Democracia, Constituição Federal de 1988 e direito do trabalho no Brasil

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas72-84

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I Introdução

A análise das inter-relações entre a Constituição da República Federativa do Brasil, o conceito constitucional de Estado Democrático de Direito e o segmento jurídico especializado do Direito do Trabalho passa pela referência a conceito e realidade correlatos, o da Democracia.

A Democracia consiste em uma das mais importantes e criativas instituições geradas pela inteligência humana, propiciando o desenvolvimento de novos e importantes fenômenos no campo da sociedade e do Direito.

A conexão da Democracia com a História das Constituições constitui liame que permite classificar as mais bem demarcadas fases do constitucionalismo contemporâneo, até se chegar ao presente Estado Democrático de Direito.

Nesse quadro de elaboração de novas realidades sociais e jurídicas e de tessitura de inter-relações de conceitos contemporâneos, ocupa posição de destaque o Direito do Trabalho. De simples ramo jurídico especializado, no instante de seu nascimento há século e meio atrás, esse complexo de princípios, regras e institutos jurídicos trilhou caminho de afirmação e generalização, bem próximo às vicissitudes da Democracia no mundo contemporâneo. Nesse roteiro, nem sempre linear, tem despontado como componente decisivo do próprio conceito de Estado Democrático de Direito, em conformidade com a dimensão constitucional que o Texto Máximo de 1988 conferiu ao fenômeno no Brasil.

Esse processo de criação e de inter-relações é que será objeto do presente artigo.

II Democracia e civilização

Democracia é construção recente na civilização. Embora a palavra tenha origem grega há mais de dois milênios atrás, em Atenas (demos - povo + kratía - força, poder)1, tempo em que se lançaram na cultura ateniense antiga alguns conceitos

de grande relevância para o estudo próprio e comparativo do fenômeno, o fato é que a realidade efetiva da Democracia somente despontou na História no período contemporâneo.

Democracia, enquanto método e institucionalização de gestão da sociedade política e da sociedade civil, baseada ela na garantia firme das liberdades públicas, liberdades sociais e liberdades individuais, com participação ampla das diver-sas camadas da população, sem restrições decorrentes de sua riqueza e poder pessoais, dotada de mecanismos institucionalizados de inclusão e de participação dos setores sociais destituídos de poder e de riqueza, é fenômeno que despontou na História apenas a partir da segunda metade do século XIX na Europa Ocidental.

Nessa dimensão e extensão contemporâneas, com esse caráter amplo e principalmente inclusivo - características todas muito recentes -, é que se pode sustentar o extraordinário impacto da Democracia na História.

1. Dimensões da democracia

De fato, considerado esse conceito e essa realidade da Democracia, pode-se sustentar que o fenômeno tem se afirmado como uma das maiores construções da civilização, tomadas várias perspectivas, isoladamente ou em conjunto, a saber, perspectiva política, social, econômica, cultural, além da institucional.

Há, pois, um caráter multidimensional na Democracia, na acepção do constitucionalismo contemporâneo, ultrapassando a esfera estrita da sociedade política, para espraiar-se, cada vez mais, para áreas diversas da sociedade civil.

No plano político, em face da Democracia, de sua construção e de seu aperfeiçoamento, é que se viabilizou, pioneiramente, a participação da grande maioria da população nas questões de interesse mais amplo da comunidade. Mais do que isso, ela tem permitido e até mesmo instigado que a seara

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de interesses de setores não dominantes também tenha de ser sopesada no contexto da elaboração e concretização das políticas públicas.

Ainda, no plano político, a Democracia tem viabilizado a melhor apreensão da inteligência e esforço humanos, pela circunstância de propiciar mais amplo e rico debate de ideias e perspectivas no interior da comunidade.

Nesse mesmo plano, a Democracia assegura, ademais, a realização da liberdade individual e social - apanágio de raros períodos e locais na História -, nos limites de ordem jurídica (relativamente) consensual.

No plano social, a Democracia incrementa instrumentos mais ágeis e eficazes de superação das desigualdades sociais, pelo próprio dinamismo que ela propicia ao desenvolvimento e inter-relação dos grupos sociais. Ademais, a dinâmica demo-crática tende a incrementar, de maneira geral, processos modernizantes da estrutura social, em vista da urbanização que usualmente incentiva. Além disso, ela inevitavelmente estimula o surgimento de políticas públicas sensíveis aos interesses dos segmentos desfavorecidos ou até mesmo marginalizados na estrutura da sociedade.

