Da responsabilidade solidária da cadeia econômica pela exploração do trabalho infantil

AutorRaymundo Lima Ribeiro Júnior - Lys Sobral Cardoso
CargoProcurador do Trabalho. Lotado na Procuradoria Regional do Trabalho da 20ª Região - Analista processual do MPU. Lotada na Procuradoria Regional do Trabalho da 20ª Região
Páginas285-306

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I Introdução

No presente artigo, pretende-se fundamentar a responsabilidade solidária da cadeia produtiva pela observância da legislação trabalhista, bem como pela reparação das lesões contra a coletividade e as crianças e adolescentes em decorrência da exploração do trabalho infantil.

De início, saliente-se que a solidariedade passiva dos integrantes da cadeia produtiva dependerá necessariamente da análise do caso concreto, pois, a princípio, todos os integrantes da cadeia podem ser responsabilizados pelos ilícitos praticados durante a produção do bem ou prestação do serviço1.

Assim, partiu-se do conceito de cadeia produtiva, segundo o qual "é um conjunto de etapas consecutivas, ao longo das quais os diversos insu-mos sofrem algum tipo de transformação, até a constituição de um produto inal (bem ou serviço) e sua colocação no mercado. Trata-se, portanto, de uma sucessão de operações (ou de estágios técnicos de produção e de distribuição) integradas, realizadas por diversas unidades interligadas como uma corrente, desde a extração e manuseio da matéria-prima até a distribuição do produto"2.

Não se cogita, a princípio, da adoção do conceito amplo de cadeia produtiva, como o faz a Association Française de Normalisation (AFNOR), que "adota um conceito mais amplo, considerando a cadeia produtiva como um encadeamento de modiicações da matéria-prima, com inalidade eco-nômica, que inclui desde a exploração dessa matéria-prima, em seu meio ambiente natural, até o seu retorno à natureza, passando pelos circuitos produtivos, de consumo, de recuperação, tratamento e eliminação de eluen-tes e resíduos sólidos"3.

Para a citada associação, a cadeia econômica "Compreende, portanto, os setores de fornecimento de serviços e insumos, máquinas e

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equipamentos, bem como os setores de produção, processamento, arma-zenamento, distribuição e comercialização (atacado e varejo), serviços de apoio (assistência técnica, crédito, etc.), além de todo o aparato tecnológico e institucional legal, normativo e regulatório - até os consumidores inais de produtos e subprodutos da cadeia. Assim, envolve o conjunto de agentes econômicos ligados à produção, distribuição e consumo de determinado bem ou serviço, e as relações que se estabelecem entre eles"4.

Há casos em que o comerciante, que vende o produto fabricado com utilização do trabalho infantil, é responsável direto ou, no mínimo, solidário pelas lesões trabalhistas. Veja-se o caso das lojas de departamento que comercializam roupas produzidas por oicinas que exploram trabalho infantil, sendo muitas vezes a proprietária da marca. Sem pretender entrar na questão da ilicitude da terceirização, a responsabilização direta do comerciante ou, no mínimo, solidária com a oicina é evidente.

Diferente, a depender do caso concreto, uma vez não conigurado grupo econômico, a situação da revendedora de veículos automotores que apenas revende os automóveis produzidos pelas fábricas que utilizam o aço das siderúrgicas, que, por sua vez, produzem o aço a partir do ferro-gusa, cuja matéria-prima é o carvão vegetal das carvoarias, sendo que estas últimas utilizam mão de obra de crianças e adolescentes.

Nesta última situação, a princípio, somente se vislumbra a respon-sabilidade solidária do carvoeiro até a indústria siderúrgica, haja vista o distanciamento da participação da revendedora e da fábrica de veículos na utilização da matéria-prima carvão vegetal.

Por im, ressalte-se que este estudo não tem a pretensão de analisar o fenômeno da terceirização ilícita na cadeia produtiva e todas as consequên-cias jurídicas que ela provoca, sob pena de generalização da abordagem, conquanto a terceirização ilícita também descambe na solidariedade de todos os responsáveis pela violação do direito.

II Fundamentos jurídicos

A solidariedade passiva ou responsabilidade solidária da cadeia produ-tiva se sustenta por variados fundamentos jurídicos que se complementam.

De início, é por demais sabido que, para ins trabalhistas, não se exigem maiores formalidades para a caracterização do grupo econômico, seja urbano, seja rural. O espírito do § 2º do art. 2º da CLT, bem como do § 2º

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do art. 3º da Lei n. 5.889/73 (Lei do Trabalho Rural), é justamente aumentar a proteção trabalhista, possuindo amplitude muito maior do que o previsto, por exemplo, na legislação empresarial, como bem leciona Alice Monteiro de Barros, litteris:

O grupo de que trata a CLT possui amplitude muito maior do que o previsto na legislação comercial [...]. No Direito do Trabalho, o grupo pode ser composto de empresas e o controle poderá ser exercido por pessoas físicas, já que a tônica do grupo está no poder que o comanda e não na natureza da pessoa que detenha a sua titularidade.5

