Condenação por Dano à Moral Difusa como Forma de Prevenir e Punir Agressões ao Meio Ambiente do Trabalho

AutorJoão Batista Martins César - Guilherme Aparecido Bassi de Melo
Páginas122-145

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1. Prolegômenos

O Brasil, sem sombra de dúvida, está entre os cinco primeiros países campeões em acidentes de trabalho. Os dados oficiais, que possivelmente pecam por serem muito comedidos, relataram a morte de 2.717 (dois mil, setecentos e dezessete) trabalhadores no ano de 2012 no Brasil.

Não bastante o número específico de mortes, constatou que 711.164 (setecentos e onze mil, cento e sessenta e quadro) trabalhadores se acidentaram ao desenvolver suas funções no ano de 2011. Atividades industriais ligadas à produção de alimentos e bebidas e à construção civil constataram o maior índice de acidentes. No que toca aos serviços, por sua vez, o setor automobilístico foi o campeão.1

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A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por seu turno, divulgou que, anualmente, dois milhões e dois mil trabalhadores morrem em decorrência de enfermidades relacionadas ao trabalho no mundo. No que diz respeito aos acidentes de trabalho propriamente dito, as mortes chegam ao montante de 321.000 (trezentos e vinte e um mil) trabalhadores por ano. Por fim, 160.000.000 (cento e sessenta milhões) de trabalhadores sofrem doenças não letais relacionadas ao trabalho, enquanto que ocorrem 317.000.000 (trezentos e dezessete milhões) de acidentes laborais não mortais por ano.2

Os dados são estarrecedores e, na esmagadora maioria das vezes, relacionam-se à constatação de um meio ambiente do trabalho que não respeita mínimas condições de saúde, segurança e higiene. Com efeito, a atuação por longos anos na Justiça do Trabalho demonstra que esse número inaceitável de acidentes poderia ser evitado se se adotassem as mais simples providências.

São muito comuns, para mencionar um exemplo bastante corriqueiro, os casos em que trabalhadores têm seus membros superiores totalmente decepados por conta da ausência de grades de proteção cuja única finalidade é impedir que suas mãos ou seus braços entrem em contato com lâminas cortantes e dilaceradoras. Não é raro também que, questionado e punido em Juízo, os contumazes agressores das normas trabalhistas evidenciem que o valor das mencionadas grades não ultrapassa, já soldadas, poucas dezenas de reais.

Lugar comum nos acidentes de trabalho também diz respeito à grande quantidade de trabalhadores que é eletrocutada simplesmente porque os fios elétricos não estavam devidamente encapados à época do manuseio. Nesse caso, como é público e notório, o gasto para a adequação do meio ambiente de trabalho é irrisório.

A verdade é que não se necessita ir muito adiante para perceber que, quase sempre, os valores que devem ser despendidos são claramente pequenos. Nesse ponto, algo deve ser esclarecido: mesmo que os valores para implementação das medidas de segurança, saúde e higiene sejam elevados, nunca, sob nenhuma hipótese, o empregador poderá se esquivar de sua obrigação de proteger a vida, a saúde e a segurança dos trabalhadores.

É partindo dessas considerações evidentemente triviais, que não desafiam o senso de compreensão das mais alienadas pessoas, que se entende pertinente a condenação dos contumazes ofensores da ordem jurídica trabalhista por dano à moral difusa quando os trabalhadores, sempre hipossuficientes, são aviltados em sua dignidade por conta da ausência de condições mínimas para a preservação de sua vida, saúde e segurança.

Não se deve olvidar o fato de que, quando aplicadas, as condenações por dano à moral difusa têm seus valores quantificados muito aquém daquilo que se espera nessas situações de incontestável gravidade. Em regra, mencionados valores não chegam a ‘incomodar’ as grandes empresas que, como qualquer pesquisa jurisprudencial demonstra, teimam em descumprir aquilo que o ordenamento prevê por diversas oportunidades consecutivas.

É provável que a definição do quantum condenatório num patamar bastante pífio tem necessária correlação com a falta de compreensão acerca da real finalidade da condenação por dano à moral difusa, mormente quando descumpridas regras elementares de proteção à vida, saúde e segurança dos trabalhadores.

Assim é que, para se chegar à delimitação e elaboração dos contornos dessa condenação, primeiramente deve-se perquirir acerca da existência e da extensão do bem jurídico tutelado, qual

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seja: a moral difusa. Nesses termos, desloca-se a clássica estrutura do estudo para o bem protegido, e não para o dano propriamente dito, cuja definição não pode ultrapassar aquela que diz respeito à lesão a um bem juridicamente tutelado.

