Críticas ao modelo de arbitragem no Brasil

AutorJúlio César Ballerini Silva
CargoMagistrado e professor de graduação e pós-graduação do creupi mestre em processo civil pela puc-campinas, especialista em direito privado pela USP

I – NECESSIDADE DE UMA ANÁLISE INTERDISCIPLINAR DO INSTITUTO

Observa-se, atualmente, uma tendência entre os juristas de entenderem o instituto da arbitragem como uma das soluções mais eficazes para o fenômeno denominado "crise do Poder Judiciário", que, aliás, não é exclusividade brasileira, sendo raro encontrar-se vozes divergentes a esse respeito (num primeiro momento o instituto se apresenta como uma forma rápida, e politicamente correta, sob uma ótica neoliberal, de solução de conflitos).

Mas é importante que se destaque, que tal como demonstrado pelo cientista Edgar Morin, na sua célebre análise do paradigma da complexidade, o pensamento científico não mais pode prescindir da perquirição interdisciplinar na busca de soluções aos problemas a serem enfrentados, posto que inexistiria campo de estudos completamente estanque das demais áreas do pensamento.

Isso porque a ciência deixou de ser um conhecimento absoluto, calcado, apenas e tão somente na verificação empírica, de leis e postulados sem exceção, eis que, em qualquer campo de análise, de se analisar o feixe de fatores a ele relacionados, cujos reflexos poderão influenciar no resultado final.

Daí a necessidade, até mesmo científica, sob tal ótica, de uma análise crítica do instituto da arbitragem no Brasil, forma técnica de resolução de conflitos (e seria um equívoco tratá-la como algo novo na história processual), que tem seus novos contornos no ordenamento jurídico pátrio, conferido pela Lei nº 9.307/96, mas que trará sérios problemas sócio-políticos, econômicos e jurídicos, se aceita sem sérias reservas em nossa ordem jurídica.

Tal análise crítica, portanto, deve se socorrer de questionamentos e princípios informativos das outras ciências humanas, sobretudo a sociologia, a economia e a ciência política, posto que, conforme resta mais do que cediço, o direito é uma disciplina que se relaciona diretamente ao exercício do poder, fenômeno influenciado pelas relações sociais e de capital.

II – ASPECTOS SOCIOLÓGICOS, POLÍTICOS E ECONÔMICOS RELACIONADOS AO TEMA

Não são poucos, aliás, os que definem o direito como uma técnica de controle social, dado ao seu caráter normativo e sancionador da conduta humana, não se tendo, portanto, malgrado o dissídio a respeito do objeto da ciência do direito (não se desconhecem os postulados Kelsenianos referentes à desnecessidade de se estudar o conteúdo de uma norma jurídica, que bastaria por si só, desde que tivesse obtido sua validade em decorrência de outra norma), como analisar o instituto sem se referir àquilo que com o mesmo se relaciona, embora objeto de estudo de outras disciplinas.

Essas mesmas relações sociais e de capital mencionadas acima, são muito complexas, derivando de vários fatores históricos e culturais (antropológicos), que não podem mais ser ignorados. À guisa de exemplificação, de se ponderar, no caso específico da arbitragem, não se poderá desconhecer fatores como a flexibilidade do conceito de soberania que vem sendo imposto, em sede macrofatorial, pelo FMI e outros organismos internacionais de crédito, aos governos de países da América Latina e do Sudeste Asiático (não é desconhecida a Carta de Intenções denominada "Documento Técnico nº 319" firmada entre esses países e o Bird, em meados de 2.000, no sentido de flexibilização dos Poderes Judiciários nacionais).

E tal ocorre porque a aludida imposição somente se desenvolve porque os países destas regiões (e não se nega seu caráter globalizado) interessam aos grandes conglomerados econômicos, que investem maciçamente nas eleições dos governos dos países globalizantes, enquanto mercados consumidores, e apenas como tal.

