Dicotomia Democrática na América do Sul: a Esquerda Chilena e Venezuelana

AutorIsabela Furegatti Corrêa/Regiane Nitsch Bressan
CargoBacharel em Relações Internacionais pelas Faculdades Integradas Rio Branco/Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo e professora de Relações Internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco
Páginas11-30

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Introdução

No começo desse século, a ascensão de políticos de esquerda no cenário sul-americano constituiu fato notório para a análise da democracia nos países da região. As ascensões do governo de Hugo Chávez na Venezuela e a mantença da Concertación de centro-esquerda no Chile constituem exemplos da ideologia de esquerda, refletindo a necessidade do fortalecimento estatal e do reforço de questões sociais, deteriorados pelas reformas estruturais neoliberais da década anterior (VIGEVANI, 2006).

Nos anos 1990, o abandono das condutas desenvolvimentistas disseminadas nas décadas anteriores, a favor do paradigma neoliberal, representou a precariedade econô-mica e social nos países da América Latina. O sistema de substituição de importações disseminado pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) não alcançou o desenvolvimento prometido. Por sua vez, as instabilidades políticas, em meio a ditaduras e levantes sociais, culminaram em fragilidade estrutural, gerando colapso econômico junto à crise mundial das décadas de 1970 e 1980 (GILPIN, 2002).

Com isso, os países latino-americanos conviveram na década de 1990 com graves problemas inflacionários, déficits públicos e endividamentos externos elevadíssimos, além de pobreza e disparidades sociais. Assim, os movimentos de esquerda, que ainda persistiam na América Latina, perderam força, ficando à sombra de um sistema mundial globalizado e liberal que se conformava com reformas estruturais divergentes daquelas por esses movimentos representadas (CASTAÑEDA, 1994).

Entretanto, ao longo dos últimos anos do século XX, a esquerda na América do Sul manteve-se constante no âmbito político e em meio à população (ibidem). Mesmo depreciada, esta voltou imperiosa, principalmente pelo seu discurso igualitário e carregado de diplomacia política (VIGEVANI, 2006). No Chile, uma coalizão de centro-esquerda iniciada na década de 1980, a Concertación, mesclou condutas de alinhamento ao mercado internacional com questões domésticas de âmbitos sociais (COUTINHO, 2006). Na Venezuela, o mesmo cenário foi vislumbrado no governo de Hugo Chávez, quando este passou a ser visto como uma esperança por parte da população para a reversão dos problemas sociais persistentes no país, sob o discurso embandeirado na justiça social, nacionalista e de defesa dos interesses do Estado (VILLA, 2005).

A eleição desses políticos, tendo permanecido a Concertación por quatro mandatos consecutivos no poder e Hugo Chávez ascendido e permanecido no poder por mais de dez anos, pôde representar uma mudança significativa no contexto político latino-americano. Independente da eficácia de seus governos, a posteriori, essas ascensões representaram a reprovação do neoliberalismo na região, além da necessidade de reformas e ajustes políticos de cunhos sociais, que viabilizassem melhorias na qualidade de vida de suas populações (COUTINHO, 2006). A ascensão desses representantes políticos, de cunho esquerdista, mas imbuídos de hibridismo político, revelou formas distintas de liderança e governança, justificando, nesse trabalho, a escolha desses governos para análise comparativa.

O impacto da esquerda na América do Sul ocorreu, sobretudo, pelas ineficiências vislumbradas na região (SMITH, 2005). A série de vitórias eleitorais dos governos esquerdistas possivelmente reflete que o neoliberalismo, no âmbito social, não cumpriu

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suas promessas, ou seja, mesmo influindo de forma benéfica na economia, o desagrado populacional advindo das ineficiências internas, prevaleceu. Com isso, a expressão popular passou a reivindicar maior abertura dos Estados às suas necessidades, discurso ofertado justamente pelos políticos de esquerda (CASTAÑEDA, 1994).

Embora os políticos de esquerda do Chile e da Venezuela, apresentem similaridades quanto suas ideologias, apresentaram divergências determinantes em suas condutas governamentais para a resolução das necessidades sociais, ferindo, algumas vezes, o compromisso democrático (SCHAMIS, 2006). Dessa forma, pode-se inferir que eles representam o paradoxo da formação da esquerda nos países sul-americanos. Assim, a análise dos fatores que culminaram na ascendência desses governos, bem como o exame das divergências e similaridades de suas constituições políticas, são determinantes para concluir como tais condutas políticas favoreceram o desenvolvimento social e comprometimento democrático em cada um destes países.

Assim, este estudo objetiva revelar as razões que incitaram tais sociedades a elegerem estas representações. Em seguida, serão demonstradas as divergências e similaridades dos políticos de esquerda eleitos no Chile e na Venezuela, Michelle Bachelet e Hugo Chávez, respectivamente. Por fim, será discutida a questão democrática entendida pelas suas populações, a partir da obrigação de seus líderes com as políticas de cunho social e desenvolvimentistas.

Para tanto, o presente trabalho está estruturado em cinco seções. A primeira seção trata do movimento de esquerda e do neopopulismo na América Latina, trazendo as principais definições teóricas utilizadas neste estudo e introduzindo a temática no contexto regional. A segunda e terceira seções analisam, nessa ordem, a estrutura política e institucional no Chile, nas décadas de 1990 e 2000 e, na Venezuela, a partir de 1999, com a ascensão de Hugo Chávez.

Por sua vez, a quarta seção retoma as principais questões analisadas ao longo do trabalho, conjuntando as propostas e efetivações políticas de âmbitos sociais com o reflexo que estas detiveram perante as sociedades chilena e venezuelana. Embasam-se em índices sociais e na percepção quanto ao nível democrático de Chile e Venezuela respectivamente, bem como a satisfação populacional ante esses governos. Por fim, a quinta seção apresenta algumas conclusões ao confrontar os dados dos dois países quanto à estabilidade democrática, o apoio ao governo e a exigência populacional.

Vale fazer alusão que a escolha pelo Chile e Venezuela deu-se pelas suas reformas políticas da esquerda sofridas na última década, partindo do pressuposto de que a Concertación centro-esquerdista chilena é mais heterogênea em sua constituição política do que a esquerda de Hugo Chávez. Entretanto, ainda assim, ambas cingidas pela ideologia esquerdista e pelo populismo que, por estes representantes, voltam a infiltrar-se no âmbito político latino-americano neste período supracitado.

1. O movimento de esquerda e o Neopopulismo

Na década de 1990, com o fim do eixo fundamental do socialismo — a URSS — em face do advento da globalização e das políticas neoliberais implantadas na região,

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mudanças ocasionadas na América Latina influíram no posicionamento político e ideológico do movimento esquerdista. Mesmo que nesse movimento tenham prevalecido necessidades imperiosas de transformação social, alguns governos de esquerda revelaram disparidades entre suas políticas e ideologias1. Fato identificado nos governos de Lula da Silva (Brasil) e da família Kirchner (Argentina), os quais, na prática, não se limitaram às políticas de esquerda. Assim, o desgaste do modelo neoliberal não representou seu declínio. Nessa primeira década, verificam-se a adoção de um modelo político heterogêneo, que mesclou tanto questões de âmbito social, embasadas no nacionalismo, quanto iniciativas econômicas neoliberais.

Portanto, diante das mudanças econômicas neoliberais, muitos governos adotaram diversas regras liberalizantes, no intuito de fomentar o desenvolvimento econômico na região. Assim, é possível constatar diferenciações entre políticas e ideologias dentro da vertente esquerdista. Tais diferenciações viriam a conformar, nos primórdios do século XXI, um novo modelo de imagem política: o “neopopulismo” (WEYLAND, 2004).

O neopopulismo é entendido como uma forma política pós-moderna (TRAINE, 2004). Baseados no populismo clássico, os atuais políticos usufruiriam da insatisfação populacional latino-americana, relacionada às reformas neoliberais, aos governos militares de décadas anteriores, ou mesmo à insatisfação relacionada aos governos demo-cráticos instáveis dos últimos vinte anos na região. Os políticos se utilizariam desse tipo de descontentamento para emergirem como novos representantes do povo (WEYLAND, 2004). Para Marta Lagos (2001), a deficiência democrática na América Latina seria fator determinante para a desconfiança social, reverberando a ascensão de políticos esquerdistas, de discursos neopopulistas, via escrutínio da população.

Por sua vez, a população passou a ter ciência de que um Estado democrático não significa viver em um Estado que propicie parâmetros adequados para maior democratização (LIEVESLEY, 1999). Como exposto por Peter H. Smith, “o desenvolvimento não gera democracia, e sim o oposto: democracia ocasiona o desenvolvimento” (2005, p. 50). Fundamentada nessa ideia, a esquerda latino-americana adquiriu seus méritos, sendo vista por sua população como um instrumento pelo qual reivindicaria maior democratização dos seus países.

Contudo, a questão é saber se essa nova geração de líderes latino-americanos real-mente propicia políticas pragmáticas, que aliviam os deslocamentos econômicos e sociais, as quais historicamente são utilizadas por políticos populistas, geralmente de caráter personalista para ascenderem ao poder. Embora o personalismo não seja exclusivo...

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