2. A constituição federal de 1988 e o surgimento de novos bens jurídicos: reconhecimento do patrimônio imaterial coletivo a partir de uma ordem objetiva de valores

As bombas voadoras lançadas contra a Inglaterra na última guerra foram uma atrocidade. Hiroshima foi uma atrocidade. A atual "era do terror" é uma forma atroz de desumanidade. Nenhum governo pode afirmar que seu povo sanciona tal brutalidade e é para com a humanidade como um todo que qualquer governo tem o dever de desistir de tal terrorismo. Esta é a primeira de todas as obrigações para com a humanidade.3

Herbert Wallace Schneider escreveu esse manifesto em 1960, muito embora pudesse se afirmar que se trata de lição proferida em 2013. É mérito pouco comum entre os estudiosos descrever com prudência os acontecimentos de seu tempo e projetá-los para o futuro com precisão e acerto. Isso facilita o trabalho de quem escreve posteriormente sobre o mesmo tema. E essa sua lição revela de modo bastante lúcido em que contexto a Constituição Federal de 1988 foi concebida.

O texto constitucional, em seu art. 1º, caput e incisos, consagra um rol de valores objetivamente instituídos pelo legislador constituinte que, de certa maneira, traduz verdadeiro manifesto contra as atrocidades verificadas no breve século XX.4 Trata-se dos pressupostos para a formatação do Estado brasileiro. Não existe dispositivo materialmente constitucional que não decorra diretamente de um dos seguintes fundamentos: democracia, soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político.

Em primeiro lugar, esses fundamentos traduzem valores. E, como valores, são possibilidades ou modos de ser da sociedade, implementados por uma concepção aberta de Constituição. Não são objetivos a serem buscados, tais como os previstos pelo art. 3º do texto constitucional. São, repita-se, pressupostos de realização de todo o ordenamento jurídico.

Sendo assim, parte-se da premissa de que o Estado brasileiro criado em 5 de outubro de 1988, instituiu, de plano, um núcleo valorativo a partir do qual todos os direitos previstos pelo ordenamento jurídico podem ser realizados. Isso implica afirmar que os Fundamentos da República Federativa do Brasil constituem verdadeira condição de realização da ordem jurídica.

Tem-se, aqui, um primeiro momento de análise do art. 1º da Constituição Federal, base para a concepção do patrimônio imaterial coletivo ou da moral difusa.

O segundo momento, por sua vez, diz respeito à extensão de sentido dos referidos fundamentos. Agora, exige-se a necessidade de complementação e clarificação de conteúdo de cada um dos pilares valorativos previstos no mencionado dispositivo constitucional.

Essa complementação, imprescindível para que se desvende o significado que esses fundamentos possuem na ordem jurídica brasileira, apenas pode ser alcançada por intermédio da interação dos objetivos da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3º da Constituição Federal com os direitos fundamentais.

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O resultado dessa conglobação dinâmica, aberta e dialética chama-se patrimônio imaterial coletivo ou moral difusa. Por sua vez, esse patrimônio é constituído pelos bens jurídicos de natureza imaterial pertencentes à sociedade, de modo absolutamente indivisível e transindividual.

Nesse passo, é possível conceber a democracia, que caracteriza o Estado de Direito brasileiro, como a possibilidade de participação popular, diretamente ou por representação, na tomada de rumos e definição de finalidades da nação. Essa participação, salienta-se, ocorre de modo que cada indivíduo será considerado de maneira igual, sem que um cidadão, por sua condição social ou econômica, seja privilegiado em detrimento de outro.

Evidente, no que toca à democracia, a existência da primeira cláusula de repúdio às barbáries ocorridas nos últimos dois séculos, em que o povo se submetia aos desígnios de uma diminuta parcela da população, haja vista a consideração diferenciada e detrimentosa de sua condição como agrupamento social em que todos os indivíduos devem ser tratados de maneira igual.

No que concerne à soberania, pode-se afirmar que sua extensão de conteúdo permite a afirmação de que a República Federativa do Brasil não reconhece, no nível externo, nações que não estejam em situação de igualdade jurídica se reciprocamente consideradas.

Assim, reconhece-se ao Brasil autonomia para estabelecer suas próprias regras jurídicas, não se submetendo a imposições de ordem externa, pois que cada Estado possui condições de se autogovernar e, reconhecendo...

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