A desvinculação das receitas da União (DRU) e a efetivação de Direitos Fundamentais Sociais

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas15-30

Page 15

Introdução

O surgimento do Estado Social é um marco para a mudança de paradigmas do Estado, tendo em vista que este deixa de ter uma postura absenteísta para se tornar intervencionista no âmbito da ordem econômico-social. Entendeu-se que, apesar de importantes, o direito de liberdade e as garantias individuais protegidos pelo Estado Liberal não eram suficientes para suprir as necessidades das camadas mais pobres da sociedade, sendo imprescindível, portanto, que o Estado também assegurasse condições materiais mínimas para a preservação da dignidade da pessoa humana, surgindo, com isso, os chamados direitos fundamentais de segunda dimensão ou direitos de natureza econômica, social e cultural.

Para a efetivação dos direitos sociais, especial-mente aqueles de natureza prestacional, demanda-se a existência e disponibilidade de recursos suficientes para a sua devida implementação. Contudo, tais recursos não são ilimitados, razão pela qual foi criada a chamada reserva do possível, instituto utilizado como limite para efetivação e judicialização de tais direitos.

A Constituição Federal de 1988 tem como uma de suas principais características o seu dirigismo, em consequência disto e, percebe-se uma certa rigidez orçamentária no que concerne à previsão de gastos obrigatórios relativos à efetivação de direitos fundamentais sociais.

Dentro dessa perspectiva de rigidez orçamentária, no que tange às despesas necessárias para a implementação dos direitos sociais, o Poder Executivo buscou um mecanismo jurídico capaz de propiciar uma maior flexibilidade na aplicação dos recursos financeiros do Estado, criando, assim, a chamada DRU (Desvinculação de Receitas da União). No entanto, é necessário indagar-se acerca da constitucionalidade destas desvinculações e como elas afetam os direitos sociais.

Considerando que o Brasil é um Estado Social e Democrático e que o art. 60, § 4º, IV, da CF/88, prevê que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais, é preciso analisar se a desvinculação de receitas da União não representa uma fragilização dos direitos sociais.

Outro critério que também precisa ser analisado é se esta desvinculação de receitas não prejudica a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, notadamente a sua eficácia dirigente, segundo a qual o Estado tem a obrigação permanente de concreti-

Page 16

zação destes direitos, inclusive, aqueles de segunda dimensão. Deve-se, também, verificar se a possibili-dade de desvinculação de receitas não fere o princípio da vedação do retrocesso social.

Diante de tal contexto, no presente artigo, divi-dido em cinco partes, busca-se, inicialmente, apresentar o contexto em que foram reconhecidos os Direitos Sociais e, em seguida, o custo para a devida concretização destes direitos de caráter prestacional. Aborda-se, ainda, a criação e o conceito do instituto denominado de reserva do possível.

Por fim, discorre-se acerca da Desvinculação das Receitas da União, a fim de se colher subsídios teóricos necessários para o exame da constitucionalidade de tal instituto, sob a perspectiva da implementação dos direitos fundamentais sociais, o que será feito na quinta parte do texto.

Espera-se, com este texto, fomentar o debate acerca do impacto causado pela chamada DRU sobre a efetivação dos direitos fundamentais sociais e de sua constitucionalidade, contribuindo, assim, para o amadurecimento da questão em foco, certamente de grande relevo para toda a sociedade.

1. Contextualizando o tema: o reconhecimento dos direitos sociais

Antes de tratar a respeito da origem e conceituação de reserva do possível, cumpre fazer uma brevíssima e resumida contextualização do surgimento dos direitos sociais.

O Estado dito liberal é fruto da Revolução Francesa de 1789, que representou a vitória da classe burguesa sobre a supremacia do clero e da nobreza, então detentores do poder político. Com efeito, a classe burguesa, não mais suportando os desmandos dos monarcas absolutistas e de integrantes da Igreja, cercados de tantos privilégios e direitos - o que representava óbice ao exercício das atividades comerciais praticadas pela burguesia - que sua vontade chegava a ser identificada com a vontade do Estado, tomou-lhes o poder e implantou uma nova estrutura estatal, conhecida como Estado de Direito, inspirado nos ideais do Iluminismo e Liberalismo político-econômico.

No que diz respeito à postura do Estado diante da economia, o Estado liberal era caracterizado por uma intervenção mínima, a economia deveria ser guiada pela mão invisível do mercado, cabendo ao Estado, unicamente, as funções de garantir a segurança jurídica e do território, a propriedade e a liberdade dos indivíduos.

Os graves problemas sociais surgidos em meados do século XIX revelaram que a igualdade inerente a todos os homens, tal como pressuposta pelos ideais liberais, foi, gravemente, comprometida pela exacerbada concentração de riquezas, levando à dominação do mercado por poucas empresas, minando a concorrência essencial ao bom funcionamento do sistema capitalista, bem como à exploração daqueles que não detinham os meios de produção. Em outras palavras, verificou-se que a liberdade quase absoluta apregoada pelos ideais liberais gerava profundas desigualdades na sociedade.

A liberdade, diante de uma igualdade meramente formal, isto é, sem levar em conta as diferenças, notadamente econômicas, entre os indivíduos, servia apenas para garantir que a burguesia, detentora dos meios de produção e, agora, do poder político, concentrasse cada vez mais e mais riqueza em detrimento das classes sociais menos favorecidas.

Diante de tal conjuntura, tendo em vista evidentes transformações de ordem econômica, política e ideológica, o Estado sofreu grandes mudanças, haja vista que abandonou sua posição absenteísta para assumir uma feição de Estado fortemente interventor na ordem econômico-social.

Efetivamente, com o surgimento do Estado Social, o Estado deixou de ostentar uma postura de intervenção mínima na sociedade, para se tornar um Estado que interfere diretamente na ordem econômico-social, seja por meio da edição de normas, seja por meio da prestação de diversos serviços públicos e fornecimento de bens, destinados, de uma forma geral, a atenuar as desigualdades fáticas por um bom tempo negligenciadas pelo Estado liberal burguês.

Reconheceu-se que, para o gozo mesmo dos direitos fundamentais ditos de primeira dimensão, era necessária a atuação do Estado para assegurar condições materiais imprescindíveis a uma vida digna, sob pena de se terem direitos fictícios, na medida em que assegurados formalmente na norma constitucional, mas sem efetivo reflexo no plano fático. De nada adiantava proclamar que todos são iguais perante a lei e ignorar as evidentes diferenças entre os indivíduos, notadamente as diferenças oriundas relacionadas a aspectos econômicos.

É nesse contexto de mudança de paradigma do Estado que vêm à tona os chamados direitos fundamentais de segunda dimensão ou direitos de nature-za econômica, social e cultural.

Page 17

No ordenamento jurídico brasileiro, não obstante a Constituição Federal de 1988 ter expressamente enquadrado os direitos sociais no título que cuida dos direitos e garantias fundamentais, forte é a controvérsia acerca da natureza jus-fundamental de tais direitos, bem como acerca da possibilidade de serem demandados perante o Poder Judiciário. Dados os limites deste trabalho, não se comentará sobre a disputa acerca da natureza fundamental dos direitos sociais. Partir-se-á, em verdade, da premissa - que se acredita correta - de que os direitos sociais são, sim, direitos fundamentais e que, nessa condição, partilham de regime jurídico especial em relação aos direitos ditos não fundamentais, notadamente da eficácia imediata outorgada pelo § 1º, do art. 5º, da CF/88.

O que se abordará aqui é em que termos se dá essa eficácia imediata quando se está a falar de direitos sociais, mas especificamente dos direitos sociais de cunho prestacional, isto é, que demandam uma obrigação de fazer ou de dar por parte do Estado, os quais necessitam de recursos públicos para serem efetivados, recursos esses nem sempre disponíveis nos cofres estatais.

2. o custo inerente aos direitos prestacionais

Antes de prosseguir na conceituação de reserva do possível, ainda se fazem imperiosas breves considerações a respeito do custo dos direitos, o que, à evidência, relaciona-se intimamente com tema aqui debatido.

Inegavelmente, todo o aparato necessário para a proteção e promoção de direitos fundamentais demanda recursos, tanto humanos como de natureza material. De fato, não só os direitos ditos prestacionais demandam recursos para efetivação, haja vista que, mesmo os direitos negativos, tais como o direito de propriedade, demandam recursos para sua proteção (polícia, Justiça etc.)1.

Contudo, é quando se analisa os direitos prestacionais que a questão dos custos para sua efetivação aflora com maior intensidade, tendo em conta que a efetivação desses direitos demanda do Estado um dar ou um fazer em prol dos titulares desses direitos, o que, sem recursos, não é possível ser realizado2.

Neste sentido, a lição de José Reinaldo de Lima Lopes:

Uma tese que se pode defender é a que todos os direitos têm custos. Tanto os direitos civis, direitos de liberdade, quanto os direitos sociais, alguns deles chamados direitos de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT