanece ativo e vigente ao longo da primeira década do século XXI.

Em um primeiro momento, o artigo analisa o processo de surgimento do fundamento jurídico do desenvolvimento nas relações internacionais durante a segunda metade do século XX, com a emergência de um corpo normativo voltado a regular as relações entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, ao qual se convencionou denominar direito internacional do desenvolvimento (DID).

Em seguida, examina a emergência dos conceitos de desenvolvimento humano e desenvolvimento sustentável ao longo dos anos 90. Para tanto, será analisada breve-mente a quarta década da ONU para o desenvolvimento com o objetivo de, em seguida, analisar-se a consolidação do desenvolvimento no rol dos direitos humanos, bem como a sua aproximação com os debates em torno da preservação ambiental.

Em um terceiro momento, foca o processo de ampliação e aprofundamento da regulação em torno do desenvolvimento no início do século XXI, por meio da Declaração e dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Esta abordagem integral do desenvolvimento — concebendo crescimento econômico, preservação ambiental e justiça social — tem sido o principal parâmetro de atuação da comunidade internacional ao longo da última década.

Em seguida, detalha a relevância que a UNCTAD voltou a ter na primeira década do século XXI. Deste modo, será necessário avaliar o contexto, os objetivos e os resultados tanto das Conferências da UNCTAD de 2000, em Bangkok, e de 2004, em São Paulo. Dentre os resultados, será dada especial atenção ao chamado Consenso de São Paulo, à tardia retomada do SGPC e a emergência do conceito de policy space que, como será analisado nesta parte, embora seja um conceito recente nos fóruns internacionais, constitui, em verdade, reivindicação tradicional do DID.

Por fim, serão apresentados os impactos que o renascimento da UNCTAD ao longo desta década provoca nas negociações da OMC, em especial por meio da criação do conceito de policy space, enquanto ideia fundamental para a promoção do desenvolvimento.

2. O surgimento do direito internacional do desenvolvimento ao longo da segunda metade do século XX

A história do direito internacional do desenvolvimento é a história da luta pela independência — política, econômica e cultural — das nações que viveram durante

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séculos na periferia mundial. Com efeito, os fundamentos jurídicos originários do processo de colonização levado adiante entre os séculos XV e XVIII permaneciam vigentes na segunda metade do século XX.

Tais fundamentos jurídicos surtiam duplo efeito. Se, por um lado, conferiam igual-dade jurídica e legitimidade política aos novos Estados, por outro, ignoravam a desigual-dade econômica e o subdesenvolvimento das ex-colônias, que estavam se tornando independentes desde o século XIX. A composição da comunidade internacional se alterava, enquanto o direito internacional permanecia estático (BEDJAOUI, 1979).

Até o fim da 2ª Guerra, o direito internacional permanece eurocêntrico. A partir da descolonização do Sul, altera-se substancialmente a geopolítica das Relações Internacionais. O processo de descolonização provoca uma mudança da agenda internacional, com a passagem do foco securitário da Guerra Fria para a pauta desenvolvimentista (FLORY, 1977).

Com o processo de descolonização do pós-guerra, a comunidade internacional, passa por uma transformação radical, tanto do ponto de vista quantitativo, pelo aumento vertiginoso do número de novos Membros, quanto qualitativo, pelo surgimento de alianças diplomáticas das antigas colônias, novos Estados independentes.

Em razão do processo maciço de libertação e independência das antigas colônias e o consequente surgimento e articulação do Terceiro Mundo, a mera igualdade formal já não mais bastaria para a manutenção da ordem internacional. O Terceiro Mundo alegava que era necessário o reconhecimento jurídico da desigualdade econômica entre os Estados e, a partir daí, construir um novo sistema jurídico-político internacional, no âmbito das organizações internacionais, que pudesse ser condizente com a nova configuração mundial (VIRALLY, 1965).

Esta transformação na geopolítica internacional levou à articulação do Terceiro Mundo e à institucionalização do Movimento dos Não Alinhados (MNA) e do Grupo dos 77 (G77). No âmbito de tais articulações, foi gerido o Direito Internacional do Desenvolvimento (DID), com um objetivo revolucionário: tentar transformar as premissas — jurídicas e políticas — vigentes para passar a consolidar a questão do desenvolvimento enquanto fundamento jurídico efetivo das relações internacionais (PRASHAD, 2007).

