O dano Social na Lógica de um estado democrático e Social de direito: os direitos Sociais na Constituição brasileira de 1988

AutorJorge Luiz Souto Maior/Ranúlio Mendes Moreira/Valdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí/Juiz do Trabalho do TRT da 18ª Região; Ex-juiz do trabalho do TRT da 3ª Região/Juíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas27-57

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As obrigações, no dizer de Washington de Barros Monteiro10, são como sombras que o direito projeta sobre a vasta superfície do mundo. Seguindo este raciocínio, todos os componentes das relações sociais têm obrigações, inclusive as empresas que detêm elevada e indeclinável responsabilidade social.

Desse modo, a todos, e, em especial, às empresas, justamente por conta do seu relevante papel social, aplica-se a máxima do neminem laedere, que corresponde ao dever de não lesar a ninguém e a não contrariar o direito de outrem.

Não obstante isso, não raras vezes, as normas legais e morais, especialmente aquelas que tutelam os direitos trabalhistas, são violadas por algumas empresas, causando danos aos trabalhadores e, com muita frequência, por via de arrastamento, em virtude do grau da ofensa ou da sua reiteração, também a toda a sociedade.

Não observadas as normas, de forma espontânea por aqueles a quem elas se dirigem, nasce para o Estado o direito-dever de agir para a manutenção da higidez do ordenamento jurídico e do património material e moral do cidadão e da sociedade.

As normas justrabalhistas são, neste contexto, obrigações que devem ser observadas espontaneamente pelos empregadores, mas como muitas vezes não são, torna-se necessária a intervenção do Estado para a manutenção da referida higidez do sistema jurídico-trabalhista e da relação entre capital e trabalho.

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A compreensão da necessidade de atuação do Estado-Juiz frente ao reiterado desrespeito aos direitos fundamentais dos trabalhadores pressupõe a compreensão de que esses direitos têm um significado especial no âmbito do nosso Estado e de que consolidá-los representa prestar homenagem à ordem constitucional instaurada em 1988.

Em âmbito mundial, os Direitos Sociais são o fruto do compromisso firmado pela humanidade para que se pudesse produzir, concretamente, justiça social dentro de uma sociedade capitalista.

Sabidamente, o Estado Liberal que se instaura no período imediatamente posterior à Revolução Francesa, privilegia a liberdade individual, em razão da necessidade de inclusão social e política da classe burguesa, bem mais identificada com a plebe do que com a nobreza ou o clero. E o faz exaltando os institutos da propriedade privada e do contrato. Com o passar do tempo, essa fórmula de organização estatal se revela ineficiente. Eric Hobsbawm refere que:

A empresa privada competitiva e sem restrições, em poder de firmas familiares administradas por seus proprietários e com abstenção do Estado, não foi meramente um ideal, ou mesmo uma realidade social, mas em certo estágio o modelo mais eficaz para o rápido crescimento económico das economias industriais. Hoje a contradição é dramática e óbvia. O capitalismo das grandes corporações entrelaçadas com grandes Estados permanece um sistema de apropriação privada, e seus problemas básicos se originam desse fato. Todavia, mesmo em suas operações comerciais usuais, tal sistema considera inteiramente irrelevante o liberalismo económico do século XIX, bem como desnecessária a classe que o constituiu, a burguesia clássica.11

O início da era moderna se caracteriza, pois, pela funcionalização do público pelo privado, ou seja, pela instauração de um Estado forte, mas não interventor, bem como pela funcionalização do privado pelo público, mediante o fortalecimento da burguesia que detinha o poder económico, através das regras de proteção contra o Estado12.

O século XVIII promove um reforço da dicotomia público (Estado) x privado (sociedade); política x economia; direito x moral. O direito público passa a ser visto como o ramo do direito que disciplina o Estado, sua estrutura e funcionamento, enquanto o direito privado é o ramo que disciplina a sociedade,

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as relações intersubjetivas (individualismo), o mundo económico (sob o signo da liberdade e a noção de propriedade como direito absoluto). O direito se torna estatal e burguês13.

Com o passar do tempo, as características inerentes ao sistema económico capitalista, retratadas pela exploração ostensiva da mão de obra até o seu esgotamento e pelo enfrentamento da primeira grande crise de produção, determinam a superação dessa clara dicotomia. O Estado é chamado a promover a igualdade substancial, imiscuindo-se no âmbito privado, à custa consciente de reduções do espaço de liberdade económica.

Facchini observa que "a limitação se dá principalmente a partir da concretização dos princípios constitucionais da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana", ou seja, "abandona-se a ética do individualismo pela ética da solidariedade; relativiza-se a tutela da autonomia da vontade e se acentua a prote-ção da dignidade da pessoa humana"14.

Nesse mesmo sentido, Ingo Sarlet refere, acerca dos direitos sociais, que:

O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e económicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração formal de liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já no decorrer do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social15.

Sem adentrar neste texto, as questões mais intricadas acerca das causa da incompleta superação das concepções liberais pelos pressupostos teóricos do Direito Social, o fato é que o reconhecimento de que os Direitos Sociais também constituem fundamento do Estado decorre, pois, da imposição das condições geradas pelo próprio sistema capitalista de produção. E firma-se como um compromisso do Estado e da Sociedade, que "divide" os âmbitos de atuação, em prol da criação de uma comunidade mais inclusiva, com condições mínimas de vida

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digna para todos. Trata-se de um compromisso em torno da eficácia dos Direitos Sociais, denominados como direitos fundamentais de segunda dimensão16.

O chamado Estado Social de Direito é, pois, fruto do século XX, embora gestado já no decorrer do século XIX, e, mesmo tendo surgido em contextos de baixa ou nenhuma garantia democrática, se consolida como expressão de Estados Democráticos de Direito17. Em outras palavras, a abertura democrática ocorrida em vários países ocidentais na segunda metade do século XX é decorrência, também, dessa nova concepção de Estado, como ente que detém deveres de inclusão social e de promoção de vida digna a todos os seus cidadãos.

Noberto Bobbio, reconhecendo a imbricação entre democracia e Estado Social, trata da crise da chamada pós-modernidade, alertando que o ataque que os neoliberatistas fazem ao Estado Social revela desconhecimento histórico. A consolidação do Estado Social constitui, de acordo com o jurista italiano, um compromisso histórico entre a propriedade privada como direito absoluto, própria do Estado Liberal, e o mundo do trabalho organizado. Um compromisso necessário para salvar o sistema capitalista, do qual "nasce direta ou indiretamente a democracia moderna".18

Esse compromisso se institucionalizou em diversos documentos internacionais nos períodos pós-guerra, representando, portanto, um pacto para a preservação da paz mundial. Sem justiça social não há paz, preconiza o preâmbulo da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Quebrar esse pacto significa, por conse-

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guinte, um erro histórico, uma traição a nossos antepassados. Implica assumir uma atitude de descompromisso com relação às gerações futuras.

É aqui que se insere a noção de função social, que em realidade significa trazer para o direito privado "algo até então tido por exclusivo do direito público: o condicionamento do poder a uma finalidade".19

A propriedade, instituto caro ao Estado moderno, passa a condicionar-se a uma função social que "impõe ao proprietário — ou a quem detém o poder de controle, na empresa — o dever de exercê-la em benefício de outrem e não, apenas, de não a exercer em prejuízo de outrem", de modo a atuar como "fonte de imposição de comportamentos positivos" ao detentor do poder que deflui da propriedade20.

Eros Grau observa que a propriedade-função social que interessa à ordem económica se subordina "aos ditames da justiça social", com a missão de "transformar esse mesmo exercício em instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna"21.

Os Direitos Sociais (Direito do Trabalho e Direito da Seguridade Social, com inserção nas Constituições) constituem a fórmula criada para desenvolver o que se convencionou chamar de capitalismo socialmente responsável. Um modo, portanto, de manter vigente o sistema, diante de suas crises cíclicas e de sua clara tendência autofágica.

Sob o ângulo exclusivo do positivismo jurídico pátrio, é possível constatar que os Direitos Sociais, por via reflexa, atingem outras esferas da vida em sociedade: o meio ambiente; a infância; a educação; a habitação; a alimentação; a saúde; a assistência aos necessitados; o lazer (art. 6Q, da Constituição brasileira), como forma de fazer valer o direito à vida na sua concepção mais ampla.

Neste sentido, até mesmo valores que são normalmente indicados como direitos liberais por excelência (a liberdade, a igualdade e a propriedade) são atingidos pela formação de um Direito Social e o seu consequente Estado Social.

No Brasil, esse compromisso do sistema capitalista em contribuir para a formação de uma sociedade democrática e inclusiva está retratado não apenas no preâmbulo do texto constitucional22, mas também na clara opção pelo

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reconhecimento expresso do caráter fundante dos Direitos Sociais. Os "valores sociais do trabalho" aparecem como fundamentos da República já no art. 1Q da Constituição de 1988.

Os Direitos Sociais, conforme definição do art. 6Q e aos quais se integrou a especificação dos direitos de natureza trabalhista (arts. 1° a 11Q), são inseridos no título "Dos Direitos e Garantias...

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