O desenho industrial como instrumento de controle econômico do mercado secundário de peças de reposição de automóveis uma análise crítica à recente decisão da secretaria de direito econômico (SDE)

AutorKarin Grau-Kuntz
Páginas148-184

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Introdução

A iniciativa de elaboração de um trabalho sobre o tema propriedade industrial e poder econômico nos mercados secundários partiu do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual (IBPI). O trabalho de pesquisa foi elaborado na condição de pesquisadora convidada e durante uma estadia de seis meses no Instituto Max-Planck em Munique.

Originariamente pretendia-se publicar os resultados dos estudos em forma de livro. A decisão proferida pela Secretaria de Direito Econômico - SDE, na Representação da Associação Nacional dos Fa-bricantes de Autopeças - ANFAPE contra a Volkswagen do Brasil, a Fiat Automóveis e a Ford Motor Company Brasil, em 10 de março de 2008, deu um outro fim aos estudos.

A atualidade da controvérsia sobre o desenho industrial como instrumento de controle econômico do mercado secundário de peças de reposição de automóveis pede um trabalho centrado neste tema. Assim sendo, a pesquisa anteriormente elaborada de forma aberta foi direcionada ao problema específico tratado pela decisão da Secretaria de Direito Econômico e, ao invés de um livro, o resultado ganhou expressão em forma de artigo.

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A autora agradece o apoio do Instituto Brasileiro de Propriedade Industrial e do Instituto Max-Planck em Munique.

Parte I - Do poder econômico exercido nos mercados secundários
1. Sobre as estratégias

O produto chamado de primário é um bem durável adquirido na expectativa de que venha a ser utilizado por um período consideravelmente longo. Característico deste produto é o fato dele necessitar com determinada freqüência - freqüência variável de acordo com a sua natureza - de peças complementares, de peças de reposição ou de serviços de manutenção ou, em outras palavras, de produtos ou serviços secundários.

Produtos ou serviços secundários são assim, valendo-nos da definição de Sha-piro (1995),1 aqueles produtos e serviços que servem a um outro produto - o chamado produto primário - e que, em ordem temporal, virão a ser utilizados depois daqueles primeiros. Característica da relação entre produto secundário e produto primário é a complementaridade do primeiro em relação ao segundo.2

O aparelho manual de barbear, por exemplo, é um produto primário. Por sua vez, a lâmina de barbear, um produto em geral adquirido como conseqüência da aquisição do aparelho de barbear, é o chamado produto secundário. O rol de produtos secundários é extenso, pensemos, por exemplo, nos filmes de máquinas fotográficas, nos cartuchos de tintas para impressoras, no filtro de coar café, nas escovas para os aparelhos elétricos de escovar os dentes, nas peças de reposição de automóveis, nos sacos de aspirador de pó, entre muitos outros.

Por sua vez, produtos ou serviços que servem aos produtos secundários são chamados de produtos terciários. Neste sentido chamamos uma impressora de produto primário, o cartucho de tinta de produto secundário e o serviço de recarga de cartuchos de serviço terciário.

O fato de o produto secundário ser funcionalmente dependente do produto primário não quer dizer que a sua importância econômica não seja significativa. Pelo contrário. A estratégia usada pelos produtores de impressoras, por exemplo, serve para ilustrar a importância econômica dos bens secundários: enquanto as impressoras são encontradas no mercado por um preço módico, os cartuchos de tinta são oferecidos ao consumidor por um preço que, se comparado com aquele pago para adquirir o produto primário a que servem, pode vir a ser descrito como extremamente salgado.

Uma impressora da marca Hewlett-Packard, tipo Photo Smart C6280, da série all-in-one pode, por exemplo, ser encontrada hoje no mercado alemão por cerca de 200 Euros. O litro de tinta preta do cartucho compatível com a impressora daquele tipo custa, por sua vez, cerca de 1.700 Euros.3 Este mesmo cálculo aplicado a outros tipos de produtos nos fornecerá sempre um resultado semelhante.

Esta desproporcionalidade acontece porque o fabricante, para fazer frente a forte concorrência no mercado primário, oferece suas impressoras ao mercado por um

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preço baixo. O lucro que deixa de auferir no momento em que o consumidor adquire a impressora é repassado para um momento posterior, nomeadamente para o momento da compra dos cartuchos de tinta.

A conseqüência desta estratégia é óbvia: o repasse da fonte de lucros do setor primário para o setor secundário só pode ser vantajoso se a empresa lograr impedir, ou pelo menos dificultar de maneira considerável, a concorrência naquele setor secundário. Valendo da afirmação de Penzias (1996), o controle exercido sobre os produtos secundários apresenta-se como uma "licençapara imprimir dinheiro".4

Quando para um determinado produto primário escolhido entre várias alternativas o mercado só oferecer um único produto secundário compatível, quando o consumidor não puder encontrar alternativas no mercado secundário, encontrando-se assim em uma situação de dependência em relação a um único fabricante do produto secundário, falamos em "efeito lock-in".

Aplicando o nosso exemplo das impressoras à noção de efeito lock-in o consumidor conta, no momento da decisão de compra daquele produto primário, com um leque de alternativas. Porém, em razão da falta de alternativas no mercado de cartuchos de tinta, nosso consumidor dependerá, a partir do momento em que comprar a impressora, do único fabricante dos cartuchos, devendo assim pagar um altíssimo preço pela tinta, como ilustra o nosso modelo acima.

Partindo de situações deste tipo, Wen-denburg (2004) fala em "posterior exploração do cliente encarcerado" ("encarcerado" no mercado secundário), exploração esta que iria "de encontro com as expectativas geradas anteriormente (no momento da compra do produto primário, nota nossa) de conformidade concorrencial”.5 Este fenômeno é também chamado de "instal-led-base opportunism".6

Um outro exemplo de estratégias empregadas com o intuito de controlar o mercado secundário nos é fornecido em um caso que versou sobre a questão de recarga de cilindros de CO2 por um fabricante de aparelhos para adicionar gás à água da torneira, aparelhos estes de uso bastante difundidos nas residências européias.

Nos anos 1990, o fabricante destes aparelhos foi ajuízo pretendendo impedir, com base em seu direito de marca, que terceiros recarregassem os cilindros de gás de seus aparelhos com CO2. Os tribunais alemães rejeitaram tal pretensão, afirmando que neste caso a marca não estaria sendo utilizada de forma legítima, como um meio de garantia da função de origem do produto, mas antes de forma ilegítima, ou seja, como instrumento para entravar a concorrência.

A empresa em questão desenvolveu então um sistema de "aluguel" dos cilindros, ou seja, o consumidor, ao comprar pela primeira vez o aparelho em questão, que vinha sendo oferecido ao mercado em conjunto com um cilindro carregado e com uma garrafa de plástico, não estaria comprando o cilindro, mas antes pagando um preço pelo seu aluguel.

Enquanto o aparelho e a garrafa de plástico têm uma vida útil longa, os cilindros usados, e, portanto, vazios, precisam ser continuamente substituídos por cilindros cheios.

O preço que o consumidor pagaria ao trocar o cilindro vazio pelo cilindro cheio seria assim o preço do gás, pois o preço do aluguel daquele recipiente elejá teria pago no momento em que o adquiriu junto com o aparelho. Valendo-se agora de um direito de propriedade sobre os cilindros - bens materiais - a empresa em questão procu-

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rou impedir que terceiros viessem a recarregar os seus cilindros com gás.

A criatividade expressa no exemplo acima reforça, por um lado, a argumentação da importância econômica do mercado secundário, que acima cuidamos de ilustrar com o exemplo das impressoras e, por outro lado, destaca o quão vantajosa pode ser a situação do agente econômico que logra enfrentar a luta concorrencial naquele mercado munido de um direito exclusivo.

Tal afirmação aparece traduzida em números nas informações citadas em um documento elaborado no âmbito da União Européia concernente a um outro caso, nomeadamente à questão sobre as peças de reposição de veículos automotores protegidas por desenhos industriais, onde se lê: "(...) Foi efectuado um estudo que demonstrou que 10 em cada 11 peças sobressalentes são mais caras nos mercados protegidos do que nos mercados liberalizados. Além disso, o preço cobrado pelo fabricante do veículo por um paralamas da frente, por exemplo, pode ser superior em mais de 200% ao da mesma peça no mercado livre".7

Retomando o caso dos aparelhos de adicionar gás à água, somou-se à estratégia baseada no argumento da propriedade sobre os cilindros o fato da empresa titular daqueles aparelhos ter adquirido uma de...

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