Foi no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e de seus órgãos que a mudança na composição estrutural da comunidade internacional se fez sentir de maneira mais emblemática, e fez com que a ONU servisse de plataforma para alavancar reformas em outras organizações internacionais e tratados internacionais, especialmente o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT).

Ademais, tão importante quanto a reforma era a formulação de planos de ação no âmbito das organizações internacionais, para que o abismo de desigualdade fosse efetivamente encurtado e aproximado. A partir das “décadas da ONU para o desenvolvimento”, a comunidade internacional passou a forjar um conjunto de regras que se convencionou chamar de direito internacional do desenvolvimento (VELASCO, 2008).

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O processo de incorporação do direito internacional do desenvolvimento no âmbito do sistema multilateral de comércio levou a um conjunto de prerrogativas jurídicas à disposição dos países em desenvolvimento vigentes no período GATT. Assim, o movimento terceiro-mundista logrou criar no âmbito do GATT as seguintes prerrogativas: i) o direito à industrialização, de 1955 (artigo XVIII, GATT); ii) o direito à não reciprocidade, de 1964 (Parte IV, GATT); e iii) o direito ao tratamento especial e diferenciado, de 1979 (Cláusula de Habilitação) (HUDEC, 1987).

Na medida em que o direito internacional do desenvolvimento foi paulatinamente sendo incorporado às regras do sistema multilateral de comércio ao longo do século XX, os marcos regulatórios dos países em desenvolvimento foram se reformulando e reno-vando a fim de usufruir dos novos direitos e das novas flexibilidades nas obrigações que emergiam no âmbito do direito internacional do comércio.

A partir da incorporação das premissas desenvolvimentistas pelo GATT, os países em desenvolvimento, dentre eles os sul-americanos, fizeram uso intenso de tais prerrogativas jurídicas. Neste sentido, destacam-se o Modelo ISI, os processos de integração regional, os acordos comerciais não recíprocos com os países desenvolvidos, e a criação de uma rede de preferências comerciais que beneficiam apenas os países em desenvolvimento, posteriormente chamada de comércio Sul-Sul.

Muito embora o conjunto jurídico do DID alcançado ao final dos anos de 1980 seja alvo de numerosas críticas e defeitos por parte dos países membros da comunidade internacional, são inegáveis os seus méritos, pois foi, no âmbito deste movimento de reforma da arquitetura política e jurídica das relações internacionais, que os países em desenvolvimento lograriam o reconhecimento de dita desigualdade econômica no âmbito do sistema multilateral de comércio. O Terceiro Mundo finalmente alcançaria sua missão: transformar os fundamentos da ONU e do direito internacional clássico.

3. A consolidação do direito ao desenvolvimento humano e sustentável dos anos 90

No início dos anos 1990, a brecha entre os países ricos e pobres continuou a agravar-se. As condições de vida e perspectivas de crescimento dos países pobres se deterioraram depois da queda dos regimes comunistas. Diante deste cenário, a AG adotou a Resolução
n. 18/1990, que continha a Declaração sobre Cooperação Econômica Internacional1, e, em 20 de dezembro de 1990, a Resolução n. 45/1990, que lança a Estratégia Internacional de Desenvolvimento para a 4ª Década das Nações Unidas para o Desenvolvimento.2

Como novidade em relação aos objetivos, cabe destacar que pela primeira vez a ONU deixa de quantificar o crescimento que a estratégia se propõe a alcançar, bem como também, pela primeira vez, vinculava o desenvolvimento com as necessidades sociais e ambientais, referindo-se expressamente à noção de desenvolvimento racional e sustentável.

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A partir de agora, o desenvolvimento tem que prestar atenção às políticas necessárias para aliviar a pobreza, melhorar os recursos humanos e proteger o meio ambiente. A erradicação da fome, a educação e a proteção do meio ambiente se converteriam nos aspectos prioritários do desenvolvimento3.

As medidas para concretizar a estratégia alcançam, como nas décadas anteriores, todas as esferas da economia (comércio internacional...

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