Demandas por controle concentrado de constitucionalidade em matéria trabalhista: o STF e as ações diretas de inconstitucionalidade

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas211-236

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1. Introdução

O exercício do controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é tema relevante no cenário jurídico brasileiro e tem sido objeto de um conjunto de expressivos estudos acadêmicos, embalados por tradições teóricas distintas e vertentes explicativas múltiplas. Todavia, são escassas as investigações sobre o funcionamento e o papel do STF em matéria laboral, em especial sobre a judicialização dos conflitos trabalhistas no âmbito de nossa Corte Suprema. Embora pululem análises acerca da judicialização da política e das relações sociais no Brasil contemporâneo, existe uma lacuna na literatura voltada para a compreensão do papel dos atores coletivos e sindicais na contestação ao direito posto e das respostas dadas pelas instituições judiciárias às demandas concernentes à Constituição e que envolvam a configuração de institutos jurídicos e princípios reitores do direito laboral.

O presente artigo é fruto das pesquisas realizadas no grupo de pesquisa Configurações Institucionais e Relações de Trabalho (CIRT), que se dedica a acompanhar as decisões proferidas pelas cortes superiores, bem como os conflitos e práticas dos atores empresariais, sindicais e de partidos polí-ticos, concernentes às instituições trabalhistas,1 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Busca contribuir para a superação da escassez de produções acadêmicas a respeito das ações propostas perante o Supremo Tribunal Federal, envolvendo os atores sindicais e trabalhistas. A partir do recorte temporal 1988-2012, almeja-se ainda evidenciar os períodos em que foram propostas, proporcionalmente, mais Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) em matéria de labor, sistematizar tais ações, apresentá-las e refletir sobre as possibilidades para a análise da atuação dos atores na conformação das instituições do trabalho.

2. Observações metodológicas

Destacar o papel da interpretação e das instituições para a configuração dos direitos é hoje senso comum que não precisa ser repassado. Em sociedades de constitucionalização recente, a concretização da Constituição passa necessariamente pela superação de sua apreensão como mero documento político e admissão de sua normatividade. Em sociedades pluralistas, a interpretação das normas constitucionais é realizada por uma

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sociedade aberta de intérpretes, ou seja, trata-se de uma atividade na qual estão envolvidas todas as potências públicas e aqueles que vivem a norma e que detém papel ativo no processo hermenêutico.

Ao lado do relevante papel do Judiciário na conformação/interpretação dos direitos e na efetivação dos princípios e regras constitucionais, o círculo de intérpretes da Constituição (hÄBERLE, 1997, p. 40) se amplia. A complexidade e pluralidade intrínseca ao constitucionalismo contemporâneo não se coaduna com uma hermenêutica limitada a entender o modo como se compreende e se atribui sentido a um texto, construindo a norma por seus intérpretes autorizados. O destinatário da norma é participante ativo do processo hermenêutico. häberle observa que “todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma” (1997, p. 15), não sendo dos juízes o monopólio da interpretação constitucional. Neste sentido, se são relevantes os estudos sobre as decisões judiciais, não menos importante é olhar para “os agentes conformadores da realidade constitucional” (hÄBERLE, 1997, p. 12), pois “é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas”, como bem explica Peter häberle:

O conceito de interpretação reclama um esclarecimento que pode ser assim formulado: quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co-interpretá-la (Wer die Norm ‘lebt’, interpretiert sie auch mit). Toda atualização da Constituição, por meio da atuação de qualquer indivíduo, constitui, ainda que parcialmente, uma interpretação constitucional antecipada. Original-mente, indica-se como interpretação apenas a atividade que, de forma consciente e intencional, dirige-se à compreensão e à explicitação de sentido de uma norma (de um texto). A utilização de um conceito de interpretação delimitado também faz sentido: a pergunta sobre uma interpretação intencional ou consciente. Para uma pesquisa ou investigação realista do desenvolvimento da inter-pretação constitucional, pode ser exigível um conceito mais amplo de hermenêutica: cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública [...] representam forças produtivas de interpretação (interpretatorische produktivkäfte); eles são intérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes (Vorinterpreten). Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (com ressalva da força normatizadora do voto minoritário). Se se quiser, tem-se aqui uma democratização da intepretação constitucional. Isso significa que a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática. Portanto, é impensável uma intepretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas (hÄBERLE, 1997, p. 13-14).