O mesmo raciocínio é acompanhado pela jurisprudência, como se observa do seguinte aresto:

Grupo econômico. Não somente as empresas que se encontram subordinadas a uma única outra (holding) são passíveis de formar a igura do grupo econô-mico, porquanto permite tanto o direito comercial quanto o direito econômico e o direito empresarial a formação do grupo por coordenação, ou seja, na linha horizontal. A solidariedade prevista no art. 2º, § 2º, consolidado, visa a resguardar o efetivo recebimento dos direitos sociais por parte do empregado, dada a natureza alimentar dos mesmos, independente de maiores formalidades. (TRT/SP-49666200290202001-RO-Ac. 9ª T. 20030132376 - Relª Juíza Jane Granzoto Torres da Silva. DOE 11.4.2003. Revista Synthesis, 37, p. 242, 2003. No mesmo sentido: TRT - 3ª Região - RO-20823/00 - 4ª Turma - Rel.: Juiz Júlio Bernardo do Carmo - DJMG 17.2.2001, p. 13)

É certo, porém, que poderão surgir vozes na defesa da não formação de grupo econômico trabalhista em casos concretos de cadeias produtivas. Para tais vozes, socorre-se da Constituição da República e da aplicação do diálogo das fontes ou mesmo da integração analógica como método integrativo do direito (art. 8º da CLT6 e art. 4º da LICC7), com base nas quais a responsabilidade solidária da cadeia econômica para ins trabalhistas se justiica amplamente.

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Outros ramos do direito avançaram em matéria de solidariedade da cadeia econômica, além da responsabilidade objetiva e proteção ao hipossuiciente, e o Direito do Trabalho, com maior razão ainda, eis que o ramo mais protetivo e social de todos, sofre positivamente os efeitos dessa mudança.

Nessa linha, preceitua o caput do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor.

Tal dispositivo legal, noutras palavras, impõe a solidariedade entre TODOS os componentes da cadeia produtiva pelos ilícitos e danos causados ao consu-midor. Ora, se nas relações de consumo o consumidor goza desse espectro protetivo (solidariedade), com maior razão na esfera trabalhista, em que o trabalhador se encontra, via de regra, mais vulnerável que o consumidor.

No sistema jurídico brasileiro, a tutela dos direitos coletivos, em sen-tido lato, dá-se mediante a articulação de várias leis, dentre elas, a Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e a Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).

Afastando quaisquer dúvidas sobre a incidência do art. 12 do CDC ao Direito do Trabalho, o art. 17, do mesmo diploma jurídico, estabelece que são equiparados a consumidor todos os que sejam vítimas de danos decorrentes da cadeia produtiva.

Ora, aqueles que integram a cadeia produtiva, de algum modo se beneiciando com a atividade desempenhada, ou seja, extraindo os bônus, devem arcar com os ônus correspondentes, especialmente em matéria de proteção dos direitos humanos e fundamentais, sendo que trabalhadores também são gente, logo, igualmente destinatários da proteção dispensada aos consumidores e demais vítimas da cadeia produtiva.

A rigor, a regra também tem previsão no Código Civil em vigor, na parte relativa à responsabilização civil, especiicamente no art. 942 e parágrafo único.

Se a responsabilidade da cadeia econômica se impõe para a tutela inibitória de proteção dos direitos humanos e fundamentais, ou seja, para impedir a prática, a continuação ou a repetição do ilícito, com igual razão se aplica à reparação dos danos já causados, seja os de natureza difusa, seja as reparações aos trabalhadores precoces (crianças e adolescentes) individualmente prejudicados.

Aprofundando o tema na doutrina, os autores consumeristas classiicam os fornecedores sujeitos a participar do polo passivo da relação jurídica de responsabilidade civil nas seguintes categorias:

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  1. fornecedor real, envolvendo o fabricante, o produtor e o construtor;

  2. fornecedor aparente, que compreende o detentor do nome, marca ou signo aposto no produto inal;

  3. fornecedor presumido, abrangendo o importador de produto indus-trializado ou in natura e o comerciante de produto anônimo.8

    É de se ressaltar que esses conceitos devem se aplicar também ao Direito do Trabalho. Tanto o Direito do Trabalho quanto o do Consumidor surgiram e têm como ratio a proteção da parte mais vulnerável na relação jurídica.

    Nesse sentido, as palavras do professor Leonardo de Medeiros Garcia:

    Não é necessário muito esforço para perceber que a ratio da legislação trabalhista é a mesma da legislação do consumidor, já que em ambas há a intenção de se proteger um dos polos da relação: na relação de consumo, o consumidor; e, na relação trabalhista, o trabalhador. Não é à toa que, em ambos os sistemas, há o princípio da interpretação mais favorável a uma das partes: consumidor e trabalhador; em detrimento do fornecedor e do empregador, polos mais fortes da relação.

    Daí porque há de se fazer o dito "diálogo das fontes" (dialogue de sources do direito francês), na terminologia da professora Cláudia Lima Marques9.

    A propósito, interessantes as considerações...

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