Estado democrático de direito e administração pós-colonial da diferença: o problema da tutela

AutorRené Marc da Costa Silva
Páginas83-120

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1 Introdução

A legislação internacional1, desde a Segunda Guerra Mundial, na esteira da força política e da legitimidade que os preceitos dos Direitos Humanos alcançaram na defesa de indivíduos e povos subordinados de todo o mundo, vem se constituindo em instrumento significativo de transformação dos sistemas normativos no interior dos Estados-Nação. O Brasil não ficou alheio a esse processo, haja vista o significativo alinhamento que nosso ordenamento sofreu à luz da forte influência do Direito Internacional, dos muitos tratados, convenções, acordos e protocolos subscritos pelo Estado brasileiro. O impacto desse processo provocou, no caso brasileiro, junto a uma série de outros elementos, a redefinição do desenho constitucional do país e a consequente necessidade de reorientação das relações do EstadoPage 84 brasileiro com os segmentos sociais minoritários etnicamente marcados. Isso fica patente e se cristaliza na Constituição de 1988.

Esta Carta Magna de fato representou na história jurídica e constitucional brasileira um ponto de clivagem em relação a todo o sistema constitucional anterior, uma vez que reconheceu:

O Estado brasileiro como pluriétnico, e não mais pautado em pretendidas homogeneidades, garantidas ora por uma perspectiva de assimilação, mediante a qual subrepticiamente se instalam entre os diferentes grupos étnicos novos gostos e hábitos, corrompendo-os e levandoos a renegarem a si próprio ao eliminar o específico de sua identidade, ora submetendo-os forçadamente à invisibilidade.2

Derivada dessa noção, consolidou-se no país, a partir de 1988, a ideia de que o direito produzido pelo Estado não pode ser considerado como único. Não apenas o pluralismo jurídico ganhou relevância e legitimidade nesse processo, fizeram-se importantes também outras noções de direito oriundas do campo social, das práticas concretas de seus agentes, do cotidiano popular e suas demandas. Permitiram, sobretudo, abrir ataques e críticas ao que se percebia como limitações intrínsecas ao positivismo jurídico, posto que, no âmbito da história constitucional brasileira este, sistematicamente, confundiu os diferentes grupos sociais minoritários no interior da nação com uma ideia totalizante de povo homogeneamente pensado, sem contemplar quaisquer especificidades. Afirmou-se então, durante todo esse período anterior à Constituição de 1988, por parte do Estado, uma ideia de direito unidimensional e plenipotenciária.

Como um dos principais desdobramentos do intenso processo de crítica dessa história nacional de caráter homogeneizante, enfraqueceram-se gradualmente as perspectivas de assimilação dos povos indígenas, como também as ações que visavam sua paulatina integração e redução ao conjunto da sociedade englobante. Deram lugar, por sua vez, a novas ideias pautadas pelo direito e à valorização da diferença, ao reconhecimento da diversidade cultural e étnica, deslocando inevitavelmente as relações entre o Estado e esses povos.

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Tais deslocamentos abriram significativas fendas nas estruturas historicamente hegemônicas de poder, o que permitiu o desenvolvimento de mecanismos de proteção (jurídicos e sociais) efetivos dos modos de ser, viver e existir das diferenças, definidas sociopoliticamente como os outros do poder. Tais instrumentos se tornaram ferramentas importantes, particularmente para grupos sociais minoritários ou marcados etnicamente.

Consubstanciou-se para eles a possibilidade concreta (como no caso dos quilombolas, por exemplo) de se beneficiarem de uma nova modalidade de apropriação (definitiva e coletiva) da terra baseada no artigo 68 do ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias), ou no esvaziamento da tutela como mediadora das relações jurídicas do Estado com as sociedades indígenas.

Contudo, intriga-nos um paradoxo, pelo menos, o que aparenta ser um paradoxo: quanto mais tais redirecionamentos abriram espaço para uma gramática discursiva fortemente pautada pela necessidade de respeito, ações e medidas de promoção da igualdade e dignidade desses grupos sociais, menos se conseguiu viabilizar, todavia, no interior do poder público, uma política étnica definida.

Pelo contrário, como já foi assinalado em outros lugares,3 no momento em que se esperava um grande avanço4, no âmbito do Estado, da adoção de uma política étnica ou mesmo de ações governamentais sistemáticas, isso não aconteceu. Ou seja, as ações políticas para tais populações não deixaram de ser desarticuladas, fragmentadas, descontínuas e desorganizadas.

