A legitimidade da Defensoria Pública da União na Justiça do Trabalho na defesa dos direitos metaindividuais dos trabalhadores

AutorLidiane da Penha Segal - Carlos Henrique Bezerra Leite
Páginas89-103

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Introdução

A CF/88 rompeu definitivamente com a ideia clássica de que a proteção estatal deve se voltar apenas para os direitos individuais, tendo estabelecido, diferentemente das Constituições anteriores, que qualquer tipo de lesão ou ameaça de lesão poderá ser objeto de análise pelo Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, da CF/88), o que abrange a apreciação das questões coletivas.

Esse novo e amplo conceito de acesso à justiça no Brasil, que foi alçado à categoria de direito fundamental a partir de 1988, sedimentou um novo olhar sobre os conflitos sociais existentes em uma sociedade cada dia mais complexa e massificada.

Atualmente, ainda que se dependa de uma melhor compreensão acerca da importância da apreciação das ações coletivas para a efetivação do acesso à justiça por parte dos operadores do direito, a elevação ao plano constitucional já significa um avanço para a tutela dos direitos coletivos lato sensu, diante da insuficiência do modelo de acesso individual ao Poder Judiciário em uma sociedade globalizada e significativamente afetada pela exclusão social.

Na seara trabalhista, por exemplo, a intensificação dos conflitos entre capital e trabalho, desemprego estrutural e crescente, e discriminação contra os grupos sociais vulneráveis levam ao Judiciário trabalhista demandas referentes a uma coletividade de pessoas cuja solução não se adequa ao tradicional modelo de processo individual que foi concebido no paradigma do Estado Liberal.

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Ocorre que, no âmbito da Justiça do Trabalho, o acesso dos trabalhadores à jurisdição laboral, especialmente aqueles mais vulneráveis, encontra diversos obstáculos econômicos, psicológicos, sociais, culturais e políticos, além dos obstáculos organizacionais, uma vez que a cultura individualista que impera nas relações entre o capital e o trabalho dificulta a tutela coletiva dos direitos sociais dos trabalhadores, seja pela inexpressiva atuação dos sindicatos, que ainda preferem utilizar o tradicional modelo da assistência sindical (Lei n. 5.584/70) para tutela de direitos individuais simples ou plúrimos, seja pelas dificuldades operacionais e humanas de atuação do MPT para promover ações coletivas em defesa dos direitos individuais homogêneos.

No intuito de ampliar o rol dos legitimados para as ações coletivas, o legislador previu a legitimidade da Defensoria Pública para defender os direitos metaindividuais tuteláveis pela ACP (Lei n. 7.347/85, art. 5º, II, com redação dada pela Lei n. 11.448/2007).

Eis, então, o problema a ser enfrentado nesta pesquisa: a DPU possui legitimidade para promover a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos trabalhadores no âmbito da Justiça do Trabalho? Se a resposta for positiva, existem limitações para tal legitimidade?

1. Ondas de acesso à justiça e ampliação do rol dos legitimados para a tutela dos direitos metaindividuais

As inovações legislativas que resultaram na formação de um sistema integrado de acesso coletivo à justiça (CF, art. 5º, XXXV, LIV, LXX, LXXI e LXXIII, 8º, III, 127 e 129, III e 1º, LACP art. , e 21, CDC art. 81, 90, 91 a 100, 103 a 104) trouxeram uma nova possibilidade de resolução destas demandas, dentro da perspectiva de acesso à justiça trazida por Mauro Capelletti e Bryant Garth por meio do Florence Project, sistematizado nas "três ondas" renovatórias (garantia de assistência jurídica aos necessitados, representação dos direitos difusos e informalização do procedimento de resolução de conflitos).

Segundo apontam Capelletti e Garth:

O recente despertar de interesse em torno do acesso efetivo à Justiça levou a três posições básicas, pelo menos nos países do mundo Ocidental. Tendo início em 1965, estes posicionamentos emergiram mais ou menos em sequência cronológica. Podemos afirmar que a primeira solução para o acesso - a primeira "onda" desse movimento novo - foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses "difusos", especialmente nas áreas de proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro - e mais recente - é o que propomos a chamar simplesmente "enfoque de acesso à justiça" porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles,

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representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras de modo mais articulado e compreensivo.

Focando-se na denominada "segunda onda" e mantendo-se os olhos nas demandas trabalhistas, não é difícil reproduzir as inúmeras vantagens que circundam a utilização das ações coletivas, eis que "uma demanda coletiva bem conduzida tem o potencial de resolver de forma mais eficaz uma determinada situação que diversas demandas individuais sobre a mesma causa".

Significativa redução na quantidade de processos na Justiça do Trabalho pode ser alcançada por meio da utilização das ações coletivas. Como destacam Isabel Reis Lages e Carlos Henrique Bezerra Leite, a ação coletiva: democratiza o acesso em massa ao Poder Judiciário; otimiza a distribuição igualitária da justiça, promovendo a correção das desigualdades sociais e regionais; permite a aglutinação de diversos litígios individuais numa única demanda (tutela dos direitos individuais homogêneos); prestigia a economia e a celeridade processuais; evita decisões judiciais conflitantes tão caras à credibilidade do Judiciário frente à sociedade; ameniza barreiras psicológicas e técnicas que dificultam o acesso dos grupos sociais vulneráveis à Justiça; previne macrolesões aos direitos fundamentais; desencoraja comportamentos violadores dos direitos humanos (danos morais coletivos e multas elevadas); permite que os trabalhadores tenham acesso à Justiça do Trabalho durante a vigência do contrato de trabalho; interrompem a prescrição para as demandas individuais (TST/SDI-1/OJ n. 359), quando se trata de ações coletivas para tutela de interesses individuais homogêneos (substituição processual); criam um espaço para a conscientização da cidadania, permitindo a participação da sociedade e dos trabalhadores - direta ou indiretamente - nos centros de Poder, por meio da provocação das instituições responsáveis pela defesa coletiva de direitos (art. 6º da Lei n. 7.347/85).

Além disso, "a concentração de atos em um só processo, movido por um legitimado engajado com a defesa da sociedade e que possua a capacidade de postular e instruir devidamente a lide, leva a uma solução mais benéfica a sociedade", já que, nas palavras de Hugo Nigro Mazilli, o processo coletivo "deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido de uma só vez, em proveito de todo o grupo lesado".

Em matéria de legitimação para a defesa dos interesses metaindividuais, neles incluídos os difusos, individuais homogêneos e coletivos, o direito brasileiro mesclou diferentes sistemas adotados em diversos países (publicista, privatista e associacionista) para estabelecer um amplo rol de legitimados.

É o que se verifica na atual relação do art. 5º da Lei n. 7.347/85, com redação dada pela Lei n. 11.448, de 2007, que trata da ação civil pública, um dos principais instrumentos para a tutela dos interesses metaindividuais:

Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I - o Ministério Público;

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II - a Defensoria Pública;

III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V - a associação que, concomitantemente:

  1. esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

  2. inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

(...)

O que se estabelece, assim, é uma proposta de legitimação ampla, que foi ratificada por meio do Código de Defesa do Consumidor, conforme manifestação de um dos autores do anteprojeto que resultou na Lei n. 8.078/90:

A legitimação ad causam ativa consagrada no Código, para o aforamento das ações cole-tivas, foi a mais ampla possível. Seguiu o legislador a mesma orientação adotada pela Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, e posteriormente reafirmada na Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989. Optou o legislador pátrio por limitar a legitimação individual à busca da tutela dos interesses e direitos a título individual. Pelas regras que disciplinam as obrigações indivisíveis, seria admissível, em linha de princípio, a legitimação concorrente de todos os indivíduos para a defesa dos interesses difusos ou coletivos de natureza indivisível. (...) Por certo, após a perfeita assimilação pelo povo brasileiro do verdadeiro ideal colimado pelo Código, o que somente ocorrerá com a educação mais aperfeiçoada e mais abrangente, e principalmente com a diminuição do individualismo que nos marca profundamente, estaremos aptos, no futuro, à ampliação total, inclusive a cada indivíduo, da legitimação para agir para a tutela, a título coletivo, dos interesses e direitos dos consumidores.

Vê-se, portanto, que à Defensoria Pública, como instituição essencial ao exercício da função jurisdicional do Estado (art. 134 da CF/88), também se confere a incumbência de propor ação civil pública para a garantia dos interesses metaindividuais, sobretudo por se tratar de instituição imbuída da função de prestar assistência jurídica integral e...

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