O Dano Social ao Direito do Trabalho

AutorValdete Souto Severo
Páginas183-198

Page 183

1. Introdução

Inúmeras são as situações em que o trabalhador, embora titular da demanda processual, está longe de ser o único lesado em razão da conduta adotada pela empresa. A Justiça do Trabalho é pródiga em manter "clientes especiais", que estão praticamente todos os dias na sala de audiências, representados por "prepostos oflciais", contratados para a exclusiva tarefa de "montar" e acompanhar processos trabalhistas.

São empresas que optam pelo não pagamento de horas extras, pelo pagamento de salários "por fora", pela contratação de trabalhadores sem reconhecimento de vínculo de emprego ou mesmo por tolerar condutas de flagrante assédio moral no ambiente de trabalho. Constituem uma minoria dentre os empregadores e, por isso mesmo, perpetram uma concorrência desleal que não prejudica apenas os trabalhadores que contratam, mas também as empresas com as quais concorrem no mercado.

A macrolesão é demonstrada pelas inúmeras ações em uma comarca ou Estado, a revelar a reiteração da conduta lesiva. A tutela jurisdicional perseguida por um número expressivo de trabalhadores não obscurece o fato de que certamente sequer cinquenta por cento dos proflssionais lesados pela conduta da empresa buscam seus direitos junto à Justiça do Trabalho.

O número expressivo de processos relatando realidade de contumaz e reiterada inobservância de direitos trabalhistas revela a prática de "dumping social". Ao desrespeitar o mínimo de direitos trabalhistas que a Constituição brasileira garante ao trabalhador, a empresa não apenas atinge a esfera patrimonial e pessoal daquele empregado, mas também compromete a própria ordem social. Atua em condições de desigualdade com as demais empresas do mesmo ramo, já que explora mão de obra sem arcar com o ônus daí decorrente, praticando concorrência desleal.

Em um país fundado sob a lógica capitalista, em que as pessoas sobrevivem daquilo que recebem pelo seu trabalho, atitudes com tais contornos se aflguram ofensivas à ordem axiológica estabelecida. Isso porque retiram do trabalhador, cuja mão de obra reverte em proveito do empreendimento, a segurança capaz de lhe permitir uma interação social minimamente programada. Ou seja, ao colocar o lucro do empreendimento acima da condição humana daqueles cuja força de trabalho

Page 184

justiflca e permite seu desenvolvimento como empresa, o empregador nega-lhes condição de vida digna.

Na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, realizada pelo TST, em 23.11.2007, da qual participaram operadores de todas as áreas do direito do trabalho, foi aprovado Enunciado dispondo:

DUMPING SOCIAL. DANO À SOCIEDADE. INDENIZAÇÃO SUPLEMENTAR. As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido "dumping social", motivando a necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi-la. O dano à sociedade conflgura ato ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites econômicos e sociais, nos exatos termos dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Encontra-se no art. 404, parágrafo único, do Código Civil, o fundamento de ordem positiva para impingir ao agressor contumaz uma indenização suplementar, como, aliás, já previam os arts. 652, d, e 832, § 1º, da CLT.

O Enunciado retrata uma realidade diante da qual os Juízes do Trabalho não querem mais calar. Uma realidade que em última medida compromete o projeto de sociedade instaurado em 1988.

2. O dano social desde a lógica de um Estado Constitucional

O compromisso das empresas com a manutenção do sistema capitalista passa pela observância das normas trabalhistas vigentes. Consequentemente, o desrespeito reiterado a essas normas implica quebra do pacto social instituído na Constituição brasileira de 1988. Implica comprometimento do próprio sistema capitalista de produção que adotamos.

Nessa esteira, a conflrmar o novo paradigma instaurado pela ordem constitucional de 1988, o art. 187 do Código Civil deflne como ilícito o ato praticado pelo "titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu flm econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". É nítida a opção legislativa, na esteira da ordem constitucional vigente, pelo paradigma da solidariedade, que determina uma nova visão acerca dos deveres de cada um e de todos, frente aos seus pares.

Não é por razão diversa que a Constituição de 1988 inicia seus artigos estabelecendo os fundamentos da República e, dentre eles, faz constar "os valores sociais do trabalho" e a livre-iniciativa. Vale dizer: viver em um país capitalista, e, portanto, ditado pela regra da livre-iniciativa, mas que se pretende democrático e de direito, implica a adoção de responsabilidade frente às lesões causadas pela simples assunção do risco ou pela deliberada negação de direitos fundamentais.