Produziu-se, diferentemente, paralelo a esta ‘modernização’ do corpo jurídico máximo da nação, uma indisfarçável desorganização nos aparelhos de estado definidos ou incumbidos da tarefa de enfrentarem esta questão. Multiplicam-se, por sua vez, as agências e instituições responsáveis, direta ou indiretamente incumbidas por elaborar e implementar ações, políticas públicas ou projetos orien-Page 86tados para esses segmentos sociais. Estas, absolutamente, não conseguiram, nem tampouco conseguem ainda hoje, dialogar entre si, articular ações minimamente sistemáticas ou programas com concepções dentro das quais estratégias bem definidas pudessem alavancar tais populações subalternas a condições diferentes das tradicionais relações de poder vigentes no interior da sociedade.

Como pensar esse paradoxo sem cometer alguns equívocos que frequentemente se apresentam como verdadeiras armadilhas ao pensamento. Alguns, por exemplo, imaginaram a sociedade brasileira de final dos anos 1980, madura e pronta para consolidar numa constituição progressista os avanços da redemocratização, impondo-a como derrota definitiva ao imaginário reacionário e às forças sociais conservadoras e seus interesses econômicos e políticos no país. De outro lado, diferentemente, outros sustentam que daquele processo emergiu um Estado de viés modernizador, para o qual se punha mais ou menos clara a exigência de separação entre o público e o privado, a defesa e o respeito a um indivíduo visto como igual perante a lei, caracterizada como universal, em tudo incompatível com uma sociedade percebida como caótica, desorganizada, anti-individualista, essencialmente desigual. Um terceiro conjunto de interpretações, mais sofisticado, enxerga, por sua vez, presente e hegemônico no Estado um núcleo constitutivo de referenciais organizadores, oriundo das sociedades ocidentais, a partir do qual aquele se esforça por disciplinar a sociedade, todavia, por meio de um diálogo - não mais como uma contradição ou antagonismo - que constantemente compõe, acomoda ou concilia tais parâmetros contraditórios ou de sinais divergentes.

Para este último, o traço distintivo da cultura brasileira não seria outro senão esse permanente e eterno esforço conciliador: acomodar impulsos oriundos de um Estado controlado parcialmente por segmentos de elites cujo ideário e horizontes estariam solidamente fincados na grande tradição ocidental europeia, com movimentos de uma sociedade híbrida, marcados por tradições ou matrizes culturais subalternas (africana e indígena) potencialmente desorganizadoras. O pensamento social brasileiro articula-se, basicamente, em torno desses três eixos interpretativos.

Encaminharemos aqui essa reflexão a partir de outra démarche. Compreendemos, outrossim, sociedade e Estado como um todo orgânico em que este último não é mais do que um caixa de passagem de fluxos de energias e tensões nascidas no âmbito da primeira. Não entendemos a sociedade dividida em duas partes distintas, contradi-Page 87tórias ou antagônicas, lutando entre si. Somos, isto sim, uma sociedade nascida de uma situação colonial originária que articulou diversos elementos de matrizes culturais distintas produtoras e conformadoras de uma tradição singular. Nesse sentido, Estado e sociedade caminham, para nós, em uníssono. O primeiro tão somente institucionaliza antigos mecanismos e dispositivos de poder, promanados de uma estrutura social organizada desde o início como profundamente hierárquica e desigual. Não existem antagonismo nem descompasso fundamental. Trabalham, para a produção e reprodução dessa estrutura, os mais diversos dos seus elementos, inclusive os de matriz ocidental europeia (o direito, por exemplo).

Essa experiência colonial portuguesa promoveu na sua possessão americana um tipo específico de gestão territorial e processos de regionalização, maneiras particulares com as quais determinou estratégias de movimentação, transporte e realocamento de populações subordinadas, além de práticas difusas de agenciamento de forças sociais em aparelhos de Estado ou em suas instituições, orientadas para a disciplinarização, homogeneização e controle do outro do poder. O direito institucionalizado cumpriu nesse processo de normalização e governamentalização um papel decisivo.

Muitos são os exemplos desse exercício colonial e pós-colonial do poder. Tais processos históricos permitem-nos divisar, sobretudo, as formas pelas quais a sociedade brasileira, em geral, e o Estado, em especial, desde o período colonial até bem recentemente, conceberam a diferença etnicamente marcada e se relacionaram com ela: o modo particular do exercício colonial ou pós-colonial do poder, suas estratégias de permanência e reprodução, seus mecanismos, efeitos ou tecnologias - notadamente a tutela, dentre elas. Considerar tais processos ou mecanismos possibilita-nos compreender a forma específica de operar que o poder estrutura com os diversos grupos sociais subordinados no país.

Num determinado sentido, não há descompasso entre uma Constituição avançada e uma sociedade...

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