No plano econômico, a Democracia, caso se mostre efetiva, também favorece a superação de obstáculos ao desenvolvimento trazidos por círculos tradicionais e restritos de poder, em face de tender a solapar, ao longo do tempo, a higidez dos antigos mecanismos de dominação existentes. A urbanização e a industrialização que costumam acompanhar seu processo de consolidação, com a ruptura e superação do velho poder rural dominante, arejam o sistema econômico do respectivo país, criando estamentos ou, até mesmo, novas classes sociais, com integração econômica mais ampla e efetiva do conjunto da população.

No plano cultural, a Democracia tem incentivado profundo avanço nas relações entre as pessoas e grupos sociais, ao produzir a superação ou revisão de inúmeras tradicionais concepções sedimentadoras da desigualdade social e do desrespeito à dignidade da pessoa humana. A dinâmica e a lógica democráticas é que permitem que tal processo floresça e se espraie na sociedade, cristalizando-se em práticas e até mesmo instituições novas aptas a concretizar o avanço cultural então atingido.

No plano institucional, a Democracia tem gerado mecanismos permanentes na sociedade e no Estado de grande relevância à sua própria afirmação no mundo contemporâneo e, principalmente, para o alcance de seus objetivos centrais de incremento da participação das pessoas humanas e de sua inclusão no interior das sociedades civil e política a que se integram.

As instituições da Democracia, geradas no âmbito da sociedade civil, têm grande impacto no aperfeiçoamento geral de toda a sociedade. Observe-se, por exemplo, o papel impressionante dos inúmeros e diversificados meios de comunicação de massa (entre os principais, televisão, internet, jornais e revistas, por exemplo). Observe-se ainda o papel notável de entidades associativas diversas, como sindicatos, entidades de regulação profissional, associações civis de objetivos variados, etc. Reflita-se sobre a importância de certas instituições centenárias ou milenares, como as igrejas, ilustrativamente. Aponte-se, ainda, o papel crucial desempenhado pelas escolas na estruturação dos seres humanos e da vida social. Perceba-se a importância das empresas e das forças econômicas (o chamado mercado econômico) na conformação da sociedade civil de qualquer país. Note-se, por fim, a inserção dentro da socie-dade civil de certas instituições típicas do Estado, tais como os partidos políticos.

As instituições da Democracia geradas no âmbito da sociedade política (Estado) também têm grande impacto no aperfeiçoamento geral do sistema. Citem-se, inicialmente, os partidos políticos, um dos mais conhecidos canais de inter-relação entre a sociedade civil e a sociedade política. Mencione-se o Poder Legislativo, com sua potencialidade de assimilar o impacto das demandas dos diversos grupos sociais. Cite-se o Poder Executivo, especialmente nos regimes presidencialistas, que tem dinâmica própria, relativamente autônoma em face do Legislativo, e que constitui importante núcleo de representação de interesses e perspectivas gestados na socie-dade. Dentro desse poder estatal, há que se enfatizar a presença da multifacetada burocracia pública, responsável, em grande medida, pelas políticas públicas aptas a cimentar a coesão social e garantir um padrão mínimo de inclusão econômica e social em benefício de toda a população. Note-se também o Poder Judiciário que, nas democracias, deve se integrar e se reger por estuário sensível à compreensão da essencialidade da própria Democracia e seus desdobramentos na estrutura e no funcionamento da sociedade civil e do Estado.

Os manuais de Teoria do Estado definem Democracia como regime político, mediante o qual se assegura, em contexto de garantia das liberdades públicas, a participação ampla da população institucionalmente qualificada (cidadãos) na gestão do Estado e de seus organismos, seja pela representação, seja por veículos de participação direta. Nessa medida, a Democracia se antepõe às autocracias, que correspondem a regimes ditatoriais de exercício do poder político.

Tais definições não estão exatamente erradas, é claro, mas despontam, de modo enfático, como nitidamente insuficientes.

A natureza de regime político da Democracia é inegável, porém, ela não se circunscreve apenas a um temário e a uma realidade jungida à sociedade política. Ela é bem mais do que isso (embora esse primeiro aspecto destacado seja, de fato, muito importante). A Democracia, em verdade, abrange praticamente todos os aspectos da vida social, invadindo, inclusive...

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