Caso assim não se entendesse, não haveria como explicar a quase total exclusão do continente africano do mercado mundial, inclusive com referências ao perdão de suas dívidas, e o total abandono em crises como a de Serra Leoa (país onde se verifica a total fragmentação política com uma guerra cruel perpetrada por guerrilheiros adolescentes que usam crianças como escudo, praticando inúmeros abusos contra a população civil).

Consideração, aliás, que se faz necessária porque quando a guerra eclodiu no coração da Europa, portanto em importante centro consumidor potencial, no conflito entre sérvios e bósnios, quando nem metade das atrocidades cometidas pelos guerrilheiros de Foday Sankoh se desenvolvia, os Estados Unidos e a ONU já se lançavam numa cruzada para que se firmasse um acordo de paz, inclusive com equipamentos e efetivos militares para imposição do acordo.

Não se nega, obviamente, que em tempos de globalização, o conceito de soberania deva ser repensado, pois existem inúmeras forças econômicas servindo de sustentáculo ao movimento neoliberal (de nada adiantaria, v.g., pretender-se ignorar as disputas fiscais e a busca por tecnologia de ponta em áreas estratégicas como a telefonia e energia elétrica), mas um mínimo de coerência deve ser mantido até para que se confira alguma dignidade aos excluídos, pessoas que ficarão à margem do processo de globalização, justamente por não ostentarem a condição de consumidores exigida pela nova ordem mundial.

Dentro desta ótica, e partindo da célebre tríplice distinção doutrinária em razão da qual a jurisdição seria poder, função e atividade, sendo em seu facetado aspecto de poder um reflexo dessa soberania do Estado, de se tomar extremo cuidado com tentativas de flexibilização de seu conceito posto que, verificando-se a sua atomização, com criação de ordens judiciárias paralelas, será cada vez mais difícil conferir efetividade aos direitos fundamentais dos cidadãos (cláusulas pétreas dentro do estabelecido pela norma contida no artigo 60, § 4º, inciso IV da Carta Política de 05.10.1988).

E não se pretende negar o aspecto ideológico da questão, posto que, como firmado linhas atrás, o objeto do presente texto é lançar uma discussão crítica a respeito do modelo de arbitragem que, embora tecnicamente até possa ter seus méritos, numa abordagem mais reflexiva e menos imediatista, terá sérios e profundos reflexos negativos sobre nossa ordem jurídica.

De nada adianta, portanto, um instituto que deixe à margem um grande número de cidadãos, implicando numa distribuição de Justiça célere para alguns privilegiados, e, a partir do momento que a crise do Poder Judiciário deixar de tornar um problema para os grandes conglomerados econômicos, que dispõem de grande influência junto aos Poderes Executivo e Legislativo, obviamente não mais ocorrerão, com a mesma intensidade verificada atualmente (intensidade insuficiente como já fartamente alardeado pelos meios de comunicação de massa, os mass media), investimentos necessários ao Judiciário convencional, repetindo-se o fenômeno já vivenciado por outros setores estratégicos do governo (não são desconhecidos o sucateamento da escola pública, da previdência pública, da segurança pública, da saúde pública, com sua transferência para uma ordem de escolas particulares, planos de saúde, segurança e previdência privadas, etc).

Muitos até poderiam entender que tratar-se-ia de sinal dos tempos, de um processo inexorável, mas não se pode esquecer que, embora para o governo de matiz axiológica neoliberal possa parecer sedutora a tese de resolução do problema do Poder Judiciário a custo zero, ou seja, favorecendo a criação de uma ordem jurisdicional particular e paralela, que interessará a uma minoria, estará deixando de atentar para a missão constitucional do Poder Judiciário, expressamente assegurada no mister da garantia de análise de lesões e ameaças de lesões aos direitos das pessoas residentes e domiciliadas no Brasil.

Não se pode, simplesmente, ignorar a cidadania, inclusive dos excluídos, posto que não vivemos num regime de matiz escravocrata, mas, ao contrário, vivemos num Estado Democrático de Direito...

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