O Controle das Cláusulas Abusivas nas Relações Contratuais de Consumo

AutorClaudio Bonatto
CargoProcurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
Páginas87-110

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Excertos

"Sempre que possível e dentro de sua área de atribuição, o órgão público pode alterar a norma administrativa, na busca da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo"

"O inquérito civil permite que o Ministério Público, no âmbito dos interesses e direitos supraindividuais, faça o controle administrativo das cláusulas potencialmente abusivas nas relações contratuais de consumo. Esse controle pode ser efetivado de modo abstrato ou em concreto"

"O controle administrativo em abstrato, em nosso entendimento, também pode ser efetivado pelas entidades e órgãos da administração pública destinados à defesa dos interesses e direitos dos consumidores, integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, mais especiicamente o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor e os Procons estaduais e municipais"

"O controle administrativo das cláusulas abusivas nas relações contratuais de consumo, em abstrato ou em concreto, além de não constituir condição de procedibilidade ao direito subjetivo de ação, está sujeito, no que concerne à legalidade e à legitimidade, ao controle judicial"

"É consenso, na doutrina atual, que o controle judicial das cláusulas abusivas nas relações contratuais de consumo tanto pode ocorrer de modo abstrato, mesmo antes da utilização do contrato-formulário no mercado (ou seja, de documentos ainda unilaterais, cuja intenção é a de que venham a ser objeto de contratos de adesão), como de modo concreto, abrangendo cláusulas de contratos já perfectibilizados (com a adesão de consumidores)"

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0 Código de Defesa do Consumidor representa uma considerável modiicação no ordenamento jurídico brasileiro, com a implantação de um novo regime legal para grande parcela das relações contratuais entabuladas no convívio social. A partir dele, tem-se o nascimento de um novo equilíbrio, desta vez imperativo, nas relações contratuais entre consumidores e fornecedores de produtos ou serviços.

Passa-se de uma visão liberal e individualista para uma visão social do contrato, na qual a função do direito é garantir a equidade e boa-fé nas relações de consumo, superando o dogma da autonomia da vontade. O estatuto consumerista não representa o im da autonomia privada nos contratos, mas sim uma potente intervenção do Estado, o que representa, em contrapartida, ampla redução do espaço anteriormente reservado à vontade do indivíduo1.

A padronização dos negócios, levada a efeito por fornecedores de produtos ou serviços direcionados ao grande público, corresponde, nos dias de hoje, a uma racionalização necessária e útil aos participantes das relações contratuais de consumo, porquanto impensável a tratativa ou negociação prévia de todas as cláusulas contratuais ou das condições gerais de contratação, em razão dos inúmeros contratos realizados2.

Porém, a par das vantagens apontadas, surgem problemas relativos ao equilíbrio contratual, decorrentes da vulnerabilidade do consumidor e do próprio processo formativo do contrato, que, invariavelmente, consagra o aniquilamento do "fraco pelo forte", situação em que o fornecedor impõe sua vontade ao consumidor. Nessas condições, desponta a necessidade do controle das cláusulas abusivas nas relações contratuais de consumo, pela via administrativa ou judicial, abstrata ou concretamente, a im de que os contratos se conformem ao bem comum e aos princípios essenciais da justiça e da ordem pública, com o objetivo precípuo de recompor o equilíbrio no âmbito do interesse social3.

1. Controle administrativo

O controle administrativo, segundo as normas vigentes, pode ocorrer:

  1. pela instauração de inquérito civil, na forma do estatuído no artigo 8º, § 1º, da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985 (aplicável às relações de consumo, segundo o disposto no artigo 90 do Código de Defesa do Consumidor); b) pela adoção de providências no âmbito da administração pública, no que concerne às atividades por ela iscalizadas ou controladas.

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A instauração de inquérito civil, atribuição institucional exclusiva do Ministério Público, na forma do preceituado no artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, tem como objetivo arregimentar documentos e informações, bem como colher depoimentos dos interessados, com a finalidade de proporcionar ao parquet o livre convencimento sobre a existência ou não de cláusula abusiva em determinado contrato de consumo4. Nessa oportunidade, o órgão ministerial, presidente do inquérito civil, poderá tomar do agente econômico investigado (fornecedor) compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais, no caso, com a retirada da cláusula abusiva do contrato ou condições gerais de contratação, sob pena de cominação, o qual terá eicácia de título executivo extrajudicial, conforme previsto no artigo 5º, § 6º, da Lei 7.347/855.

A experiência prática, na área de proteção do consumidor, vivenciada na Coordenadoria de Defesa do Consumidor, órgão de execução do Ministério Público gaúcho, demonstrou-nos, ao longo dos anos, o acerto da adoção legislativa do inquérito civil como instrumento de paciicação social na tutela dos interesses e direitos transindividuais dos consumidores. Especiicamente na questão ora analisada, de controle de cláusulas abusivas nas relações contratuais de consumo, a Coordenadoria de Defesa do Consumidor instaurou diversos inquéritos civis, com o objetivo de analisar as cláusulas constantes de formulários padronizados utilizados pelos bancos, nos diversos contratos irmados com seus clientes. Destes inquéritos, vinte e cinco originaram ações coletivas de consumo e trinta e seis redundaram em compromissos de ajustamento, conigurando, estes últimos, um perfeito controle administrativo. Assim, constata-se que os vetos aos §§ 3º do artigo 51 e do artigo 54 do CDC, que previam o controle administrativo e abstrato, pelo Ministério Público, das cláusulas contratuais gerais nos contratos de consumo, não têm qualquer efeito prático, porque em pleno vigor se encontram as disposições legais sobre o inquérito civil, este poderoso instrumento de prevenção e composição de conlitos nas relações de consumo6.

É importante gizar que o controle administrativo, através do inquérito civil, pode e deve ser efetivado ainda que as cláusulas contratuais gerais tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou mesmo pela lei, visto que estes atos poderão conigurar ilegalidade ou inconstitucionalidade, respectivamente, situações ensejadoras da atuação do Ministério Público, na defesa da ordem jurídica e do efetivo respeito, por parte dos poderes

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públicos, aos direitos constitucionalmente assegurados (artigos 127, caput, e 129, inciso II, da Constituição Federal).

Outra forma de controle administrativo dá-se através do regime de autorização prévia das condições gerais de contratação por um especíico e competente órgão da administração pública. Este método de controle possibilita ao poder público o exercício pleno do poder-dever de polícia administrativa, através da iscalização e regulamentação, com a edição de decretos, portarias, resoluções e outros atos administrativos dirigidos ao estabelecimento de padrões para que os administrados possam exercer a atividade que é controlada e iscalizada pela administração pública. São exemplos dessas atividades: o setor de seguros, que deve obedecer às regras traçadas pela Susep (Superintendência de Seguros Privados), e o setor de consórcios de automóveis, que deve obedecer às regras estipuladas pelo Banco Central.

Sempre que possível e dentro de sua área de atribuição, o órgão público pode alterar a norma administrativa, na busca da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo. Quando, porém, os padrões ou condições gerais forem aprovados por lei, cabe à administração pública velar pelo seu cumprimento, eis que vigora, no âmbito do direito administrativo, o princípio da legalidade, pelo qual o administrador somente pode agir secundum legem, nunca contra legem ou praeter legem. Assim, os órgãos da administração não poderão alterar os dispositivos da lei que editou as cláusulas gerais de contratação, mas podem e devem, contudo, buscar a composição dos conlitos de consumo resultantes de cláusulas abusivas, inclusive com a formalização de compromisso de ajustamento com o agente econômico infrator.

Nas hipóteses em que somente a alteração da lei autoriza a modiicação ou eliminação de cláusula, é defeso à administração pública estipular qualquer alteração, a título de controle das cláusulas gerais de contratação, por meio de decreto ou outro ato administrativo infralegal. Nessa situação, somente é cabível o controle através da via judicial7.

A partir da análise criteriosa e cientíica do capítulo VII do Código de Defesa do Consumidor, que trata das sanções administrativas, bem como do Decreto 2.181, de 20 de março de 1997, que dispõe sobre a

Cristalina a legitimidade e o interesse do Ministério Público para a realização do controle em abstrato das cláusulas abusivas nas relações contratuais de consumo

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organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e estabelece normas gerais de aplicação das sanções administrativas previstas na Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, estamos convictos de que o controle administrativo de cláusulas abusivas nas relações contratuais de consumo pode ocorrer, também, pela atuação, em nível federal, do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), e em níveis estadual e municipal, pela atuação dos órgãos administrativos de proteção e defesa do consumidor (Procons), criados na forma da lei, os quais têm competência para iscalizar e aplicar sanções administrativas aos fornecedores de produtos ou serviços que, direta...

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