Das obrigações de dar

AutorBassil Dower, Nelson Godoy
Ocupação do AutorProfessor Universitário e Advogado em São Paulo
Páginas63-84

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5. 1 Conceito

"A obrigação de dar - escreve Clóvis Beviláqua - é aquela cuja prestação consiste na entrega de uma coisa móvel ou imóvel, seja para

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constituir um direito real, seja somente para facultar o uso, ou ainda a simples detenção, seja, finalmente, para restitui-la ao seu dono".36O que realmente deflui desse conceito é a existência de um compromisso de transferir a propriedade ou a posse da coisa, ou seja, o devedor compromete-se a entregar uma coisa móvel ou imóvel ao credor. Se a obrigação for de dar uma coisa móvel, ela ocorre pela tradição; quando imóvel, pelo registro do título no Cartório de Registro de Imóveis.

Portanto, tratando-se de uma obrigação, tem-se que o devedor apenas se compromete a entregar alguma coisa móvel ou imóvel. "A obrigação de dar - explica Sílvio Venosa - gera apenas um direito à coisa e não exatamente um direito real".37

Entrementes, há, ainda, a obrigação de restituir a mesma coisa ao credor, que é uma modalidade da obrigação de dar. Observa-se o que dispõe o art. 238 do CC: "Se a obrigação for de restituir coisa certa, e esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos até o dia da perda".

Vejamos, primeiramente, a "entrega", que visa:

A) TRANSFERIR A PROPRIEDADE DA COISA:

Essa obrigação surge, geralmente, em decorrência do contrato de compra e venda, ocasião em que o vendedor se compromete a transferir a propriedade, objeto da prestação, para o comprador. Há apenas uma obrigação, uma promessa de transferir o domínio, pela entrega da coisa móvel. Deixando o alienante de entregá-la, não pode o adquirente requerer-lhe a reivindicação, por faltar-lhe o domínio que ainda pertence ao vendedor. O adquirente tem somente o direito de mover ação de indenização nos termos do art. 389 do CC: "Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado"38.

Tratando-se de um bem móvel, o cumprimento da obrigação se dará pela tradição (entrega real do bem), surgindo, então, um direito real de propriedade para o credor, visto que o concurso de vontade não é suficiente para transferir o domínio das coisas. Analise o art. 1.267 do CC, que assim diz:

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"A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição".

Vale dizer, só o contrato não transfere a propriedade; é preciso, além do contrato, a "tradição", ou seja, a entrega do bem. Somente o vínculo obrigacional não tem o condão de fazer adquirir a propriedade; tratando-se de um móvel, é preciso, ainda, a entrega do bem.

A Revista dos Tribunais, volume 398, p. 340, fornece o seguinte caso que serve para compreender melhor o artigo supra: Na aquisição de um automóvel, o comprador efetua o pagamento mediante recibo e respectivo endosso do certificado de propriedade, mas a entrega do veículo ficou expressamente marcada para 10 dias após a data da compra. Seis dias após o contrato de compra e venda, um incêndio provocado por um curto circuito destrói o veículo, que não estava assegurado. O tribunal decidiu, no caso, que o vendedor deveria suportar o prejuízo, devolvendo o dinheiro que recebera, uma vez que, não tendo havido a tradição, não ocorrera, também, a transferência da propriedade do veículo. A propósito, veja uma ementa de certo acórdão: "A venda de veículo automotor se aperfeiçoa com a tradição, nos termos do art. 620 (atualmente, art. 1.267) do Código Civil, tendo o certificado, expedido pelo Detran, efeitos meramente administrativos.

O certificado de registro de veículo não é essencial ao aperfeiçoamento do contrato de compra e venda, nem constitui prova de domínio, pois tem a finalidade de centralizar o controle dos veículos automotores para o efeito de identificação e responsabilidade pelos tributos e infrações relativas ao trânsito" (in RT 456/209).

Para consolidarmos essa questão, vejamos outro caso elucidativo publicado pela mesma revista, volume 431, p. 66. Numa venda de novilhos, o comprador "A" recebe o gado e paga parte do preço, ficando a dever certo saldo. "A", seguir, vende o gado a terceiros. O vendedor "B" ajuíza ação de rescisão do contrato contra "A" para obter a devolução do gado com os seus rendimentos, sem contudo restituir o sinal recebido. O tribunal decidiu que "o contrato de compra e venda se perfaz com a tradição. O adquirente passa a ter disponibilidade da coisa". E finalizou: "Nem se demonstrou que os terceiros tivessem conhecimento de que a venda anterior estava sujeita à rescisão. De conseguinte, a aquisição dos ora embargados, como terceiros de boa-fé, não pode ser desfeita, nem o vendedor, ora embargante, tem direito de seqüela39 contra eles".

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Se o bem a ser entregue for imóvel, a transferência da propriedade se opera pelo "registro do título translativo no Registro de Imóveis" (CC, art. 1.245). O registro é uma tradição solene, que se perfaz pela inscrição do título aquisitivo no registro imobiliário. Para adquirir um imóvel, não basta, portanto, a escritura pública de compra e venda; é preciso também o registro, que faz a tradição solene. "O adquirente de imóvel cuja escritura não foi levada a registro é carecedor da ação para pleitear a nulidade da matrícula da segunda venda por faltar a ele o legítimo interesse em agir" ( in RT 705/176), ou seja, enquanto "não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel" (§ 1º do art. 1.245 do CC).

A tradição real (entrega efetiva) ou o registro (tradição solene) é, pois, o meio de consumar a transferência do domínio dos objetos móveis ou imóveis por meio de contrato. Assim ocorre também no direito alemão, austríaco, inglês e entre a maioria dos povos civilizados, com exceção do francês, seguido pelo italiano, em que a tradição não é necessária para a transferência do domínio, mas se aperfeiçoa pelo solo consensu em que a obrigação de dar cria um direito real.

Enquanto não surge o direito real de propriedade, existirá apenas uma promessa por parte do devedor, de entregar a coisa ao credor. Partindo dessa premissa, o Prof. Sílvio de Salvo Venosa apresenta o seguinte conceito de "obrigação de dar": "é aquela em que o devedor compromete-se a entregar uma coisa móvel ou imóvel ao credor, quer para constituir novo direito, quer para restituir a mesma coisa a seu titular".40

B) CEDER A POSSE DO OBJETO DA PRESTAÇÃO:

Numa obrigação de dar, o devedor pode, apenas, comprometer-se a transferir a posse ou a detenção de uma coisa. Assim, para ceder a posse ou a detenção da coisa, o cedente será simples credor, antes da tradição. O proprietário de um imóvel que se compromete a alugar sua propriedade, só se exonera da obrigação, mediante a entrega do imóvel para o uso do locatário (posse direta). Antes da entrega da posse, o senhorio será apenas um devedor da prestação da coisa. "O senhorio tem o dever legal de entregar o prédio alugado em estado de servir à finalidade destinada. Sem a planta aprovada e sem o habite-se, colocou ele no mercado de locação um imóvel irregular, com conseqüências perturbadoras à posse exercida pelos locatários", decidiu certa vez o tribunal (in RT 706/120). Confira-se, ainda, pelo seguinte aresto: "Negando-se a entregar o bem na data prevista para o início da locação,

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sujeita-se o locador à rescisão do contrato, ao pagamento da multa prevista e à devolução dos aluguéis pagos a título de garantia" (in RT 723/419).

C) RESTITUIR O OBJETO DA PRESTAÇÃO:

Pode o credor recuperar a posse ou a detenção da coisa entregue ao devedor. Se alguém ocupa um prédio a título gratuito, por empréstimo, surgiu um contrato de comodato. Ao vencer o prazo, o comodatário (devedor) deve devolver o que já é do credor. Somente com a entrega do imóvel é que a obrigação é cumprida pelo comodatário. A propósito, o tribunal já decidiu que "a recusa do comodatário em restituir a coisa equivale a esbulho" (in RT 389/132). Ou ainda: "Tratando-se de comodato, não tendo sido devolvido o imóvel ao término do prazo estabelecido para tal, resta caracterizado o esbulho possessório, cabendo a aplicação do aluguel-multa previsto no art. 1.252 (novo, art. 582) do CC" (in RT 680/135). É que na obrigação de restituir, a coisa normalmente pertence ao credor por ter havido apenas uma cessão de posse do bem ao devedor. Vencido o prazo do contrato ou constituído em mora o devedor, o credor poderá perseguir a coisa, propondo ação de reintegração de posse. O tribunal certa vez já decidiu que "não atendendo o comodatário, ao prazo que lhe foi outorgado, pelo comodante, para desocupar o imóvel, comete esbulho, competindo ao titular da posse a ação reintegratória" (in RT 458/231).

O que se destaca na obrigação de restituir coisa certa é que a coisa determinada pertence ao credor, diferentemente da obrigação de dar coisa certa, esta...

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