Os valores do trabalho são sociais na ordem constitucional vigente, porque não interessam apenas a quem trabalha. Importam à sociedade, que se pretende saudável e, portanto, imune a empregadores que tratam os seres humanos como meio para o atingimento do resultado lucro.

Page 185

O reconhecimento da solidariedade como novo paradigma exige também, em diferentes aspectos, uma conduta diferenciada e comprometida do Estado-Juiz. Ao assumir a magistratura, cada um dos Juízes do Trabalho do Brasil reaflrmou seu compromisso em cumprir a Constituição Federal. Essa é a missão do Juiz em um Estado constitucional. Cumprir a Constituição implica, também, coibir condutas que de modo reiterado negam a vigência de suas normas. Por isso mesmo, a veriflcação de existência de macro lesão exige um tratamento rigoroso e diferenciado, por parte do Poder Judiciário Trabalhista.

Em sentença proferida nos autos do processo n. 427/08-5, que tramita junto à comarca de Jundiaí, o Exmo. Dr. Juiz Jorge Luiz Souto Maior refere que:

Os direitos sociais são o fruto do compromisso flrmado pela humanidade para que se pudesse produzir, concretamente, justiça social dentro de uma sociedade capitalista. Esse compromisso em torno da eflcácia dos Direitos Sociais se institucionalizou em diversos documentos internacionais nos períodos pós-guerra, representando também, portanto, um pacto para a preservação da paz mundial. Sem justiça social não há paz, preconiza o preâmbulo da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Quebrar esse pacto signiflca, por conseguinte, um erro histórico, uma traição a nossos antepassados e também assumir uma atitude de descompromisso com relação às gerações futuras. Os Direitos Sociais (Direito do Trabalho e Direito da Seguridade Social, com inserção nas Constituições) constituem a fórmula criada para desenvolver o que se convencionou chamar de capitalismo social-mente responsável.

No mesmo processo, o Dr. Juiz Jorge Luiz Souto Maior também sublinha que:

As agressões ao Direito do Trabalho acabam atingindo uma grande quantidade de pessoas, sendo que destas agressões o empregador muitas vezes se vale para obter vantagem na concorrência econômica com relação a vários outros empregadores. Isto implica, portanto, dano a outros empregadores não identiflcados que, inadvertidamente, cumprem a legislação trabalhista, ou que, de certo modo, se vêem forçados a agir da mesma forma. Resultado: precarização completa das relações sociais, que se baseiam na lógica do capitalismo de produção. Óbvio que esta prática traduz-se como ‘dumping social’, que prejudica a toda a sociedade e óbvio, igualmente, que o aparato judiciário não será nunca suflciente para dar vazão às inúmeras demandas em que se busca, meramente, a recomposição da ordem jurídica na perspectiva individual, o que representa um desestímulo para o acesso à justiça e um incentivo ao descumprimento da ordem jurídica". Por isso, continua o admirável jurista, "as práticas reiteradas de agressões deliberadas e inescusáveis (ou seja, sem o possível perdão de uma carência econômica) aos direitos trabalhistas constituem grave dano de natureza social, uma ilegalidade que precisa de correção específlca, que, claro, se deve fazer da forma mais eflcaz possível, qual seja, por intermédio do reconhecimento da extensão dos poderes do juiz no que se refere ao provimento jurisdicional nas lides individuais em que

Page 186

se reconhece a ocorrência do dano em questão. A esta necessária ação do juiz, em defesa da autoridade da ordem jurídica, sequer se poderia opor com o argumento de que não lei que o permita agir desse modo, pois seria o mesmo que dizer que o direito nega-se a si mesmo, na medida em que o juiz, responsável pela sua defesa, não tem poderes para fazê-lo. Os poderes do juiz neste sentido, portanto, são o pressuposto da razão de sua própria existência.

Trata-se de resgatar nossa capacidade de indignação e nosso papel, enquanto Juízes, de construtores de uma realidade moldada às pretensões constitucionais que representam, é bom que se registre, um projeto de abertura democrática e de consolidação de um capitalismo comprometido, na linha do que Ralws identiflca como o ideal de justiça no âmbito de um liberalismo socialmente inclusivo.

3. O necessário resgate da nossa capacidade de indignação

É o espanto em relação às coisas da vida, desde as mais simples até as mais complexas, que impulsiona o homem a transformar o mundo a sua volta. O percurso histórico dos direitos fundamentais é prova do potencial humano de indignar-se e, com isso, modiflcar a realidade.

A experiência vivida no século passado, em especial com as duas grandes guerras...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT