O que está demasiado na legislação trabalhista do Brasil: rigidez ou flexibilidade?

AutorDagoberto Lima Godoy
Ocupação do AutorAdministrador, advogado e professor
Páginas35-60

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Dedico estas reflexões ao Professor José Pastore, o mais lúcido, respeitado e influente batalhador pela modernização das relações do trabalho, no Brasil.

Tenho muitas vezes me somado às críticas que se fazem à excessiva rigidez da legislação trabalhista, corporificada na vetusta Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), atribuindo-lhe um lugar de destaque na composição do "Custo Brasil", ou seja, na rede de empecilhos à competitividade da economia brasileira, entretecida com outras tantas disfunções legislativas, fiscais, administrativas e de infraestrutura.

Entretanto, minha já longa vivência como membro do Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho (OIT), onde convivo com atores sociais dos mais diversos países do mundo, tem me levado a refletir sobre as reais dimensões dessa tão alardeada rigidez. Tais reflexões de forma alguma serviram para arrefecer a convicção da necessidade de uma modernização da regulação das relações de trabalho, em nosso País. Mas, motivaram um olhar diferente, na tentativa de identificar o verdadeiro foco do problema e buscar um caminho menos obcecado pela flexibilização e mais preocupado com a saída do impasse, até agora intransponível, entre as demandas opostas de empresários e de sindicalistas.

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Aínda que o trabalho humano nao deva ser tratado como mercadoria, segundo prescreve a constituigáo da Organizacao Internacional do Trabalho (OIT), o custo, ou melhor, a produtividade da máo de obra continua constituindo urna vantagem comparativa, até mesmo decisiva, quando se trata de comercializar produtos intensivos nesse insumo. Entretanto, na Socíedade do Conhecimento, o trabalho humano é o mais importante fator da competitividade de empresas e nacóes.

A ideia central do presente artigo é a desmistificacao dos dois polos da histórica disputa: nem a rigidez da legislacáo trabalhista brasileira tem um grau táo elevado, como reclamam os empregadores, nem estáo os nossos trabalhadores táo carentes de protecáo adicional, quanto proclamam os sindicatos e as suas centráis.

Procuro demonstrar essa tese, convencido de que somente desanuviando as visóes mais radicáis é que se poderá administrar o confuto de ¡nteresses entre capital e trabalho1, conciliar a seguranca dos trabalhadores com a liberdade de gestáo empresarial e desenvolver urna economía competitiva. Esperando ser bem sucedido na demonstracáo, passo a identificar onde se encontram os reais obstáculos á adocáo de urna legislacáo mais atualizada e eficaz, e, afinal, sugerir alguns meios para superá-los.

O contexto: globalizacáo, mudancas e desafíos ñas relacóes de trabalho

Dois fatores principáis impóem e balizam urna revisáo do sistema de relacóes de trabalho e emprego: a globalizacáo da economía e as ¡novacóes científicas e tecnológicas que caracterizam a Sociedade do Conhecimento.

A globalizacáo impóe a regra fundamental de urna competicáo impla-cável entre os agentes económicos, num mundo em que as fronteiras entre países sao totalmente vulneráveis as comunicacóes e cada vez menos protegidas por barreiras alfandegárias. Ora, ainda que o trabalho humano nao deva ser tratado como mercadoria — segundo prescreve a constituicáo da

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OIT2 — o custo, ou melhor, a produtividade da mao de obra continua constituindo urna vantagem comparativa que pode ser decisiva, quando se trata de comercializar produtos intensivos nesse insumo. Como salarios e encargos sociais oneram o custo e, por si só, nao garantem maior produtividade, acirram-se os conflitos entre os trabalhadores — que querem mais beneficios — e as empresas — forcadas pela competicáo a minimizar custos.

Entretanto, na Sociedade do Conhecimento em que vivemos o trabalho humano passou a ser o mais importante fator da competitividade de empresas e nacóes, visto que o saber, por mais atual e avancado seja ele, só se aplica á prática por meio das pessoas, estas que — individualmente ou em equipe — sao sempre as titulares das capacidades de ¡novar e tomar iniciativas. Ocorre que nao sao ainda universais nem o reconhecimento desse fato, nem a percepcáo de que pessoas insatisfeitas nao póem todo o seu potencial a servico das organizacóes. Em seu próprio prejuízo, grande parte de empresarios e administradores — ainda aferrados ao paradigma "fordista" — continuam a pensar que máquinas e sistemas de informatizacáo podem (ou teráo de) substituir o trabalho humano, inclusive com a vantagem de eliminar o potencial de confuto de ¡nteresses que Ihe é ¡nerente. Nao obstante, acredito que a mentalidade desses retardatarios tende a evoluir, diante da evidencia das vantagens competitivas aportadas pelas pessoas as empresas que sabem valorizar seu conhecimento e criatividade.

Sem embargo, a indispensável revisáo esbarra com enormes resistencias. De um lado, opóem-se os sindicatos de trabalhadores, geralmente com o apoio das correntes políticas "de esquerda" e o respaldo da maior parte da academia e do Judiciário, todos preocupados com a justica social, mas pouco atentos as condicionantes enfrentadas pelas empresas para se manterem competitivas e, assim, serem capazes de gerar mais e melhores empregos. Do lado oposto, ainda que minoritaria, mantém-se a velha mentalidade patronal que clama por mais "flexibilizacóes", tais e tantas que livrem a gestáo empresarial de quaisquer condicionantes de cunho social.

Do plano internacional, vem a influencia da OIT, promovendo o "trabalho decente" e insistindo para que o Brasil persista em buscá-lo por meio da ratificacáo de normas internacionais de trabalho marcadas pelo protecionismo, estrategia que já nao se mostra mínimamente eficaz, sendo até mesmo considerada, por muitos, um fator agravante do desemprego, por contribuir para o enrijecimento das relacóes laboráis. Em todo o mundo, tanto mais se incrementa a regulacáo dos contratos de trabalho, tanto maior é a frustracáo com os resultados, parecendo que o tiro sai pela culatra. E os mecanismos de Diálogo Social —

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também intensamente promovidos pela OIT —, embora se apresentem como uma alternativa certamente mais razoável, não têm conseguido mais do que abrandar o conflito, ficando longe de solucioná-lo.

Nesse cenário, é que se deve discutir o grau de rigidez da legislação trabalhista, no Brasil, e cogitar das medidas necessárias para atualizar e aperfeiçoar a regulação das relações de trabalho, abrangendo não somente os empregos tradicionais, mas também as novas formas de divisão e contratação do trabalho.

A flexibilidade não reconhecida

Devo, em primeiro lugar, explicar por que concluí haver um certo exagero nas avaliações do grau de rigidez das normas trabalhistas, no Brasil. Para tanto, lembro que geralmente se identificam quatro formas de flexibilidade nas relações de trabalho (Quadro I): a) nos contratos de trabalho (flexibilidade contratual ou numérica), para modelar o emprego no interior das organizações; b) nos sistemas de produção (flexibilidade produtiva), relativa às práticas para descentralizar a produção, via terceirização e outras formas de subcontratação; c) no tempo trabalhado e nas formas de remuneração (flexibilidades temporal e financeira, respectivamente); e d) na organização do trabalho, para evoluir dos padrões convencionais de subordinação (flexibilidade organizacional ou funcional) e praticar a rotação de funções e as multitarefas.

[VER PDF ADJUNTO]3

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Urna análise á luz dessa classificacao permite encontrar uma serie de medidas legislativas já em vigor no Brasil (com efeitodeflexibilizacáoquantitativa, segundo a classificacáo ácima). Vejamos as principáis4:

  1. nos contratos de trabalho:

    • criacáo de cooperativas de prestacao de servico, sem caracterizacáo de vínculo empregatício (Lei n. 8.949/94);

    • contratos por tempo determinado, com simplificacáo dos criterios de rescisáo contratual e as contribuicóes sociais (Lei n. 9.601/98); suspensáo do contrato de trabalho, por prazo de 2 a 5 meses, associada á qualificacáo profesional, mediante negociacáo coletiva (MPn. 1.726/98)5; denuncia da Convencáo n. 1 58 da OIT, afastando condicionantes para a demissáo ¡motivada (Decreto n. 2.100/96);

    • contrato por jornada parcial, com reducáo da jornada até 25 horas semanais, com salario e demais direitos proporcionáis (MP n. 1.709/986); regulamentacáo das demissóes por excesso de pessoal no setor público (limites de despesas com pessoal) (Lei n. 9.801/99);

  2. no tempo traba/hado e nos sistemas de remuneracáo:

    • criacáo do Banco de Horas (Lei n. 9.601/1998 e MP n. 1.709/1998), permitindo a definicáo de jornada organizada no ano, para atender a flutuacóes dos negocios e prazo para sua compensacáo, mediante acordó ou convencáo coletiva;

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    • autorização do trabalho aos domingos nas atividades do comércio em geral, observada a legislação municipal, mediante negociação coletiva(Lei n. 11.603/2007);

    Participação nos Lucros e Resultados (PLR), mediante negociação coletiva (MP n. 1.029/94 e Lei n. 10.101/2000);

    • fim da política de reajuste salarial e proibição das cláusulas de reajuste automático (Plano Real — MP n. 1.053/1995 e reedições).

    Além dessas, ainda se pode citar, como medida flexibilizante, a vedação da ultratividade de acordos e convenções, segundo a MP n. 1.620/98 e a Súmula n. 277 do TST, que estatuíram que as condições de trabalho, quando estabelecidas por sentença normativa, convenção ou acordo coletivos, vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos individuais de trabalho.

    Enfim, esse conjunto de medidas, de inegável efeito flexibilizante, terminou sendo pouco valorizado pelos que reclamam da excessiva rigidez da regulação7, talvez...

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