Com base nesta perspectiva, este estudo busca auxiliar na compreensão das demandas que invocaram o exercício do controle concentrado de constitucionalidade pelo STF, aduzindo especificamente a inconstitucionalidade de regras editadas entre 1988 e 2012, mediante a propositura de Ações Diretas de Inconstitucionalidade.

Para tanto, sublinhe-se que tal abertura teórica encontrou eco no constitucionalismo brasileiro. No sistema constitucional precedente, somente o Procurador-Geral da República poderia propor ação direta perante o Supremo, enquanto no atual o rol de legitimados foi ampliado substancialmente e comporta o Presidente da República, a mesa do Senado Federal, a mesa da Câmara dos Deputados, a mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, o Procurador--Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Desde a Emenda Constitucional n. 45 de 2004, são estes os legitimados para a proposição de Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), antes restrita a alguns agentes políticos (Presidente da República, mesas do Senado e da Câmara e pelo Procurador-Geral da República). Com a regulamentação do processo legislativo, promovida pelas Leis ns. 9.868 e 9.882, ambas de 1999, o debate constitucional ampliou-se para inúmeros outros agentes públicos, entidades da sociedade civil, que podem ser admitidos no processo como amicus curiae, bem como para peritos e experts, convidados para audiências públicas.

No âmbito do direito constitucional, a pesquisa parte do pressuposto exposto por häberle de que a interpretação não é um evento exclusivamente estatal, pois a ele diversas forças políticas tem acesso, é atividade, que potencialmente diz respeito a todos:

[...] o cidadão que formula um recurso constitucional é intérprete da Constituição tal como o partido político que propõe um conflito entre órgãos ou contra o qual se instaura um processo de proibição de funcionamento (1997, p. 23).

Deste modo, sendo a abertura uma construção da demo-cracia, a proeminência do Supremo Tribunal Federal em matéria trabalhista e a participação de outros atores, que não os representativos de empregados e empregadores na definição das normas de Direito do Trabalho, podem ser fenômenos novos que precisam ser estudados.

A catalogação dos atores políticos, econômicos e sindicais que postulam, perante o Supremo Tribunal Federal, a declaração de inconstitucionalidade de normas que versam sobre direito e processo do trabalho ou que apontam incompatibilidades entre regras infraconstitucionais e os arts. , , , 10, 11 e 114 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) e o art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) são relevantes para permitir indagar sobre a extensão dos intérpretes da Constituição do Trabalho, reconhecidos ou não como legitimados ativos pelo Supremo Tribunal Federal para tanto.2

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Ademais, a ação dos atores é variável explicativa que não pode deixar de ser levada em conta quando se pensa no desenvolvimento das instituições sociojurídicas. Agentes intencionais exercem sua vontade direta ou indiretamente para desenhar e redesenhar as instituições, sendo que, quando não podem fazê-lo diretamente (GOODIN, 2003, p. 47), buscam mecanismos indiretos nos quais as intervenções dire-tas se veem obstaculizadas. As demandas propostas perante o Supremo Tribunal Federal podem ser examinadas por tal perspectiva, na medida em que seus requerentes são agentes intencionais que atuam por meio de mecanismos indiretos e buscam promover mutações normativas quando não as obtêm pela via da reforma legislativa ou atuação governamental.3 Não se negligencia a importância do desenho institucional para a compreensão das mudanças produzidas no direito constitucional do trabalho pelas instituições judiciárias. Os tribunais são atores da interpretação e contribuem decisivamente para a configuração do direito. E...

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