Democracia Deliberativa

AutorRoberto Basilone Leite
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho em Santa Catarina, Mestre e Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Vice-Diretor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina
Páginas31-72

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O conceito de democracia deliberativa, formulado com base na concepção de Jürgen Habermas, se constrói sob a perspectiva da relação entre Estado, esfera pública e sociedade civil. Tal conceito servirá como suporte teórico para as análises que empreenderemos neste estudo, relativas à função institucional do poder judiciário no Estado democrático, à identificação do modelo político brasileiro e sua evolução e ao grau de eficácia do sistema judiciário brasileiro para cumprir seu papel político institucional. As diversas conceituações de democracia deliberativa têm em comum a proposta de instituição de formas alternativas de participação comunicativa que atuem concomitantemente com os tradicionais mecanismos de representação.1

A democracia deliberativa é adotada aqui como modelo normativo por nos parecer o mais apto para eliminar ou reduzir sensivelmente o déficit político do Estado e, em especial, do poder judiciário brasileiro. Isso porque a tradição política brasileira se caracteriza pela ação constante dos centros de poder político e econômico no sentido de constringir os espaços de comunicação pública. Diante disso, parece adequado adotar a democracia deliberativa como modelo normativo para o presente estudo, por se tratar de um regime político que tem como postulado central justamente a ampliação dos espaços comunicativos da sociedade e que se

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baseia na ideia de que o exercício do poder político encontra sua legitimação no processo de deliberação orientado pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa e da autonomia política.

Adiantemos alguns comentários sobre esses conceitos operacionais.

O princípio da inclusão diz respeito à possibilidade de acesso dos cidadãos ao processo de produção das normas públicas às quais estará sujeito; o tema está ligado às noções de ação comunicativa e de participação política, estruturantes do pensamento habermasiano, que serão desenvolvidas mais à frente.

Quando se refere a sociedade pluralista, Habermas tem em mente a sociedade contemporânea em seu momento de desencantamento, em função do qual ela se vê destituída dos pontos de apoio nos quais outrora se ancoravam as pretensões de legitimidade do poder político. Dessa forma, sociedade pluralista é aquela na qual “as próprias éticas coletivamente impositivas e as cosmovisões se desintegraram e onde a moral pós-tradicional da consciência, que entrou em seu lugar, não oferece mais uma base capaz de substituir o direito natural, antes fundado na religião ou na metafísica”.2

O processo de desencantamento do mundo, descrito por Weber na obra Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie (“Estudos reunidos sobre a sociologia das religiões”, 1920-1921), marca a separação histórica entre Estado e religião, entre razão e magia e entre legalidade e moralidade, que foi provocada pela preponderância, na cultura moderna, da racionalidade sobre as outras formas de conhecimento. Até o século XVII, a metafísica e a religião, por meio de éticas coletivamente impositivas e de cosmovisões sacras e míticas, garantiam uma base de sustentação ao direito natural, que, assim, conseguia assegurar satisfatoriamente a integração social. Com o advento da modernidade, essas éticas e cosmovisões se desintegraram e foram substituídas pela moral pós-tradicional da consciência, a qual, por não ser dotada de impositividade e não exercer influência persuasiva sobre os indivíduos, não oferece mais fundamento para o direito natural. Sociedade pluralista, nesse sentido, é aquela em que cada indivíduo ou grupo age em consonância com seu próprio projeto existencial ou visão de mundo, sem se sujeitar a nenhuma norma ética ou religiosa. Como a metafísica e a religião não são mais capazes de justificar a normatividade das regras jurídicas nesse tipo de sociedade, torna-se necessário encontrar outra justificação de cunho racional – que Habermas encontrará na razão comunicativa.

Tanto a noção de igualdade quanto a de participação em Habermas pressupõem a compreensão prévia da ideia de competência comunicativa. Desde já cabe ressaltar que a igualdade em Habermas é precisamente o elemento que pode amparar a pretensão de legitimidade do direito moderno. Trata-se de um conceito de natureza procedimentalista, na medida em que seu conteúdo depende de um consenso

