Motivação e deferimento da petição inicial

AutorJúlio César Ballerini Silva
CargoMagistrado e professor de graduação e pós-graduação do creupi mestre em processo civil pela puc-campinas, especialista em direito privado pela USP

INTRODUÇÃO

A tarefa de analisar o tema proposto não é das mais amenas eis que cuidará de analisar um fenômeno que não é unívoco, como ocorre no caso da motivação no direito brasileiro.

Isso porque não existe consenso a respeito da natureza jurídica da motivação na doutrina nacional, posto que existem, pelo menos, duas correntes a respeito do tema.

Para a primeira corrente, a motivação seria o “iter lógico” utilizado pelo Magistrado para chegar a uma decisão, ou seja, seria a demonstração do raciocínio do Juiz para chegar à sua conclusão, servindo, portanto, a que se conheçam tais razões.

Esta corrente estaria mais alinhada com o pensamento de autores constitucionalistas que entendem que o fundamento político de existência de um Poder Judiciário seria, justamente, a sua imparcialidade, cujo controle seria feito, dentre outras formas, pela obrigatoriedade de motivação dos atos judiciais.

Neste sentido, peço vênia para transcrever trecho da opinião do eminente Alexandre de Moraes, para quem: “Bandrés afirma que a independência judicial constitui um direito fundamental dos cidadãos, inclusive o direito à tutela judicial e o direito ao processo e julgamento por um Tribunal independente e imparcial.”(1)

E, ainda mais, com a motivação, se permite ao interessado conhecer as razões que levaram o Juiz a decidir, o que viabiliza o seu direito de inconformismo diante da decisão, possibilitando o exercício do direito ao duplo grau de jurisdição, implícito na ordem constitucional pátria.

O próprio E. Superior Tribunal de Justiça, enquanto órgão cuja função de padronização da legislação nacional infraconstitucional resta patente na Constituição Federal de 05.10.1.988 ( artigo 105 e seus consectários ), já se manifestou neste mesmo sentido, como se pode observar pelo teor da seguinte ementa, que peço vênia para transcrever:

A motivação das decisões judiciais reclama do órgão julgador, pena de nulidade, explicitação fundamentada quanto aos temas suscitados. Elevada a cânone constitucional apresenta-se como uma das características incisivas do processo contemporâneo, calcado no due process of law, representando uma garantia inerente ao Estado de Direito ( STJ – 4ª Turma, ROMS 6465-SP, Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 29.10.1.997, D.J.U. 09.12.1.997, p. 64.705 ).

Para uma segunda corrente, a motivação não seria um caminho percorrido pelo Magistrado, mas, ao contrário, seria um discurso para justificar a decisão, visando convencer os jurisdicionados a respeito de seu acerto(2)

Para esta vertente do pensamento jurídico, a motivação não seria, elemento de validade de uma decisão judicial, mas elemento que colaboraria com o escopo da jurisdição, guardando pertinência maior com a função social da jurisdição, enquanto pacificação social de conflitos.

De todo modo, seja pela adoção de uma, ou de outra destas correntes, não se consegue, com clareza, divisar o limite, ou a medida em que se teria um parâmetro para aferir o conteúdo mínimo de fundamentação de uma decisão judicial, malgrado todos concordarem com o fato de que se cuida de providência obrigatória.

Tal questão alcança relevo ainda maior em sede de análise da petição inicial, que é o primeiro pressuposto de regularidade processual, na medida em que, nos termos da teoria angular da relação jurídica processual, tem-se que somente haverá processo a partir do momento em que se despachar (e tal expressão será questionada adiante) ou distribuir uma petição inicial (nos expressos termos da norma contida no artigo 263 do Código de Processo Civil).

E, mais ainda, na petição inicial, conforme é cediço, estarão as linhas básicas da futura e eventual controvérsia jurídica, sendo certo que, de via indireta, a própria exordial acabará por dar os contornos do exercício do direito de defesa (direito de exceção contraposto ao direito de ação, iniciado pela petição inicial) na medida em que não teria sentido o réu defender-se em relação a fatos ou institutos não mencionados na petição inicial, delimitando, ainda, o próprio exercício da atividade jurisdicional (não se pode esquecer que o Magistrado deve ficar adstrito ao pedido, sob pena de proferir decisões nulas, como nos casos de decisões ultra, infra ou extra-petita).

Para a análise dessa tormentosa questão, pretende-se a adoção do método analítico de estudo, decompondo noções para que se chegue à conclusão final acerca da natureza jurídica da decisão que analisa o recebimento da petição inicial, com consulta à doutrina e, eventualmente, da jurisprudência.

DIREITO COMPARADO

Modernamente, tal como apontado por Maria Thereza Gonçalves Pero,(3) podem ser constatados, pelo menos quatro sistemas de motivação de decisões judiciais, a saber: a) ordenamentos em que a motivação tem fonte em norma constitucional (modelo italiano, brasileiro e de outros países da América Latina); b) ordenamentos em que a motivação tem fonte em legislação ordinária (França, Alemanha e Áustria); c) ordenamentos em que a motivação se consolida no costume jurisprudencial, sem que haja previsão legal ou constitucional (Inglaterra, Canadá, Escócia e demais colônias inglesas à exceção dos Estados Unidos); e d), ordenamentos em que sequer existe costume, havendo omissão legal e constitucional a respeito do tema (Estados Unidos).

Com relação ao último caso, ou seja, ao direito norte-americano, insta salientar que, embora o costume de motivar tenha sido adotado enquanto o país era uma colônia britânica, acabou sendo abandonado com a independência em 1.776 (até para que se verificasse um rompimento cultural com a sede imperial).

Costuma-se, aliás, ponderar, como regras, que os dois primeiros tipos de ordenamentos são encontráveis nos países que tem o direito de base romano-canônica, enquanto que os dois últimos tipos se encontram, com maior incidência em países que adotam o sistema da common law (fenômeno, aliás, explicável pela repetição de decisões fundadas em precedentes, que leva à massificação pelo sistema de stare decisis)(4)

E esse fenômeno será mais sintomático na medida em que se constate que, atualmente, são inegáveis os efeitos da globalização sobre quase todo o planeta, não se podendo esquecer de que se cuida de um movimento de padronização sócio-política-cultural, visando uma hegemonia econômica dos países globalizantes em detrimento dos países globalizados, de modo que poderá ser observada uma tendência de adoção do sistema de common law em países que tradicionalmente mantiveram e mantém ordenamentos de base romano-canônica, como é caso do Brasil e de vários países da América Latina.

O risco de tal orientação para o ordenamento jurídico brasileiro seria altamente danoso, sobretudo se constatado que, num sistema em que não se adotar sequer o costume da fundamentação, haverá grande dificuldade de controle do conteúdo jurídico das decisões judiciais.

Tal perigo, obviamente, tem suas dimensões ampliadas na medida em que se constata que o Poder Judiciário, que já tem seus órgãos de cúpula compostos por indicações do Poder Executivo, chanceladas pelo Senado Nacional, atualmente passa por discussões acerca da reforma de sua estrutura funcional, inclusive, com propostas de controle externo, o que possibilitaria um controle político extensivo à base deste Poder.

Isso sem que se mencione o próprio esvaziamento do modelo de jurisdição estatal, através de uma lei ordinária, cuja constitucionalidade será reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, instituindo o modelo de arbitragem no Brasil, permitindo julgamentos de equidade, nem sempre motivados, ou com a aplicação do direito pátrio.(5)

Não se pode perder de vista que o direito, aliás, é criado e desenvolvido por ação da jurisprudência de modo que, mesmo não havendo expressa previsão legal ou constitucional os Magistrados acabam por fundamentar suas decisões não para que se justifique o que foi feito, mas, ao contrário, para que se entenda como o ordenamento funcionará a partir do precedente criado.

Tanto é assim, aliás, para que não se esqueça que a jurisdição, numa das suas possíveis acepções, tem como conceito à função social de pacificar conflitos, tal como preconizado por Carnelutti.

No direito italiano, por exemplo, conforme assevera Michele Taruffo, na obra “La Motivazione della sentenza civile”, Ed. Padova, 1.975, a Constituição se refere à função política do dever de motivar como trâmite do controle difuso sobre o exercício do poder jurisdicional(6)

Basta, aliás, que se compulse o texto da Constituição da República Italiana, notadamente na sua norma contida no artigo 111, para que se verifique, de forma expressa, tal obrigatoriedade (o texto refere-se à obrigatoriedade de motivação das medidas judiciais, e, ainda, no mesmo artigo, existe a própria referência a um duplo grau em relação a sentenças e medidas referentes à liberdade...

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