A Prevalência da Justiça Estatal e a Importância do Fenômeno Preclusivo

AutorFernando Rubin
CargoAdvogado (RS)
Páginas31-45

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Introdução

A caso concluíssemos pela desnecessidade, ou subsidiariedade, do modelo jurisdicional estatal como forma de resolução de conflitos, forçosamente haveríamos de reconhecer uma perda significativa de relevância na abordagem dos centrais institutos do processo civil.

Por isso, importante que, para traçarmos algumas linhas fulcrais a respeito da aplicação do fenômeno preclusivo, destaquemos previamente a prevalência da ‘justiça judicial’ diante das vias alternativas extrajudiciais de resolução de conflitos.

Tal é o mote do presente ensaio, em que serão, na sequência, versadas relevantes questões envolvendo o fenômeno preclusivo - com resgate de algumas passagens históricas e, principal-mente, estabelecimento da sua necessidade contemporânea, na sistemática processual, como o grande limitador para a atividade das partes1.

1. O processo como instrumento de jurisdição do Estado: a prevalência da "justiça judicial" e as vias alternativas de resolução dos conflitos

O processo foi, e continua sendo, o instrumento encontrado pelo Estado para dizer e realizar o direito (portanto: instrumento de jurisdição), mas tão somente quando há necessidade para tanto - momento em que é formalmente acionado por qualquer cidadão (jurisdicionado)2.

Desde o momento histórico em que passou a ser vedada a resolução dos conflitos pelas próprias forças dos combatentes - proibição da justiça privada (justiça de mão própria ou autotutela3, a ponto de convertê-la em tipo penal4), se não de maneira absoluta, a partir do desenvolvimento de outras formas extrajudiciais de composição5, o Estado impõe que qualquer lesão ou mesmo ameaça a direito seja dirimida pela via do processo, perante um agente político investido (o juiz)6. Na nossa Lei Maior, tal exigência está consolidada expressamente no art. 5°, XXXV.

E mesmo que haja vozes pleiteando a instauração de uma geral nova maneira de solução de conflitos e interesses dentro da sociedade, pregando então o extermínio ou, ao menos, a drástica redução da utilização do instrumento processual estatal (a ‘justiça judicial’, assim chamada por Devis Echandía)7, parece mais adequado falar-se em ajustes no sistema, do que propriamente na sua completa substituição por um outro modelo extrajudicial - o que não significa deixar de se pensar em possibilidades alternativas secundárias, como já vem se sucedendo8; mas sempre viabilizando que o cidadão recorra ao Poder Judiciário para, mediante o devido processo legal, buscar reparação de dano eventualmente corporificado9.

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Isso, ao menos, enquanto vivermos em um Estado de Direito, em que um dos seus pilares encontra forte e legítima expressão na figura do Estado-juiz e nos instrumentos institucionalizados pelos quais o agente político diz e realiza o direito10.

Se o Estado deixasse de dispor da via principal de resolução dos litígios, estar-se-ia corporificando possivelmente, comenta Dinamarco, a renúncia à própria subsistência da organização política da sociedade, sendo inconcebível a sociedade política sem o processo e a jurisdição11. Ainda neste diapasão, sugere Moniz de Aragão que a opção pelo processo estatal, nada obstante a necessidade de estímulo do emprego de fórmulas alternativas de resolver disputas, é irreversível, cabendo, pois, intensificar-se a busca por uma renovação do atual modelo "burocrático-formalista", a fim de melhor se atender os anseios de uma sociedade cada vez maior, onde brotam conflitos paulatinamente mais complexos12.

Sobre a questão da prevalência do sistema processual institucionalizado pelo Estado, Owen Fiss re-vela inicialmente um importante aspecto negativo das soluções alternativas de controvérsias (as chamadas ADR no sistema americano - Alternative Dispute Resolution): é que os acordos produzidos nesses modelos extrajudiciais podem representar risco a uma maior efetivação da atuação do poder jurisdicional - ao qual caberia julgar a fundo as controvérsias, lavrando justa decisão de mérito, notadamente naqueles feitos em que o caráter prospectivo é maior, servindo o julgado como eventual paradigma para outros casos semelhantes13.