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construído discursivamente, que, por isso, não pode ser suficientemente explicado apelando-se apenas às propriedades lógico-semânticas de leis expressas em termos universalistas, já que a “forma gramatical de mandamentos universais nada diz sobre sua validade”;3 a noção de igualdade jurídico-material exige que a norma seja do interesse simétrico de todos, ou seja, que a norma tenha o sentido de uma aceitabilidade racional: todos os possíveis afetados devem poder com ela consentir, com base em razões que considerem suficientes para justificar tal consentimento. A expectativa de viabilização de um projeto de sociedade justa, que se fundamenta simultaneamente no princípio da igualdade e no princípio da liberdade, não está ligada nem à subjetividade das concepções individuais de bem, prioritária para os liberais, nem à intra-subjetividade4 dos valores culturais que conformam as identidades sociais, prioritária para os republicanos, nem tampouco à objetividade científica almejada pelo positivismo;5 está ligada, sim, à intersubjetividade dos membros de uma comunidade jurídica na qual tanto a subjetividade liberal e a intra-subjetividade republicana quanto a objetividade positivista estão submetidas a um amplo debate público que as sujeita a crítica e as compatibiliza – debate esse do qual emanam as normas cujos destinatários são os seus próprios autores.

Por fim, a autonomia política do cidadão resulta do princípio da soberania popular e se expressa sob a forma de autolegislação, entendida como o procedimento em virtude do qual “os que estão submetidos ao direito, na qualidade de destinatários, possam entender-se também enquanto autores do direito”.6 De modo simultâneo, o sujeito é dotado de autonomia privada, a qual é garantida por um sistema constitucional e jurídico de proteção de direitos humanos ou “liberdades de ação subjetiva”,7 que correspondem aos clássicos direitos à vida, à liberdade e à propriedade e visam assegurar a auto-realização do indivíduo.

A concepção habermasiana de deliberação deve ser compreendida a partir de sua teoria da competência comunicativa, que se apóia nas noções de esfera pública, ação comunicativa e racionalidade comunicativa. Por isso, nos tópicos seguintes explanaremos sobre essas noções.

1.1. O projeto intelectual de habermas

Optou-se por adotar aqui conceitos operacionais formulados por Habermas porque se pretende focar a questão da atrofia da esfera pública deliberativa e da

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ausência de espaços comunicativos, que caracteriza Estados de tradição autoritária como o Brasil. De fato, o referido filósofo, ao longo de sua carreira acadêmica, desenvolveu estudos importantes sobre esses temas – esfera pública e ação comunicativa –, que têm servido de referência para pesquisadores em todo o mundo. Além disso, sem embargo do caráter universalista de que se revestem suas abordagens teóricas, certas decisões fundamentais de Habermas – a começar pela escolha dos assuntos nos quais concentrou seus estudos – foram influenciadas pela situação política vivenciada pela Alemanha na época em que ainda era estudante, conforme ele próprio revelou no ensaio Der deutsche Idealismus der jüdischen Philosophen (“Do Idealismo alemão e seus filósofos judeus”, 1961):8

Aos quinze ou dezesseis anos de idade, sentado diante do rádio, eu escutava os debates que se desenvolviam no Tribunal de Nuremberg; naquele momento, as demais pessoas presentes, em lugar de prosternar-se em silêncio diante das atrocidades reveladas, compraziam-se em contestar a legitimidade do Tribunal, em debater sobre questões de procedimento e de competência jurisdicional; essa experiência, que representou minha primeira ruptura pessoal, causou-me uma estupefação que perdura até hoje.9

A situação histórica enfrentada pelo povo alemão à época guarda importantes semelhanças com o momento vivido atualmente pela sociedade brasileira. Em 1945 – época em que Habermas contava com 16 anos de idade10 –, a nação germânica saía da ditadura nazista e iniciava o processo de transição para o regime democrático. Por sua vez, o Estado brasileiro vivenciou sua última ditadura militar até 1988 e se encontra hoje em processo de transição do autoritarismo para a democracia. É certo que a evolução e o perfil cultural da Alemanha e do Brasil são diferentes; no entanto, os processos de transição democrática guardam certas similitudes, pois a tarefa da sociedade nesses casos normalmente consiste, em linhas gerais, em criar novos mecanismos que instaurem a possibilidade de exercício dos direitos fundamentais, dentre os quais a liberdade de expressão e o direito de participação, no contexto de um Estado cuja estrutura administrativa está organizada de acordo com as exigências do regime autoritário que vigorava anteriormente.

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Além do mais, embora o autoritarismo nazista tenha ostentado uma carga de ferocidade concentrada significativamente maior do que as ditaduras brasileiras, a extensão dos efeitos sociais nos dois casos é semelhante, pois a prática autoritária mantida durante séculos a fio produz o resultado moralmente devastador consistente na consolidação de uma cultura autoritária que se arraiga na sociedade.

No que tange aos processos de transição democrática, nos valemos de alguns conceitos firmados pelos professores Juan Linz e Alfred Stepan, que desenvolvem um programa de pesquisas...

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