Embora a realidade americana seja substancialmente diferente da brasileira (na Common Law, em média, menos de 10% dos ca- sos chega a julgamento de mérito, terminando em acordo), adequada a ponderação seguinte de Fiss no sentido de que, dadas as desigualdades e disparidades que permeiam a sociedade e a necessidade de um poder tão grande quanto o estatal para preencher a lacuna entre os nossos ideais e as reais condições de nossa vida social, a jurisdição estatal continua sendo o melhor meio para obter-se êxito nessa aspiração. E completa o jurista norte-americano: "Ela (a jurisdição estatal) é mais apta a fazer justiça do que a convenção, a mediação, a arbitragem, o acordo, o rent-a-judge, os procedimentos de instrução e julgamento com trâmite reduzido, as discussões comunitárias ou outras invenções da ADR, precisamente porque investe em poderes estatais agentes que atuam como quem recebeu confiança do público, sendo altamente identificáveis e comprometidos com a razão. Atualmente, não precisamos de um novo ataque a essa forma de Poder Público, seja ele proveniente do centro ou da periferia, inspirado na religião ou na política, mas de uma apreciação renovada de todas as suas promessas. (...) Seria um erro concluir que devemos renunciar ao poder jurisdicional, como se tivéssemos outra maneira de proteger nossos valores públicos e pôr em xeque os poderes políticos do Estado intervencionalista"14.

2. Processo, procedimento e relação jurídica processual

A palavra ‘processo’ é de emprego relativamente moderno, sendo antes usada a de juicio que tem sua origem no direito romano e vem de iudicare, declarar o direito (sendo, em face desta sua origem latina, sinônimo de "sentença", inicialmente)15. Mais especificamente o termo processus foi introduzido tão somente no século XIII, por canonistas16; tendo, no entanto, a passagem definitiva do significado encontrado terreno favorável na Europa central dos séculos XVII e XVIII, sobretudo na Alemanha - a partir de modificação na forma de se conceber o fenômeno: mudança de uma "ordem isonômica" em que estabelecido o ordo iudiciarius (baseado na lógica argumentativa, com destaque ao debate/contraditório firmado entre os contendores) para uma "ordem assimétrica" do então incipiente processo em sentido moderno (baseado na lógica racional e formal, com destaque à posição bem definida do Estadojuiz no comando do feito).

Explica Picardi que essa passagem definitiva de significado "não se resolve tão-somente em um problema terminológico. Trata-se, antes de tudo, de um indício através do qual é dado entrever uma mudança radical no modo mesmo de conceber o fenômeno processual"17.

Já o grande marco, alhures citado, para a "revolução científica no estudo do processo", deu-se pelas pesquisas desenvolvidas por juristas alemães na segunda metade do século XIX, especialmente cabendo destaque a Oskar Bülow18. Com sua obra notável de 1868, cujo título remetia a seu interesse no estudo crítico da teoria das exceções (mol-dada desde o direito romano) e na decorrente fixação definitiva do devido espaço dos pressupostos processuais, tratou de distanciar as noções de procedimento e de processo, trazendo à luz a concepção da existência de uma relação jurídica processual19, de direito público, já que constava a figura imperativa do Estado-juiz - condutor do processo e, por isso, detentor de poderes para enfrentar oficiosamente matérias de interesse suprapartes.

Daí em diante, gradualmente, bem se consolidou que o processo

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é composto não só pelo caminho legal (sequência lógica/encadeada e válida de atos judiciais previstos em lei), a ser desenvolvido para se atingir sentença (ato judicial final) que dirima o conflito entre as partes litigantes - aspecto formal, externo do processo ("exterioridade"): procedimento; mas também pela relação jurídica estabelecida pelo juiz com as partes e entre essas - aspecto material, interno do processo ("essência"): relação jurídica processual20.

Nessa seara, merece referência expressa James Goldschmidt, por ressaltar as grandes diferenças entre a relação jurídica de direito material para a relação jurídica de direito processual (que melhor entendia ser denominada de "situação jurídica"21) - precipuamente a configuração no processo de relações complexas, múltiplas, nos diferentes estágios da demanda; e por introduzir na ciência processual moderna a noção de "ônus", em oposição à de "deveres" ("obrigações"), por discorrer com razão que às partes "convêm" (e não categoricamente "devem") se manifestar no feito em busca de melhor sorte, sob pena de se seguir uma desvantagem processual, que em última instância, representaria uma sentença contrária a seus interesses.

Muitos foram os juristas que criticaram a tese de Goldschmidt, entendendo que há casos nos quais se corporificam verdadeiros deveres das partes no processo. Embora, a nosso ver, não seja a hipótese de se colocar por terra a concepção de Goldschmidt, até porque parecem restar como exceções à regra, certo que em algumas...

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